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Document 62017CJ0514

Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 13 de dezembro de 2018.
Marin-Simion Sut.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pela cour d'appel de Liège.
Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Decisão‑Quadro 2002/584/JAI — Mandado de detenção europeu — Artigo 4.o, ponto 6 — Motivo de não execução facultativa do mandado de detenção europeu — Infração na origem da condenação a uma pena privativa de liberdade no Estado de emissão que é punida apenas com pena de multa no Estado de execução.
Processo C-514/17.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2018:1016

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

13 de dezembro de 2018 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Decisão‑Quadro 2002/584/JAI — Mandado de detenção europeu — Artigo 4.o, ponto 6 — Motivo de não execução facultativa do mandado de detenção europeu — Infração na origem da condenação a uma pena privativa de liberdade no Estado de emissão que é punida apenas com pena de multa no Estado de execução»

No processo C‑514/17,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela cour d’appel de Liège (Tribunal de Recurso de Liège, Bélgica), por decisão de 3 de agosto de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 23 de agosto de 2017, no processo relativo à execução de um mandado de detenção europeu emitido contra

Marin‑Simion Sut,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: R. Silva de Lapuerta (relatora), vice‑presidente, exercendo funções de presidente da Primeira Secção, J.‑C. Bonichot, A. Arabadjiev, C. G. Fernlund e S. Rodin, juízes,

advogado‑geral: Y. Bot,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 21 de junho de 2018,

vistas as observações apresentadas:

em representação de M.‑S. Sut, por R. Destexhe, avocate,

em representação do Governo belga, por C. Van Lul, C. Pochet e J.‑C. Halleux, na qualidade de agentes, assistidos por J. Maggio, experte,

em representação do Governo alemão, por T. Henze e J. Möller, na qualidade de agentes,

em representação do Governo espanhol, por M. J. García‑Valdecasas Dorrego, na qualidade de agente,

em representação do Governo neerlandês, por M. Bulterman e J. Langer, na qualidade de agentes,

em representação do Governo austríaco, por C. Pesendorfer, na qualidade de agente,

em representação do Governo romeno, por C.‑R. Canţăr, E. Gane, R.‑M. Mangu e L. Liţu, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por R. Troosters e S. Grünheid, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 6 de setembro de 2018,

profere o presente.

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24) (a seguir «Decisão‑Quadro 2002/584»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito da execução, na Bélgica, de um mandado de detenção europeu emitido em 26 de agosto de 2011 pelas autoridades romenas contra Marin‑Simion Sut.

Quadro jurídico

Direito da União

Decisão‑Quadro 2002/584

3

Os considerandos 5, 6 e 10 da Decisão‑Quadro 2002/584 têm a seguinte redação:

«(5)

O objetivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduz à supressão da extradição entre os Estados‑Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias. Acresce que a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal permite suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos atuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que até ao momento prevaleceram entre Estados‑Membros devem dar lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré‑sentencial como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.

(6)

O mandado de detenção europeu previsto na presente decisão‑quadro constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de “pedra angular” da cooperação judiciária.

[…]

(10)

O mecanismo do mandado de detenção europeu é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados‑Membros. […]»

4

O artigo 1.o dessa decisão‑quadro, sob a epígrafe «Definição de mandado de detenção europeu e obrigação de o executar», prevê, nos seus n.os 1 e 2:

«1.   O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2.   Os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.»

5

O artigo 3.o da referida decisão‑quadro enumera três «[m]otivos de não execução obrigatória do mandado de detenção europeu».

6

O artigo 4.o dessa decisão‑quadro, sob a epígrafe «Motivos de não execução facultativa do mandado de detenção europeu», enuncia, em sete pontos, esses motivos. O ponto 6 deste artigo dispõe a este respeito:

«A autoridade judiciária de execução pode recusar a execução de um mandado de detenção europeu:

[…]

6)

Se o mandado de detenção europeu tiver sido emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, quando a pessoa procurada se encontrar no Estado‑Membro de execução, for sua nacional ou sua residente e este Estado se comprometa a executar essa pena ou medida de segurança nos termos do seu direito nacional».

7

O artigo 5.o da Decisão‑Quadro 2002/584, sob a epígrafe «Garantias a fornecer pelo Estado‑Membro de emissão em casos especiais», prevê:

«A execução do mandado de detenção europeu pela autoridade judiciária de execução pode estar sujeita pelo direito do Estado‑Membro de execução a uma das seguintes condições:

[…]

3)

Quando a pessoa sobre a qual recai um mandado de detenção europeu para efeitos de procedimento penal for nacional ou residente do Estado‑Membro de execução, a entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado‑Membro de execução para nele cumprir a pena ou medida de segurança privativas de liberdade proferida contra ela no Estado‑Membro de emissão.»

Decisão‑Quadro 2008/909

8

O considerando 12 da Decisão‑Quadro 2008/909/JAI do Conselho, de 27 de novembro de 2008, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças em matéria penal que imponham penas ou outras medidas privativas de liberdade para efeitos da execução dessas sentenças na União Europeia (JO 2008, L 327, p. 27), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24) (a seguir «Decisão‑Quadro 2008/909»), enuncia:

«A presente decisão‑quadro deverá também aplicar‑se mutatis mutandis à execução de condenações nos casos abrangidos pelo [ponto] 6 do artigo 4.o e pelo [ponto] 3 do artigo 5.o da Decisão‑Quadro [2002/584]. O que significa, designadamente, que, sem prejuízo dessa decisão‑quadro, o Estado de execução pode verificar se existem ou não motivos de recusa do reconhecimento e da execução, tal como previsto no artigo 9.o da presente decisão‑quadro […] como condição para reconhecer e executar a sentença, a fim de considerar se há que entregar a pessoa condenada ou executar a condenação nos casos previstos no [ponto] 6 do artigo 4.o da Decisão‑Quadro [2002/584].»

9

Nos termos do artigo 25.o da Decisão‑Quadro 2008/909, «[s]em prejuízo da Decisão‑Quadro [2002/584], o disposto na presente decisão‑quadro deve aplicar‑se, mutatis mutandis, na medida em que seja compatível com as disposições dessa mesma decisão‑quadro, à execução de condenações, se um Estado‑Membro tiver decidido executar a condenação nos casos abrangidos pelo [ponto] 6 do artigo 4.o daquela decisão‑quadro ou se, nos termos do disposto no [ponto] 3 do artigo 5.o da mesma decisão‑quadro, tiver estabelecido como condição que a pessoa seja devolvida ao Estado‑Membro em questão para nele cumprir a pena, de forma a evitar a impunidade da pessoa em causa.»

Direito belga

10

O artigo 6.o, n.o 4, da loi du 19 décembre 2003 relative au mandat d’arrêt européen (Lei de 19 de dezembro de 2003, relativa ao mandado de detenção europeu) (Moniteur belge de 2 de dezembro de 2013, a seguir «lei belga relativa ao mandado de detenção europeu»), que transpõe para o direito belga o artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584, dispõe que a execução pode ser recusada «se o mandado de detenção europeu tiver sido emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança, quando a pessoa em causa seja belga ou resida na Bélgica e as autoridades belgas competentes se comprometam a executar essa pena ou medida de segurança em conformidade com a lei belga.»

11

A loi du 15 mai 2012 relative à l’application du principe de reconnaissance mutuelle des peines ou mesures privatives de liberté prononcées dans un État de l’Union européenne (Lei de 15 de maio de 2012, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo das penas ou outras medidas privativas de liberdade impostas num Estado da União Europeia) (Moniteur belge de 8 de junho de 2012, a seguir «Lei de 15 de maio de 2012»), que transpôs para o direito belga a Decisão‑Quadro 2008/909, prevê a possibilidade de adaptação da pena se a sua duração ou a sua natureza forem incompatíveis com o direito belga. Contudo, está expressamente previsto que, em caso de adaptação, essa pena ou medida deve, sempre que possível, corresponder à condenação imposta no Estado de emissão, e que não pode ser convertida numa sanção pecuniária.

12

A este respeito, resulta da decisão de reenvio que a Cour constitutionnelle [Tribunal Constitucional] belga considerou, no seu acórdão de 27 de fevereiro de 2014, que uma multa penal não é equiparável, no que respeita à sua natureza, a uma pena ou a uma medida privativa de liberdade e que a comutação de uma pena ou de uma medida privativa de liberdade numa multa viola o princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais.

13

Resulta igualmente da decisão de reenvio, bem como das observações do Governo belga, que, ao abrigo do artigo 17.o, n.o 1, e do artigo 30.o da loi relative à la police de la circulation routière (Lei relativa à fiscalização da circulação rodoviária) (Moniteur belge de 27 de março de 1968), as infrações objeto do mandado de detenção europeu em causa no processo principal apenas são puníveis com multa.

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

14

Por decisão de 8 de junho de 2011, o Judecătoria Carei (Tribunal de Primeira Instância de Carei, Roménia) condenou M.‑S. Sut, de nacionalidade romena, a uma pena privativa de liberdade de um ano e dois meses por ter conduzido um veículo sem matrícula válida e sem ser detentor de um título de condução válido e ter causado um acidente.

15

M.‑S. Sut deixou a Roménia para ir para França.

16

Em 26 de agosto de 2011, as autoridades romenas emitiram um mandado de detenção europeu contra M.‑S. Sut destinado à sua entrega para efeitos da execução da sentença de 8 de junho de 2011.

17

Em fevereiro de 2015, M.‑S. Sut deslocou‑se à Bélgica, onde vive desde então e exerce com a sua mulher uma atividade independente.

18

Em 13 de julho de 2017, o procureur près le tribunal de première instance de Liège (Procurador junto do Tribunal de Primeira Instância de Liège, Bélgica) pediu a entrega de M.‑S. Sut tendo em vista a execução do mandado de detenção europeu emitido em 26 de agosto de 2011. Por carta de 13 de julho de 2017, M.‑S. Sut recusou consentir na entrega pedida e, posteriormente, em 14 de julho de 2017, requereu que a pena fosse executada na Bélgica.

19

Por despacho de 19 de julho de 2017, o tribunal de première instance de Liège (Tribunal de Primeira Instância de Liège, Bélgica) ordenou a execução do mandado de detenção europeu.

20

M.‑S. Sut interpôs recurso desse despacho na cour d’appel de Liège (Tribunal de Recurso de Liège, Bélgica), com base no artigo 6.o, ponto 4, da lei belga relativa ao mandado de detenção europeu, que transpõe para o direito belga o artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584.

21

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio observa, desde logo, que M.‑S. Sut reside no território belga, onde mantém relações económicas e familiares, de modo que pode ser qualificado de «pessoa procurada [que] se [encontra] no Estado‑Membro de execução» na aceção do artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584. Em seguida, salienta que as infrações punidas pelo Judecătoria Carei (Tribunal de Primeira Instância de Carei) com uma pena privativa da liberdade, na Bélgica são punidas apenas com pena de multa e, por último, que a Lei de 15 de maio de 2012, que transpõe para o direito belga o artigo 8.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/909 e prevê uma possibilidade de adaptação da pena se a sua duração ou natureza forem incompatíveis com o direito belga, proíbe expressamente a conversão de uma pena privativa da liberdade em pena de multa.

22

Com base nestas últimas circunstâncias, o Ministério Público belga considera que a pena aplicada pelo Judecătoria Carei (Tribunal de Primeira Instância de Carei) não pode, em conformidade com o direito belga, ser executada na Bélgica e que, como tal, M.‑S. Sut não pode invocar o motivo de recusa facultativa previsto no artigo 6.o, ponto 4, da lei belga relativa ao mandado de detenção europeu.

23

Contudo, o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se sobre a relevância dessa interpretação à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça que permite à autoridade judiciária de execução dar especial importância à possibilidade de aumentar as oportunidades de reinserção social da pessoa procurada após o cumprimento da pena a que foi condenada (v., nomeadamente, Acórdão de 5 de setembro de 2012, Lopes Da Silva Jorge, C‑42/11, EU:C:2012:517, n.o 32, e de 29 de junho de 2017, Popławski, C‑579/15, EU:C:2017:503, n.o 21), assegurando simultaneamente a execução da pena decretada pelo Estado de emissão, bem como à luz dos considerandos da Decisão‑Quadro 2008/909 neste sentido, nomeadamente o seu considerando 9.

24

Nestas circunstâncias, a cour d’appel de Liège (Tribunal de Recurso de Liège) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«[Pode] o artigo 4.o, [ponto] 6, da Decisão Quadro 2002/584 ser interpretado no sentido de que não é aplicável a factos punidos com uma pena privativa de liberdade decretada por um órgão jurisdicional do Estado de emissão quando no território do Estado de execução tais factos apenas são puníveis com uma pena de multa, o que implica, em conformidade com o direito interno do Estado de execução, a impossibilidade de executar a pena privativa de liberdade no Estado‑Membro de execução, em prejuízo da reinserção social da pessoa condenada e dos seus laços familiares, linguísticos, culturais, sociais, económicos ou outros?»

Quanto à questão prejudicial

25

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584 deve ser interpretado no sentido de que, quando, como no processo principal, a pessoa que é objeto de um mandado de detenção europeu emitido para efeitos da execução de uma pena privativa de liberdade residir no Estado‑Membro de execução e apresentar laços familiares, sociais e profissionais com este Estado, a autoridade judiciária de execução pode, devido a considerações relacionadas com a reinserção social da referida pessoa, recusar a execução desse mandado, mesmo que a infração que está na base do referido mandado apenas seja punível, em conformidade com o direito do Estado‑Membro de execução, com multa.

26

A título preliminar, importa recordar que a Decisão‑Quadro 2002/584, como resulta, em particular, do seu artigo 1.o, n.os 1 e 2, e dos seus considerandos 5 e 7, tem por objeto substituir o sistema de extradição multilateral baseado na Convenção europeia de extradição, de 13 de dezembro de 1957, por um sistema de entrega, entre as autoridades judiciárias, das pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos da execução de sentenças ou de procedimentos penais, baseando‑se este último sistema no princípio do reconhecimento mútuo [Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.o 39 e jurisprudência referida].

27

A Decisão‑Quadro 2002/584 pretende, assim, ao instituir um novo sistema simplificado e mais eficaz de entrega das pessoas condenadas ou suspeitas de terem infringido a lei penal, facilitar e acelerar a cooperação judiciária com vista a contribuir para realizar o objetivo, atribuído à União, de se tornar um espaço de liberdade, segurança e justiça, baseando‑se no elevado grau de confiança que deve existir entre os Estados‑Membros [Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.o 40e jurisprudência referida].

28

No domínio regido pela Decisão‑Quadro 2002/584, o princípio do reconhecimento mútuo, que constitui, como resulta designadamente do considerando 6 dessa decisão‑quadro, a «pedra angular» da cooperação judiciária em matéria penal, encontra aplicação no seu artigo 1.o, n.o 2, que consagra a regra segundo a qual os Estados‑Membros são obrigados a executar qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com as disposições dessa mesma decisão‑quadro. Portanto, as autoridades judiciárias de execução apenas podem, em princípio, recusar executar esse mandado pelos motivos, exaustivamente enumerados, de não execução previstos pela Decisão‑Quadro 2002/584, e a execução do mandado de detenção europeu apenas pode ser subordinada a uma das condições taxativamente previstas no artigo 5.o desta decisão‑quadro. Por conseguinte, ao passo que a execução do mandado de detenção europeu constitui o princípio, a recusa de execução é concebida como uma exceção que deve ser objeto de interpretação estrita [Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.o 41 e jurisprudência referida].

29

A Decisão‑Quadro 2002/584 enuncia expressamente os motivos de não execução obrigatória (artigo 3.o) e facultativa (artigos 4.o e 4.o‑A) do mandado de detenção europeu, bem como as garantias a fornecer pelo Estado‑Membro de emissão em casos especiais (artigo 5.o) [Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.o 42 e jurisprudência referida].

30

Assim, embora o princípio do reconhecimento mútuo esteja subjacente à economia da Decisão‑Quadro 2002/584, esse reconhecimento não implica, no entanto, uma obrigação absoluta de execução do mandado de detenção emitido. Com efeito, o sistema da referida decisão‑quadro, como resulta nomeadamente do seu artigo 4.o, deixa aos Estados‑Membros a possibilidade de permitir, em situações específicas, às autoridades judiciárias competentes decidirem que uma pena imposta deve ser executada no território do Estado‑Membro de execução (Acórdão de 5 de setembro de 2012, Lopes Da Silva Jorge, C‑42/11, EU:C:2012:517, n.o 30 e jurisprudência referida).

31

É esse o caso, em particular, do artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584, que enuncia um motivo de não execução facultativa do mandado de detenção europeu com base no qual a autoridade judiciária de execução pode recusar a execução de um mandado que tenha sido emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, quando a pessoa procurada se encontrar no Estado‑Membro de execução, for sua nacional ou sua residente e este Estado se comprometa a executar essa pena ou medida de segurança nos termos do seu direito nacional.

32

Assim, resulta da redação dessa disposição que a aplicação desse motivo de não execução facultativa está sujeito a dois requisitos, a saber, por um lado, que a pessoa procurada se encontre no Estado‑Membro de execução, for sua nacional ou sua residente e, por outro, que este Estado se comprometa a executar essa pena ou medida de segurança nos termos do seu direito nacional.

33

Por outro lado, como o Tribunal de Justiça já salientou, resulta igualmente da própria redação do artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584, nomeadamente do termo «pode», que, quando um Estado‑Membro tenha optado por transpor esta disposição para o direito nacional, a autoridade judiciária de execução deve, ainda assim, dispor de uma margem de apreciação quanto à questão de saber se há ou não que recusar a execução do mandado de detenção europeu. A este respeito, esta autoridade deve poder ter em conta o objetivo prosseguido pelo motivo de não execução facultativa enunciado nesta disposição, que consiste, segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, em permitir à autoridade judiciária de execução dar especial importância à possibilidade de aumentar as oportunidades de reinserção social da pessoa procurada após a execução da pena a que foi condenada (v. Acórdão de 29 de junho de 2017, Popławski, C‑579/15, EU:C:2017:503, n.o 21 e jurisprudência referida).

34

No que se refere, em primeiro lugar, ao primeiro requisito enunciado no artigo 4.o, ponto 6, da Decisão 2002/584, o Tribunal de Justiça já indicou que uma pessoa procurada é «residente» no Estado‑Membro de execução quando estabeleceu a sua residência efetiva nesse Estado e nele se «encontr[a]» quando, após permanecer de forma estável durante um determinado período nesse Estado‑Membro, adquiriu laços com este Estado semelhantes aos que resultam da residência (Acórdão de 17 de julho de 2008, Kozłowski, C‑66/08, EU:C:2008:437, n.o 54).

35

No que se refere, em segundo lugar, ao segundo requisito enunciado no artigo 4.o, ponto 6, da Decisão 2002/584, como o Tribunal de Justiça já salientou, decorre da redação desta disposição que qualquer recusa de executar um mandado de detenção europeu pressupõe um verdadeiro compromisso unilateral do Estado‑Membro de execução de executar a pena privativa de liberdade decretada contra a pessoa procurada. Daqui resulta que qualquer recusa de execução de um mandado de detenção europeu deve ser precedida da verificação, pela autoridade judiciária de execução, da possibilidade de executar realmente a pena privativa de liberdade de acordo com o seu direito nacional. Caso o Estado‑Membro de execução esteja impossibilitado de se comprometer a executar efetivamente a referida pena, cabe à autoridade judiciária de execução executar o mandado de detenção europeu e, portanto, entregar a pessoa procurada ao Estado‑Membro de emissão (Acórdão de 29 de junho de 2017, Popławski, C‑579/15, EU:C:2017:503, n.o 22).

36

Quando a autoridade judiciária de execução concluir que os dois requisitos acima recordados estão preenchidos, deve verificar se existe um interesse legítimo que justifique que a pena aplicada no Estado‑Membro de emissão seja executada no território do Estado‑Membro de execução (v. Acórdão de 17 de julho de 2008, Kozłowski, C‑66/08, EU:C:2008:437, n.o 44). Essa apreciação permite à referida autoridade ter em conta o objetivo prosseguido pelo artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584, conforme exposto no n.o 33 do presente acórdão.

37

Resulta das considerações precedentes que a faculdade conferida à autoridade judiciária de execução de recusar, com base no artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584, a entrega da pessoa procurada só pode ser aplicada se essa autoridade judiciária, após ter verificado, por um lado, que essa pessoa está abrangida pelo âmbito de aplicação dessa disposição, na aceção enunciada no n.o 34 do presente acórdão, e, por outro, que a pena privativa de liberdade imposta pelo Estado‑Membro de emissão contra essa pessoa pode efetivamente ser executada no Estado‑Membro de execução, considerar que existe um interesse legítimo que justifica que a pena aplicada no Estado‑Membro de emissão seja executada no território do Estado‑Membro de execução.

38

No processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio constatou que M.‑S. Sut reside na Bélgica, na aceção do artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584. Portanto, há que considerar que está preenchido o primeiro requisito de aplicação do artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584.

39

Quanto ao segundo requisito, o órgão jurisdicional de reenvio concluiu que as infrações que estão na base do mandado de detenção europeu não são puníveis na Bélgica com uma pena privativa de liberdade, mas sim com pena de multa.

40

Ora, como resulta da redação da questão submetida, o órgão jurisdicional de reenvio considera que esta circunstância determina a impossibilidade de o Reino da Bélgica se comprometer a executar essa pena nos termos do seu direito nacional, na aceção do artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584.

41

A este respeito, em primeiro lugar, importa salientar que o artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584 não contém nenhum elemento que permita interpretar o segundo requisito estabelecido nessa disposição no sentido de que impede automaticamente que a autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução possa recusar dar execução a um mandado de detenção europeu pelo facto de o direito desse Estado‑Membro apenas prever uma pena de multa para a infração que está na base do referido mandado. Com efeito, resulta da própria redação dessa disposição que esta exige simplesmente que o Estado‑Membro de execução se comprometa a executar a pena privativa de liberdade prevista no mandado de detenção europeu emitido, nos termos do seu direito nacional.

42

Em segundo lugar, importa recordar que, quando escolhem transpor o artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2002/584 para o direito interno, os Estados‑Membros dispõem necessariamente, ao dar execução a essa disposição, designadamente ao seu ponto 6, de uma certa margem de apreciação (v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2009, Wolzenburg, C‑123/08, EU:C:2009:616, n.o 61).

43

Neste contexto, como o Tribunal de Justiça já salientou, o legislador nacional que, fazendo uso das possibilidades que lhe são oferecidas pelo artigo 4.o da referida decisão‑quadro, opta por limitar as situações em que a autoridade judiciária de execução nacional pode recusar entregar uma pessoa procurada, mais não faz do que reforçar o sistema de entrega instituído pela decisão‑quadro a favor de um espaço de liberdade, segurança e justiça (Acórdão de 6 de outubro de 2009, Wolzenburg, C‑123/08, EU:C:2009:616, n.o 58).

44

Com efeito, ao limitar as situações em que a autoridade judiciária de execução pode recusar dar execução a um mandado de detenção europeu, tal legislação mais não faz do que facilitar a entrega das pessoas procuradas, em conformidade com o princípio do reconhecimento mútuo consagrado no artigo 1.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2002/584, o qual constitui a regra essencial instituída por esta última (Acórdão de 6 de outubro de 2009, Wolzenburg, C‑123/08, EU:C:2009:616, n.o 59).

45

Por conseguinte, o legislador nacional de um Estado‑Membro pode aplicar o motivo de não execução facultativa previsto no artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584 prevendo que, no caso de a infração que está na base do mandado de detenção europeu apenas ser punível nesse Estado‑Membro com pena de multa, este Estado‑Membro não se pode comprometer a executar a pena privativa de liberdade, para efeitos do referido artigo.

46

Com efeito, como o Tribunal de Justiça já declarou, embora o motivo de não execução facultativa enunciado no artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584 tenha designadamente por objetivo permitir dar especial relevância à possibilidade de aumentar as oportunidades de reinserção social da pessoa procurada no fim da pena a que foi condenada, tal objetivo, por mais importante que seja, não pode excluir que os Estados‑Membros, ao darem execução a esta decisão‑quadro, limitem, no sentido indicado pela regra essencial enunciada no artigo 1.o, n.o 2, desta, as situações em que deveria ser possível recusar a entrega de uma pessoa abrangida pelo âmbito de aplicação do referido artigo 4.o, ponto 6 (v. Acórdão de 6 de outubro de 2009, Wolzenburg, C‑123/08, EU:C:2009:616, n.o 62 e jurisprudência referida).

47

Em terceiro lugar, embora, ao inserir o artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584, o legislador da União tenha pretendido permitir os Estados‑Membros, tendo em vista facilitar a reinserção social da pessoas procurada, recusar a execução do mandado de detenção europeu, estabeleceu, contudo, nessa mesma disposição os requisitos de aplicação desse motivo de recusa, entre os quais, nomeadamente, o compromisso de o Estado‑Membro de execução executar efetivamente a pena privativa da liberdade aplicada à pessoa procurada, a fim de garantir a execução da pena imposta e de evitar, assim, qualquer risco de essa pessoa ficar impune.

48

Por último, importa precisar, à semelhança do advogado‑geral nos n.os 82 e 83 das suas conclusões, que nenhuma disposição da Decisão‑Quadro 2008/909 pode afetar o alcance ou as modalidades de aplicação do motivo de não execução facultativa estabelecido no artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584. Com efeito, embora, segundo o seu artigo 25.o, as disposições da Decisão‑Quadro 2008/909 se apliquem, mutatis mutandis, à execução de condenações no caso do Estado‑Membro se comprometer a executar a condenação em conformidade com o artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584, o legislador da União previu expressamente que essas disposições só são aplicáveis na medida em que sejam compatíveis com as disposições desta última decisão‑quadro.

49

Nestas condições, cabe à autoridade judiciária de execução, a única competente para interpretar o direito nacional, certificar‑se, em conformidade com o n.o 36 do presente acórdão, durante a verificação a que está obrigada a fim de recusar a execução de um mandado de detenção europeu, com base no artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584, de que, embora a infração que está na base do mandado de detenção europeu apenas seja punível, ao abrigo do direito nacional, com pena de multa, esse direito permite, todavia, executar efetivamente a pena privativa de liberdade imposta pelo Estado‑Membro de emissão contra a pessoa que é objeto do mandado de detenção europeu.

50

Atendendo às considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584 deve ser interpretado no sentido de que, quando, como no processo principal, a pessoa que é objeto de um mandado de detenção europeu emitido para efeitos da execução de uma pena privativa de liberdade residir no Estado‑Membro de execução e apresentar laços familiares, sociais e profissionais com este Estado, a autoridade judiciária de execução pode, devido a considerações relacionadas com a reinserção social da referida pessoa, recusar a execução desse mandado, mesmo que a infração que está na base do referido mandado apenas seja punível, em conformidade com o direito do Estado‑Membro de execução, com pena de multa, desde que, em conformidade com esse mesmo direito nacional, essa circunstância não obste a que a pena privativa de liberdade aplicada à pessoa procurada seja efetivamente executada nesse Estado‑Membro, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

Quanto às despesas

51

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

 

O artigo 4.o, ponto 6, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, deve ser interpretado no sentido de que, quando, como no processo principal, a pessoa que é objeto de um mandado de detenção europeu emitido para efeitos da execução de uma pena privativa de liberdade residir no Estado‑Membro de execução e apresentar laços familiares, sociais e profissionais com este Estado, a autoridade judiciária de execução pode, devido a considerações relacionadas com a reinserção social da referida pessoa, recusar a execução desse mandado, mesmo que a infração que está na base do referido mandado apenas seja punível, em conformidade com o direito do Estado‑Membro de execução, com pena de multa, desde que, em conformidade com esse mesmo direito, essa circunstância não obste a que a pena privativa de liberdade aplicada à pessoa procurada seja efetivamente executada nesse Estado‑Membro, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: francês.

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