ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

7 de Fevereiro de 1973 ( *1 )

No processo 39/72,

Comissão das Comunidades Europeias, representada pelos seus consultores jurídicos Armando Toledano-Laredo e Giancarlo Olmi, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo no gabinete do seu consultor jurídico Émile Reuter, 4, boulevard Royal,

demandante,

contra

República Italiana, representada pelo embaixador Adolfo Maresca, na qualidade de agente, assistido por Giorgio Zagari, substituto na Avvocatura Generale dello Stato, com domicílio escolhido no Luxemburgo na Embaixada da Itália,

demandada,

que tem' por objecto obter a declaração de que a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do Regulamento (CEE) n.o 1975/69 do Conselho, de 6 de Outubro de 1969, que institui um regime de prémios de abate de vacas e de prémios de não comercialização de leite e produtos lácteos, e do Regulamento (CEE) n.o 2195/69 da Comissão, de 4 de Novembro de 1969, que estabelece as modalidades de aplicação relativas ao regime de prémios ao abate de vacas e de prémios de não comercialização de leite e produtos lácteos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: R. Lecourt, presidente, R. Monaco e P. Pescatore, presidentes de secção, A. M. Donner e J. Mertens de Wilmars, juízes,

advogado-geral: H. Mayras

secretário: A. Van Houtte

profere o presente

Acórdão

(A parte relativa à matéria de facto não é reproduzida)

Fundamentos da decisão

1

Por petição entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 3 de Julho de 1972, a Comissão intentou, ao abrigo do artigo 169.o do Tratado CEE, uma acção destinada a obter a declaração de que, ao não adoptar as medidas necessárias para permitir a aplicação efectiva e nos prazos previstos do regime de prémios de abate de vacas leiteiras (a seguir «prémios de abate») e de prémios de não comercialização de leite e produtos lácteos (a seguir «prémios de não comercialização») no seu território, a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do Regulamento (CEE) n.o 1975/69 do Conselho, de 6 de Outubro de 1969, que institui um regime de prémios de abate de vacas e de prémios de não comercialização de leite e produtos lácteos (JO L 252, p. 1), e do Regulamento (CEE) n.o 2195/69 da Comissão, de 4 de Novembro de 1969, que estabelece as modalidades de aplicação do regulamento acima referido (JO L 278, p. 6).

2

O Regulamento n.o 1975/69, modificado, designadamente, pelo Regulamento (CEE) n.o 580/70 do Conselho, de 26 de Março de 1970 (JO L 70, p. 30), instituiu, para redução dos excedentes de leite e produtos lácteos existentes à época na Comunidade, um regime de prémios destinados a encorajar o abate de vacas leiteiras e a não comercialização de leite e produtos lácteos.

As modalidades de aplicação desse regime foram estabelecidas pela Comissão através do Regulamento n.o 2195/69, que foi seguidamente, e por diversas vezes, modificado e completado.

Por força dessas disposições, incumbia aos Estados-membros adoptar, dentro dos prazos fixados, um conjunto de medidas de aplicação respeitantes, designadamente, à apresentação e verificação dos pedidos dos agricultores, ao registo dos compromissos através dos quais os requerentes renunciam total e definitivamente à produção ou à venda de leite, à comunicação à Comissão do número e importância dos pedidos apresentados, à fiscalização do cumprimento dos compromissos assumidos e, finalmente, ao pagamento dos prémios aos que a eles tivessem direito.

3

No que respeita aos prémios de abate, os regulamentos acima referidos fixaram entre 1 e 20 de Dezembro de 1969 o período para apresentação, ao organismo nacional competente, dos pedidos de concessão do prémio, e entre 9 de Fevereiro e 30 de Abril de 1970 o período de abate, prorrogado por 30 dias após o dia do parto para as vacas leiteiras que tivessem parido entre 1 de Abril e 31 de Maio de 1970.

O pagamento dos prémios deveria ocorrer, nos termos das modalidades fixadas nos artigos 4.o do Regulamento n.o 1975/69 e 10.o do Regulamento n.o 2195/69, no prazo de dois meses a contar da apresentação da prova do abate, salvo para os agricultores com mais de cinco vacas leiteiras, para os quais o pagamento do remanescente era diferido para o termo de um período de três anos.

4

Por outro lado, no que respeita aos prémios de não comercialização, os pedidos deviam ser apresentados ao organismo nacional competente a partir de 1 de Dezembro de 1969, quando o primeiro pagamento deveria ocorrer nos três meses subsequentes à aceitação do compromisso por parte do requerente.

5

Em virtude da melhoria da situação verificada no sector do leite e produtos lácteos, o Conselho, através do Regulamento (CEE) n.o 1290/71, de 21 de Junho de 1971JO L 137, p. 1), revogou o regime de prémios de abate e de não comercialização instituído pelo Regulamento n.o 1975/69.

6

Na sequência da entrada em vigor dos Regulamentos n. os 1975/69 e 2195/69, o Governo italiano apresentou ao Parlamento uma proposta de lei contendo as necessárias disposições para aplicar em Itália o regime de prémios de abate e de não comercialização.

Por circular de 23 de Março de 1970, o ministro da Agricultura enviou directivas às inspecções provinciais para a instrução dos pedidos já apresentados enquanto se aguardava a aprovação da medida legislativa que devia, designadamente, tornar disponíveis os fundos necessários à execução dos regulamentos.

Segundo as explicações prestadas pelo Governo italiano, tendo surgido no decurso dos debates parlamentares dúvidas quanto à oportunidade de dar execução às normas comunitárias relativas aos prémios de não comercialização, as disposições a eles referentes da proposta de lei foram retiradas e o Parlamento adiou a sua decisão a esse respeito.

Nessas condições, o regime de prémios de não comercialização não foi objecto de qualquer medida de aplicação na República Italiana.

7

Assim, a Lei n.o 935, de 26 de Outubro de 1971, relativa à «aplicação dos regulamentos comunitários no sector zootécnico e no dos produtos lácteos» (publicada na Gazzetta ufficiale n.o 294, de 22 de Novembro de 1971), contém apenas disposições que autorizam o Governo a adoptar medidas de aplicação relativas ao pagamento dos prémios de abate e estabelece os meios financeiros para o pagamento apenas desses prémios.

Para execução desta lei, foi assegurada a implementação do sistema de prémios de abate mediante um decreto de 22 de Março de 1972, enquanto um decreto posterior, de 27 de Março de 1972, pôs à disposição da administração os meios financeiros necessários ao pagamento dos prémios de abate.

Resulta das informações fornecidas no decurso do processo que o pagamento dos prémios aos beneficiários começou, efectivamente, em finais do mês de Outubro de 1972.

Quanto à excepção

8

A demandada, sem entrar na análise do mérito da causa, sustenta que, tendo em conta as circunstâncias, deixou de haver razões para que prossiga a acção intentada pela Comissão.

De facto, tendo sido superadas as dificuldades que inicialmente tinham atrasado o pagamento dos prémios de abate, este pagamento está agora em curso e, portanto, desapareceu a razão de ser da acção da Comissão.

Quanto ao não pagamento dos prémios de não comercialização, a situação tornou-se entretanto irreversível, dado que deixou de ser materialmente possível cumprir, com efeito retroactivo, as obrigações que o deveriam ter sido durante o período fixado pelos regulamentos em questão.

Perante estes factos, a acção da Comissão deixou de ter objecto quanto a ambas as questões, pelo que o Tribunal apenas pode declarar que não há lugar à decisão da causa.

9

O objecto de uma acção intentada ao abrigo do artigo 169o é fixado pelo parecer fundamentado da Comissão e, mesmo quando o incumprimento é sanado depois do prazo estabelecido nos termos do disposto no segundo parágrafo desse artigo, há interesse no prosseguimento da acção.

Esse interesse subsiste no presente caso, dado que, no que se refere aos prémios de abate, as obrigações que incumbem à República Italiana estão longe de terem sido completamente cumpridas; continua em aberto a questão do pagamento dos juros de mora aos beneficiários e as acusações formuladas no decurso do processo pela Comissão dizem respeito não apenas ao atraso na execução dos regulamentos mas ainda a algumas das modalidades de aplicação que teriam tido como efeito prejudicar a eficácia desses regulamentos.

10

Que, no que se refere à não execução das disposições respeitantes aos prémios de não comercialização, a demandada não pode de forma alguma invocar, para se furtar a uma acção judicial, um facto consumado de que ela própria foi autora.

11

De resto, perante um atraso no cumprimento de uma obrigação ou uma recusa em cumprir, um acórdão proferido pelo Tribunal nos termos do disposto nos artigos 169.o e 171.o do Tratado pode ter um interesse material para estabelecer a base da responsabilidade em que um Estado-membro pode eventualmente incorrer, por incumprimento, relativamente a outros Estados-membros, à Comunidade ou a particulares.

12

Portanto, a excepção deduzida pela demandada deve ser desatendida.

Quanto ao mérito

13

Convém analisar separadamente, por um lado, a forma como a demandada deu aplicação às disposições respeitantes aos prémios de abate e, por outro, a sua recusa de aplicar as disposições relativas aos prémios de não comercialização.

1. Quanto aos prémios de abate

14

Para a implementação do regime de prémios de abate foram fixados pelos regulamentos do Conselho e da Comissão prazos precisos.

A observância desses prazos era indispensável para a eficácia das medidas em questão, dado que estas apenas podiam atingir plenamente os seus objectivos se fossem executadas simultaneamente em todos os Estados-membros, no momento estabelecido, em função dos objectivos de política económica prosseguidos pelo Conselho.

Acresce que, como o Tribunal declarou no acórdão de 17 de Maio de 1972, Leonesio/Ministério da Agricultura italiano (93/71, Colect. 1972, p. 93), pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Pretore de Lonato, os Regulamentos n. os 1975/69 e 2195/69 conferiam aos agricultores o direito ao pagamento do prémio a partir do momento em que estivessem preenchidas todas as condições fixadas nesses regulamentos.

Daí se conclui que, só por si, o atraso com que a República Italiana cumpriu as obrigações para ele decorrentes da instituição do regime de prémios de abate constitui um incumprimento das suas obrigações.

15

Para além deste atraso na execução, a Comissão formulou ainda algumas acusações relativamente ao modo pelo qual a República Italiana aplicou as disposições do regime em questão.

Essas críticas diziam respeito, mais particularmente, ao facto de as disposições comunitárias terem sido desvirtuadas pelo processo de execução utilizado pelas autoridades italianas e ainda por essas autoridades não terem tido em conta uma prorrogação do prazo para o abate.

16

Embora a Lei italiana n.o 935 se limite a adoptar as disposições financeiras necessárias à execução do regime de prémios de abate e a habilitar o governo a instituir as medidas administrativas adequadas para aplicar os regulamentos comunitários, o decreto de 22 de Março de 1972 dispõe, no artigo 1.o, que as disposições dos regulamentos «se consideram recebidas no presente decreto».

Em substância, esse decreto, para além de algumas disposições de aplicação de carácter nacional, limita-se a reproduzir as disposições dos regulamentos comunitários.

17

Ao proceder deste modo, o Governo italiano criou um equívoco no que se refere quer à natureza jurídica das disposições a serem aplicadas quer ao momento da sua entrada em vigor.

Com efeito, nos termos dos artigos 189o e 191o do Tratado, os regulamentos são, enquanto tais, directamente aplicáveis em todos os Estados-membros e entram em vigor pelo simples facto da sua publicação no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, na data por eles fixada ou, na falta desta, no momento determinado pelo Tratado.

São, pois, contrárias ao Tratado quaisquer modalidades de execução que possam obstar ao efeito directo dos regulamentos comunitários e desse modo comprometer a sua aplicação simultânea e uniforme no espaço comunitário.

18

Além disso, as disposições de aplicação constantes quer da Lei n.o 935 quer do decreto de 22 de Março de 1972 não tomam em consideração a prorrogação do prazo para o abate que foi estabelecido pelo Regulamento n.o 580/70, pelo que os agricultores italianos foram induzidos em erro no que se refere ao alargamento do prazo para o abate das vacas que tenham parido entre 1 de Abril e 30 de Maio de 1970.

Está, pois, provado o incumprimento da República Italiana em virtude do atraso na aplicação e ainda de certas modalidades de aplicação estabelecidas pelo decreto.

2. Quanto ao prémios de não comercialização

19

A não aplicação das disposições dos Regulamentos n. os 1975/69 e 2195/69 relativas aos prémios de não comercialização deve-se a uma recusa deliberada das autoridades italianas.

A demandada justifica a sua recusa com a dificuldade — dadas as características particulares da agricultura italiana e a falta de uma infra-estrutura administrativa adequada — de garantir uma vigilância e uma fiscalização eficazes e sérias das quantidades de leite não comercializadas e destinadas a outras utilizações.

De qualquer modo, segundo o Governo italiano, as medidas destinadas a limitar a produção de leite seriam incompatíveis com as exigências da economia italiana, caracterizada por uma insuficiente produção de produtos alimentares.

No decurso dos trabalhos preparatórios do Regulamento n.o 1975/69 do Conselho, a delegação italiana tinha posto em relevo esses inconvenientes e formulara desde logo reservas claras quanto à aplicação do regulamento.

Assim sendo, não se poderia acusar a República Italiana de ter recusado aplicar, no seu território, disposições adoptadas apesar da oposição que ela manifestou.

20

Por força do terceiro parágrafo do n.o 2 do artigo 43o do Tratado — que constitui a base jurídica do Regulamento n.o 1975/69 — os regulamentos são validamente adoptados pelo Conselho desde que satisfaçam as condições fixadas por essa disposição.

Nos termos do artigo 189o, o regulamento é obrigatório «em todos os seus elementos» para os Estados-membros.

É, pois, inadmissível que um Estado-membro aplique de forma incompleta ou selectiva as disposições de um regulamento comunitário, de modo a prejudicar a aplicação de certos elementos da legislação comunitária a respeito dos quais tenha manifestado a sua oposição ou que julgue contrários a certos interesses nacionais.

21

Em particular, tratando-se da aplicação de uma medida de política económica destinada a eliminar excedentes de determinados produtos, o Estado-membro que não adopta, dentro do prazo fixado e simultaneamente com os outros Estados-membros, as disposições cuja aplicação lhe incumbe, prejudica a eficácia da medida decidida em comum, ao mesmo tempo que obtém, graças à livre circulação de mercadorias, uma vantagem indevida, em detrimento dos outros Estados-membros.

22

No que se refere ao argumento da demandada baseado nos trabalhos preparatórios do Regulamento n.o 1975/69, o alcance objectivo das normas adoptadas pelas instituições comuns não pode ser modificado por reservas ou objecções que os Estados-membros tenham formulado aquando da sua elaboração.

De igual modo, dificuldades de aplicação surgidas aquando da execução de um acto comunitário não podem permitir a um Estado-membro eximir-se unilateralmente do cumprimento das suas obrigações.

A estrutura institucional da Comunidade oferecia ao Estado-membro interessado os meios necessários para conseguir que fossem tidas na devida conta as suas dificuldades, no respeito dos princípios do mercado comum e dos interesses legítimos dos outros Estados-membros.

23

A este respeito, a analise dos regulamentos em causa e dos actos que lhes introduziram alterações mostra que, em mais do que um aspecto, o legislador comunitário teve em conta, através de cláusulas especiais, dificuldades específicas da República Italiana.

Nestas condições, as eventuais dificuldades de aplicação invocadas pela demandada não podem, pois, servir de justificação.

24

Ao permitir aos Estados-membros beneficiar das vantagens que lhes oferece a Comunidade, o Tratado impõe-lhes igualmente a obrigação de respeitar as normas.

A ruptura unilateral, por parte de um Estado-membro, em obediência ao que considera ser o interesse nacional, do equilíbrio entre as vantagens e os ónus que decorrem da sua pertença à Comunidade, põe em causa a igualdade dos Estados-membros face ao direito comunitário e cria discriminações em prejuízo dos seus nacionais, a começar pelos do próprio Estado-membro que viola as normas comunitárias.

25

Este incumprimento dos deveres de solidariedade que assumiram os Estados-membros pela sua adesão à Comunidade afecta os fundamentos mais essenciais do ordenamento jurídico comunitário.

Portanto, ao recusar deliberadamente dar execução no seu território a um dos regimes instituídos pelos Regulamentos n. os 1975/69 e 2195/69, a República Italiana deixou de cumprir, gravemente, as obrigações que lhe incumbiam por força da sua pertença à Comunidade Económica Europeia.

Quanto às despesas

26

Por força do disposto no n.o 2 do artigo 69.o do Regulamento Processual, a parte vencida deve ser condenada nas despesas. A demandada foi vencida.

 

Pelos fundamentos expostos,

vistos os autos,

visto o relatório do juiz-relator,

ouvidas as alegações das partes,

ouvidas as conclusões do advogado-geral,

visto o Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia, em especial os artigos 43.o, 169o, 171.o, 189.o e 191o,

visto o Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça da Comunidade Económica Europeia,

visto o Regulamento Processual do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA

decide:

 

1)

Ao não adoptar as medidas necessárias para permitir, no seu território, a aplicação efectiva e no prazo adequado do regime de prémios de abate de vacas leiteiras e de prémios de não comercialização de leite e produtos lácteos, a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do Regulamento (CEE) n.o 1975/69 do Conselho, de 6 de Outubro de 1969, e do Regulamento (CEE) n.o 2195/69 da Comissão, de 4 de Novembro de 1969.

 

2)

A demandada é condenada nas despesas.

 

Lecourt

Monaco

Pescatore

Donner

Mertens de Wilmars

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 7 de Fevereiro de 1973.

O secretário

A. Van Houtte

O presidente

R. Lecourt


( *1 ) Língua do processo: italiano.

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