Por Poliana Casemiro, g1


Plantação de maconha descoberta pela polícia em Taubaté (SP) — Foto: Polícia Civil/Divulgação

O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria para descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal nesta terça-feira (26).

O detalhamento da conclusão do plenário será anunciado nesta quarta-feira (26), que também definirá a quantidade que difere usuário de traficante. Os ministros vão fixar uma tese que será usada para julgar casos semelhantes em instâncias inferiores. Veja quais são os próximos passos.

Isso não significa, no entanto, que está liberado usar maconha no Brasil. Como disse o ministro Gilmar Mendes durante o julgamento, "não é um liberou geral". O tema gera debate do ponto de vista de saúde pública e levanta questionamentos sobre se poderá levar ao aumento do número de usuários ou ao agravamento do tráfico de drogas.

➡️ O que vai mudar na prática: Antes do STF formar maioria pela descriminalização, o porte de maconha para o uso pessoal era crime, mas, apesar disso, não levava a pessoa à prisão. Os processos correm em juizados especiais, e as punições costumam ser de advertência e medidas educativas. Se a mudança for aprovada, esse tipo de medida não seria tomada.

A discussão no Brasil é diferente da legalização da droga, realidade em países na Europa e vários estados nos EUA, que estabeleceram uma série de leis que permitem e regulamentam a conduta. (Veja na tabela abaixo)

Especialistas ouvidos pelo g1 avaliam que, com base nos países que liberaram o consumo, foram percebidos pontos positivos em:

  • saúde pública (queda no uso entre adolescentes no Canadá, por exemplo);
  • segurança (no Uruguai, caiu o consumo por meios ilegais, enfraquecendo o crime organizado); e
  • conscientização, com a adoção de políticas para educar a população sobre os riscos do uso.

Mitos e verdades sobre a maconha

Mitos e verdades sobre a maconha

Realidade pelo mundo

Mesmo ilegal em muitos países, a maconha é a droga mais usada no mundo, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Na Europa, por exemplo, é consumida por 8% da população.

No ano passado, quando o tema voltou à pauta do STF depois de anos, o g1 compilou dados que mostraram que, de 40 países monitorados por entidades internacionais que acompanham o tema, mais da metade deles não determinam mais punição para os usuários.

O levantamento reuniu informações do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC); do Centro de Monitoramento Europeu para Drogas e Dependência (EMCDDA), agência da União Europeia; e do Monitor de Política de Drogas nas Américas do Instituto Igarapé.

❗ Como não havia dados disponíveis sobre produção e venda para todos os países, foram consideradas apenas informações acerca de porte/consumo de maconha.

Estados Unidos, diferentes realidades

Nos Estados Unidos, não há uma legislação unificada para o país. Por lá, cada estado tem uma regra, que varia desde a legalização até a punição criminal para o consumo da droga. O consumo da droga, assim como a plantação e o comércio regulado, é legal em 24 dos 50 estados americanos.

Além disso, o país está entre os maiores fornecedores da droga, o que é um retrato do investimento de grandes empresas no ramo. Segundo o relatório das Nações Unidas, empresas no estado de Washington, por exemplo, atingiram um pico de US$ 1,4 bilhão em 2020.

Veja como é a regra em cada estado no mapa abaixo em relação ao consumo:

Abaixo, o g1 conta como três países lidam com a maconha e, em seguida, se é possível tirar lições para o Brasil.

Portugal

Desde 2001, a posse de maconha até 25 gramas não é crime no país. A posse de todas as drogas também foi descriminalizada.

O governo adotou campanhas educativas e monitoramento sobre o uso. Segundo o relatório do Serviço Nacional de Saúde, houve redução na prevalência do uso de drogas ao longo da vida e maior percepção sobre os riscos da maconha. Ao todo, 9% da população usa maconha, pouco acima da média da Europa, que é de 8%.

Paulo Pereira, coordenador na PUC-SP do grupo de pesquisas internacionais sobre políticas de drogas, explicou ao g1, em entrevista em agosto de 2023, que o modelo aplicado em Portugal foi focado em não judicializar o que era uma questão de saúde pública.

“A ideia dessa política é a de tirar o usuário da marginalização, dar acesso a políticas de saúde e fazer campanhas educativas. Observando o que ocorreu em Portugal, foi possível abrir o debate, principalmente entre os jovens. O foco foi educar para fazerem escolhas conscientes. É um caminho para solução do problema de saúde pública”, disse Pereira.

No Uruguai, a maconha só pode ser vendida em farmácias — Foto: BBC

Uruguai

No país, toda a cadeia da maconha é legalizada desde 2015. Apesar disso, é preciso ter licenças específicas aprovadas pelo governo para cada uma das atividades.

O governo uruguaio disse ao g1 que, desde a mudança na legislação, houve queda no consumo da maconha por meios ilegais e que as mortes associadas às drogas seguem no mesmo índice. Segundo o governo uruguaio:

  • De 2014 a 2018, o consumo de maconha vinda do tráfico passou de 58% para 11%.
  • Não houve aumento na demanda de tratamento em saúde pública por uso de maconha nos últimos cinco anos.
  • Não houve casos de morte por intoxicação.
  • Atualmente, 14,6% dos uruguaios usam maconha, e o número mantém a tendência de crescimento desde 2011.

O professor Marcos Baudean, pesquisador na Universidad ORT Uruguai e que atuou no Instituto de Regulação e Controle de Cannabis (IRCCA), do governo uruguaio, explicou ano passado quais foram os objetivos da medida:

A legalização no Uruguai foi feita para estabelecer regras claras em um consumo que já existia, minimizar os problemas de saúde - porque há uma regulação da qualidade da droga - e impedir que as pessoas precisassem acessar os traficantes e, com isso, se envolver em atividades ilícitas.
— Marcos Baudean, professor e pesquisador

Para ele, o aumento no tráfico de drogas é improvável porque a legalização justamente enfraquece o crime organizado.

"Os países latino-americanos enfrentam uma situação muito difícil porque o crime domina territórios e o crime organizado gera um dano importante em nossas economias e em nossas populações. Então, a legalização das drogas é uma maneira de combater um dos negócios importantes para o crime organizado", afirmou.

Pé de maconha em uma plantação em Ontário, no Canadá — Foto: Carlos Osorio/Reuters

Canadá

O Canadá legalizou o uso recreativo da maconha em 2018. Segundo o último relatório do Ministério da Saúde canadense, divulgado em 2022, houve uma redução no consumo entre adolescentes.

Além disso, o número de usuários entre 16 e 19 anos caiu de 44% para 37% entre 2019 e 2022. A média de idade para o início do uso da droga subiu de 18 anos para 20 anos entre 2018 e 2022.

Em nota ao g1, o governo canadense informou que as primeiras observações após os primeiros cinco anos "sugerem progresso no sentido de alcançar os objetivos de saúde e segurança públicas".

Dados de múltiplas fontes indicam que a maioria significativa dos adultos que consomem cannabis a obtém no mercado legal. Além disso, desde a legalização, a proporção de pessoas que consomem cannabis diariamente ou quase diariamente manteve-se estável e tanto a percepção do risco como o conhecimento dos riscos associados ao consumo de cannabis aumentaram.
— Nota do governo canadense

Brasil: o que esperar?

Com base na vivência de outros países que descriminalizaram o porte, especialistas ouvidos pelo g1 avaliam que a sociedade brasileira pode ter ganhos nas seguintes áreas:

  • Saúde pública

🩺 Mais ações: Enfrentar a realidade de que há usuários e que a droga é a mais usada no país poderá ajudar a desenvolver ações de saúde pública para tratar essas pessoas.

A mudança tem mais relação com a saúde pública do que com a segurança pública.
— Paulo Pereira, coordenador na PUC-SP do grupo de pesquisas internacionais sobre políticas de drogas

👨‍⚕️ Tratamento: A descriminalização seria um passo importante para tratar o usuário com medidas de saúde pública, monitorando dados e impactos do uso de drogas.

Com as devidas proporções por terem contextos sociais e realidade diferentes, o professor Paulo Pereira compara o Brasil a Portugal, onde a droga foi descriminalizada:

"O resultado foi um impacto positivo em saúde pública: não houve alta no consumo, houve queda do uso entre adolescentes e maior percepção do risco da droga. A maconha já era usada e era um problema no país antes da descriminalização, como no Brasil. A descriminalização veio para estimular políticas de saúde no que já era necessário", diz Pereira.

📣 Mais diálogo na sociedade: A pesquisadora Marina Alkmin, do Instituto Igarapé, sustenta ainda que descriminalizar abriria o diálogo para falar sobre os riscos.

“Com a descriminalização, poderíamos falar sobre isso abertamente e debater a conscientização sobre os riscos à saúde. As pessoas poderiam decidir melhor sobre o que estão se expondo. Isso é uma política melhor de redução de danos”, afirma Marina.

  • Segurança pública

🚨 Diminuição da população carcerária: Hoje, os mecanismos que distinguem o consumo do tráfico não são bem estabelecidos, o que leva muitos usuários para a cadeia. Levantamento do g1 mostra que o país tem 322 encarcerados a cada 100 mil habitantes - e está entre os que mais prendem no mundo.

⚖️ Mais justiça social: Há diferença de gênero e raça nas abordagens, o que faz com que usuários brancos e de classe média sejam em menor número entre os usuários de baixa renda e negros.

🚬 Sem aumento no tráfico de drogas: Para Paulo Pereira, que também é membro do Global Initiative Against Transnational Organized Crime no campo “Drug Policy Reform” -- organização da sociedade civil que reúne países de todos os continentes, é improvável o aumento no consumo e no tráfico de drogas.

Marina Alckmin, responsável por elaborar estudos para fundamentar políticas públicas, também é da mesma opinião.

O tráfico e o consumo alto de drogas são uma realidade brasileira. O que observamos em países onde isso ocorreu há mais de dez anos é que não há um aumento do tráfico de drogas. É muito improvável que isso ocorra no Brasil.
— Marina Alckmin, pesquisadora do Instituto Igarapés

Para Ilona Szabó de Carvalho, presidente do Igarapé e membro do Conselho de Alto Nível sobre Multilateralismo Eficaz, do Secretário-Geral da ONU, o Brasil está atrasado nessa discussão, emperrando avanços na segurança pública. Em países vizinhos, como Argentina e na Colômbia, a droga já é descriminalizada.

A expectativa é que possamos avançar na descriminalização de todas as drogas - decisão que seria embasada nas melhores evidências - uma vez que somente dessa forma conseguiríamos um real impacto na melhoria da atenção à saúde das pessoas em situação de vulnerabilidade que fazem uso abusivo de drogas e na redução do encarceramento da população negra.
— Ilona Carvalho, presidente do Igarapé

Conscientização:

  • 📚 Conscientização sobre o consumo: Com políticas de saúde pública, é possível educar as pessoas sobre o que elas consomem e os riscos. Assim como em Portugal, com a descriminalização e campanhas, as pessoas aumentaram a percepção do risco.

“O uso de maconha é uma realidade, principalmente entre jovens. Com a descriminalização, aqueles que usam vão se sentir menos inibidos em falar sobre isso e será possível trabalhar em campanhas educativas que envolvam pais e alunos e podem ajudar a reduzir o uso entre os mais jovens”, diz Paulo Pereira.

Comércio legal de maconha

No Brasil, como o STF descriminalizou apenas o porte de maconha e não a droga em si, então, não haverá impacto na economia.

Mas em países em que a produção da droga foi legalizada e a venda, regulamentada, como Estados Unidos e Canadá, criou-se um mercado com empresas que já tem receitas significativas e conversão em impostos.

De acordo com dados enviados pelos países à ONU, em 2020, o mercado de cannabis na Califórnia, nos EUA, atingiu US$ 4,4 bilhões em vendas. No Colorado, chegou a US$ 2 bilhões.

No Canadá, o valor de varejo do mercado de maconha em 2020 foi de US$ 2,6 bilhões de dólares e US$ 3,8 bilhões em 2021.

Segundo o relatório da ONU, os países informaram que todos os estados impuseram impostos sobre a venda de maconha. Nos Estados Unidos, em 2020 o estado do Colorado gerou US$ 387 milhões em impostos sobre a venda da droga. Na Califórnia o valor foi de US$ 1,1 bilhões.

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