A Hora da Ciência
PUBLICIDADE
A Hora da Ciência

Médicos e cientistas abordam diferentes aspectos da saúde.

Informações da coluna
Por

Interromper a gravidez é um direito reprodutivo da mulher, e uma questão de saúde pública. Este direito, já bastante restrito no Brasil, onde o aborto só é permitido em caso de risco para a saúde da mãe, feto inviável ou gravidez resultante de estupro, está ameaçado pelo Projeto de Lei nº 1904/2024, que restringe a permissão legal para aborto a gestações abaixo de 22 semanas, e equipara o aborto feito após este período ao crime de homicídio.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, último ano com registro completo, houve cerca de 74 mil estupros reportados no Brasil. Destes, 60% eram meninas com menos de 13 anos, e 57% eram negras. Em 64% dos casos, os abusadores eram parentes. Apesar de a lei deixar muito claro que, principalmente em casos de estupros presumidos de meninas de menos de 14 anos, não é necessário apresentar boletim de ocorrência nem autorização judicial, e todo serviço de saúde que tenha um departamento de ginecologia e obstetrícia deve fazer o atendimento, a realidade, para quem precisa do aborto legal, é bem diferente.

Não faltam casos, relatados na mídia, de mulheres e meninas que, depois de sofrer a violência sexual, foram novamente agredidas em sua dignidade, sendo sufocadas por exigências burocráticas indevidas e ilegais, ou simplesmente rejeitadas por serviços de saúde que, também de forma ilegal, negam o procedimento.

A maior parte dos hospitais que aceita fazer o procedimento está nas capitais. O PL vitima principalmente meninas jovens, pretas, carentes, que moram longe dos grandes centros, com pouco acesso à informação sobre saúde e direitos reprodutivos, alvos de um abusador que provavelmente é membro da família.

Os proponentes do PL, que acharam razoável tramitá-lo em regime de urgência, acreditam que o país tem pressa em condenar criminalmente crianças que provavelmente já sofrem enorme dificuldade em reconhecer o abuso, reconhecer a gestação, descobrir que têm o direito de interrompê-la, superar o o boicote burocrático — crianças que, se a lei passar, terão de dar um jeito de fazer tudo isso em menos 22 semanas, ou ser acusadas de homicídio.

Talvez seja mais adequado reservar a expressão “homicídio”, ou “homicídio em massa”, para o que estará cometendo o Congresso que aprovar esta atrocidade, e o governo que se mostrar conivente. Porque só o que se pode esperar é um aumento da mortalidade de meninas menores de 14 anos, que terão que recorrer a abortos ilegais e inseguros.

De acordo com a OMS, em países em desenvolvimento, 220 em cada 100 mil abortos inseguros resultam em morte. Estudos mostram que restringir ou proibir o aborto não reduz o número de abortos praticados, mas reduz o número de abortos seguros. Dados da Conselho de Relações Internacionais, que faz comparações sobre políticas públicas entre países, mostram que em nações onde o aborto foi legalizado, com exceção de Índia e China, as taxas de interrupção de gestações diminuíram 43% de 1990 a 2019. No mesmo período, países que restringiram o aborto observaram um aumento de 12%.

Para quem está sinceramente interessado em garantir que os abortos legais aconteçam antes das 22 semanas de gestação, a estratégia é óbvia: basta fazer cumprir a lei, oferecendo o serviço em todas as unidades de saúde, com rapidez e acolhimento humanitário, sem chantagens ou empecilhos.

Mas se estão usando, como parece ser o caso, a vida de crianças vítimas de crime hediondo como estratagema para constranger o governo Lula, então tudo faz mais sentido. Resta ver se o presidente vai ser fiel aos princípios do voto feminista que lhe deu boa parte dos 2% de vantagem sobre o adversário na última eleição , ou se vai se mostrar um progressista tão “autêntico” quanto padre de festa junina.

Mais recente Próxima Ciência e pensamento crítico
  翻译: