São Paulo
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GERADO EM: 30/06/2024 - 09:14

Revolta de 1924 em São Paulo

A revolta de 1924 em São Paulo foi uma guerra esquecida que durou 23 dias, deixando marcas na cidade e na população. O levante dos tenentes exigia mudanças na República, resultando em confrontos violentos e bombardeios contra civis. O episódio, apesar de pouco lembrado, teve impacto na história do Brasil e influenciou movimentos futuros.

Trincheiras produzidas com paralelepípedos, prédios totalmente destruídos após bombardeios e postes elétricos tão perfurados de projéteis que chegaram a ser chamados de “paliteiros” em documentos históricos. Naquele julho de 1924, não era figura de linguagem dizer que São Paulo vivia um cenário de guerra, pois era mesmo um combate de armamento pesado, com amplo sofrimento de civis. O estopim para a revolta havia sido disparado por grupo de tenentes do Exército que se levantou contra o governo do presidente Arthur Bernardes (1875-1955) e demandava mudanças urgentes na República.

Ao longo de 23 dias de embate entre os revolucionários e as forças legalistas sob mando de Bernardes — que tinham a função de debelar o movimento —, a cidade foi colocada abaixo com bombardeios e tiros de canhões. Com o combate alastrado sobretudo entre bairros operários, como o Pari, o Brás e a Mooca, a falta de abastecimento foi o rastilho de pólvora para saques e outros episódios de violência emergirem.

Registros fotográficos da época mostram prédios como o Cotonifício Rodolfo Crespi, ainda em pé nos dias de hoje, com a fachada brutalmente destruída. Relatos da época dão conta que em uma casa no Bom Retiro, uma bomba caiu em um quintal onde brincavam duas crianças. Um menino e uma menina morreram em decorrência dos ferimentos. Dois bebês sucumbiram dias depois após a mãe parar de produzir leite tamanho o trauma.

O Cotonifício Rodolfo Crespi abrigava uma indústria têxtil na Mooca que foi destruído durante a Revolta de 1924. Hoje, o local abriga um supermercado — Foto: Acervo Fundação Energia e Saneamento | Maria Isabel Oliveira/Agência O Globo
O Cotonifício Rodolfo Crespi abrigava uma indústria têxtil na Mooca que foi destruído durante a Revolta de 1924. Hoje, o local abriga um supermercado — Foto: Acervo Fundação Energia e Saneamento | Maria Isabel Oliveira/Agência O Globo

Cerca de 300 mil dos 700 mil habitantes deixaram a cidade durante os confrontos. Fala-se em pelo menos 503 mortes, mas historiadores íntimos ao tema sugerem que o volume de pessoas vitimadas pelo combate poderia ser o dobro. Para esses, a Paróquia Matriz Nossa Senhora da Conceição, no Bairro da Santa Ifigênia, realizará uma missa nesta sexta, dia 5.

— É uma missa para lembrar a dureza da guerra sobre uma cidade e pelas almas dos combatentes, tanto de um lado quanto do outro — diz o padre João Paulo Rizek, pároco da igreja, cuja estrutura ainda guarda marcas da revolução. — Minha tia avó falava muito dessa revolução quando eu era criança. Ela era da região do Pari e, sempre que eu dizia que eu não queria comer algo, ela dizia (em forma de advertência) que tinha passado muita fome nessa época da revolução.

Esse capítulo da história não se trata, contudo, de um combate isoladamente paulistano. A "revolta" ou "revolução" que tomou as vias de São Paulo há cem anos faz parte do movimento tenentista e tem origem, na verdade, em 1922, com o episódio que ficou conhecido como os 18 do Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro, capital do país na época. Naquele episódio, tenentes se insurgiram contra o então presidente Epitácio Pessoa, mas só conseguiram dominar o forte e foram derrotados.

Exatamente dois anos depois, na madrugada de 5 de julho de 1924, em um sábado gelado do inverno paulistano, um grupo liderado pelo general Isidoro Dias Lopes, vindo do Rio Grande do Sul, começou a tomar os quartéis da Força Pública (espécie de ‘exército estadual’ que deu origem à Polícia Militar) da capital paulista. Na cúpula do movimento, estavam ainda o major Miguel Costa, da Força Pública de São Paulo, e o tenente do Exército Joaquim Távora.

— A ideia deles era a seguinte: tomando São Paulo, que era uma cidade importante, industrial, eles fechariam a cidade e marchariam para o Rio, com um poderoso exército. Depois, se juntariam com tropas do Rio e de Minas Gerais, iriam até o Palácio do Catete, derrubariam o presidente e fariam a reconstitucionalização do Brasil — conta Moacir Assunção, jornalista e autor do livro “São Paulo deve ser destruída”, que detalha esse momento histórico.

Entre os ideais dos revoltosos, estavam a instauração do voto secreto e um amplo programa de alfabetização no país. Eles defendiam o fim do governo Arthur Bernardes e da República do café com leite.

— É um episódio que acontece muito perto da Revolução Russa, em 1917, há uma presença de ideais comunistas e anárquicos muito fortes em São Paulo e no Rio. Existe um descontentamento com a política brasileira naquele momento, o cenário contribuiu para que a população com a mínima participação política passasse a participar do levante — diz Fernanda Morais, historiadora da Fundação Energia e Saneamento.

Fuga do Palácio e bombardeios contra civis

Nos primeiros dias, o cenário parecia mais favorável aos revoltosos. Eles não tiveram dificuldades em tomar os quartéis da Força Pública, estavam bem armados e conseguiram angariar, além de militares, pelotões formados por italianos, húngaros e alemães veteranos da 1ª Guerra Mundial. Mas como as batalhas se intensificaram e ficaram mais violentas, em 8 de julho Miguel Costa resolveu enviar uma carta ao presidente da República para oferecer rendição em troca de anistia aos integrantes da Força Pública.

Neste mesmo dia, foram disparados tiros contra o Palácio dos Campos Elíseos, onde ficava o então governador (que na época era chamado de presidente) Carlos de Campos. O governador deixou o palácio e a gestão estadual foi transferida para a Penha, na região da antiga Estação Guaiaúna.

Em 9 de julho, os revoltosos chegaram ao Palácio dos Campos Elíseos e descobriram que o local estava vazio. Pensaram que haviam dominado a cidade e começaram a costurar um "governo revolucionário", com a publicação de um manifesto em jornais, a criação de uma polícia para coibir os saques e reorganizar a cidade e reunião com representantes da Associação Comercial.

Mas este cenário durou pouco: no dia 11, as forças legalistas começaram a bombardear São Paulo, inaugurando a fase mais letal do conflito. Brás, Mooca, Belenzinho e Luz foram os locais mais atingidos, mas depois os bombardeios se dirigiram para a região da Vila Mariana, Liberdade e Paraíso. As bombas eram jogadas a esmo, e dois terços dos mortos foram civis. A partir daí, a força dos legalistas só aumentou, com a chegada de tropas vindas do Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e outros locais.

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Por diversas vezes, entidades da sociedade civil, como a Associação Comercial e a Arquidiocese de São Paulo, pediram o fim dos bombardeios, sem sucesso. As tropas revolucionárias deixaram a cidade na noite de 27 de julho, partindo da estação da Luz em direção ao interior. Antes disso, eles chegaram a deixar bonecos nas trincheiras para enganar os legalistas, que só descobriram a partida dos adversários no dia seguinte. Numa segunda-feira, 28 de julho, as tropas legalistas constataram a fuga dos revoltosos e o Palácio dos Campos Elíseos foi retomado pelo governo. Foi, do início ao fim, uma guerra de militares contra militares.

— Não é uma revolta popular porque o povo não participa, o povo entra como vítima. Com exceção de alguns pelotões de estrangeiros, de italianos, alemães e húngaros, alguns veteranos da Primeira Guerra Mundial, eram apenas integrantes do Exército e da Força Pública – explica Assunção.

A revolta esquecida

Embora ajude a contar os rumos que os anos 1920 e a República Velha tomaram no país, o episódio paulistano foi se apagando na memória da cidade — onde não há monumentos, por exemplo, que rememoram o caso. O ocorrido ficou conhecido entre estudiosos com o sugestivo nome de "a revolução esquecida". A neta de João Alberto Lins de Barros (1895-1955), um dos tenentes no levante, a carioca Tatiana Lins de Barros, diz que soube da história somente na vida adulta.

— Meu pai decidiu me contar quando eu já era adulta, para entender bem o que ocorreu — diz ela, que deu ao filho o mesmo nome de seu antepassado envolvido no levante.

O jornalista José Antônio Dias Lopes, sobrinho-neto de Isidoro Dias Lopes, general que comandou a revolta, afirmou que sempre ouviu a história em sua família, e lamenta que não seja mais conhecida dos paulistanos.

— Não foi uma revolta simples, felizmente ela está sendo redescoberta agora, depois de cem anos. O tio Isidoro, apesar de ser um coronel, era um tenentista. Ele defendia o voto secreto, o voto feminino. Os tenentistas eram liberais para a época. — conta.

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Yuri Abyaza Costa, jornalista e escritor que estuda a Revolução de 1924, é neto de Miguel Costa e tenta manter a história viva. Em sua visão, o momento foi apagado da memória paulistana porque virou uma espécie de “cartilha que ensina como derrubar governos ineficientes”, e também porque o próprio governo federal trabalhou para deixar o conflito escondido.

— Meu pai, o professor Miguel Costa Junior, primogênito do general Miguel Costa, foi o responsável por manter e transmitir a todos essa história. Nascido em 1911, estava com 13 anos quando a Revolução de 1924 estourou em São Paulo, ele foi testemunha ocular dos fatos, era um apaixonado pelo pai. Agora na família sou eu quem faço o que meu pai fazia— conta.

Cartas recontam a batalha

Paulistanos relataram o terror da guerra em cartas enviadas a Dom Duarte Leopoldo, da Arquidiocese de São Paulo, que atualmente podem ser encontradas no Arquivo da Cúria Metropolitana. Após o conflito, o governo usou as cartas para avaliar indenizações para as pessoas que haviam sido prejudicadas. Amélia Parighello, que vivia na Rua do Oratório, na Mooca, conta que perdeu um filho de 11 anos e teve seu braço mutilado com os bombardeios.

O Externato Mattoso, na Mooca, foi bombardeado durante a revolta. Hoje, o local é uma pizzaria — Foto: Acervo Fundação Energia e Saneamento | Maria Isabel Oliveira/Agência O Globo
O Externato Mattoso, na Mooca, foi bombardeado durante a revolta. Hoje, o local é uma pizzaria — Foto: Acervo Fundação Energia e Saneamento | Maria Isabel Oliveira/Agência O Globo

O historiador e coronel da PM Sérgio Marques diz que os militares de baixa patente que deram início ao movimento tenentista “sabiam que, pelo voto, naquele período da República do café-com-leite, o Brasil jamais poderia mudar”, e diz que até hoje o episódio não é unanimidade dentro do Exército e da Polícia Militar. Ele aponta como uma das razões para o esquecimento o fato de que o governo federal cometeu crimes de guerra ao bombardear São Paulo.

— Nessa época, já existiam leis de guerra que proibiam o bombardeamento em concentrações urbanas que não tivessem concentração militar. Teoricamente, o presidente e o ministro da Guerra cometeram crimes contra a humanidade. Foi um bombardeio terrificante contra a população — explica.

O colunista do GLOBO Pedro Doria, autor do livro “Tenentes: a guerra civil brasileira” (Editora Record), que destrincha o movimento tenentista ao longo da década de 20, pondera que os contornos do combate são uma importante razão para que a história seja relegada a um ponto de pouco destaque na memória paulistana, diferente de outros célebres episódios do movimento tenentista.

— No Rio, os 18 do Forte é um marco da história da cidade, em 1922. A Revolução de 30 é o arco final do tenentismo. A ‘coluna Prestes’ (movimento de tenentes que toma forma de 1924 a 1927) é muito celebrada pela esquerda brasileira — diz Doria. — O episódio de 1924 em São Paulo é um problema para todo mundo. O Brasil tem que lidar com o fato que um presidente deu ordens para que São Paulo fosse bombardeada. É uma maluquice hoje em dia e já era considerada uma maluquice em 1924.

O autor ainda avalia que há, ainda, um componente regional para o tal apagamento. E diz respeito à forma que São Paulo enxerga sua própria história.

— Essa ideia de São Paulo locomotiva do país surge entre 1910 e 1920. E, então, aparece um grupo de militares de baixa patente e um grupo de PMs e, em uma madrugada, coloca o governador para fora e controla a cidade toda. Que cidade potência é essa que pode ser tão frágil? — destaca.

Após o fim do conflito, em 28 de julho, muitos integrantes das forças revolucionárias formaram a Coluna Miguel Costa Prestes, que manteve aceso o movimento contra Arthur Bernardes em todo o país, e abriu caminho para a Revolução de 1930. Posteriormente, no governo Getúlio Vargas, militares que participaram dos episódios de 22 e 24 foram anistiados.

Mesmo na época, compreender os contornos do embate se fazia uma tarefa difícil. O modernista Oswald de Andrade (1890-1954) carregou as tintas na ironia e no humor para relembrar aquele episódio em “Serafim Ponte Grande” (1933), que traz memórias daquela São Paulo de 20 em diferentes perspectivas, entre elas a revolta dos oficiais de baixa patente, capaz de sacudir a cidade.

“Ainda em 24, quando as primeiras bombardas da revolta paulista atroaram o céu da cidade ninguém compreendia nada. Os escritores estavam ausentes do movimento telúrico que se agitava. Estavam nos salões, Mas, em 24 nem o governo, nem os próprios revolucionários compreendiam nada. É assim mesmo que se processa a história, ela toma sentido nas repercussões e na soma dos fatos, nas suas decisões proféticas, no seu final balanço ideológico e político”.

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