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Cultura

Itamar Vieira Junior, autor de 'Torto arado': 'O tempo da conciliação já passou'

Romance venceu os prêmios LeYa, Jabuti e Oceanos; escritor baiano quebrou a hegemonia da literatura produzida no eixo Rio-São Paulo-Porto Alegre
O Itamar Vieira Júnior, escritor, em sua casa, no bairro de Itapuã, orla de Salvador: 'Os povos originários e da diáspora têm algo a nos ensinar sobre diversidade e resistência' Foto: Adilton Venegeroles / Agência A Tarde
O Itamar Vieira Júnior, escritor, em sua casa, no bairro de Itapuã, orla de Salvador: 'Os povos originários e da diáspora têm algo a nos ensinar sobre diversidade e resistência' Foto: Adilton Venegeroles / Agência A Tarde

SÃO PAULO — Quando era adolescente, o escritor baiano Itamar Viera Junior bateu na porta de Jorge Amado . O escritor e sua mulher, Zélia Gattai , receberam o rapaz, conversaram com ele, deram autógrafos e até um livro de presente. Hoje, aos 40 anos, Vieira Junior mora no bairro de Itapuã, em Salvador, a pouca distância da casa onde Amado se escondia do assédio carinhoso dos leitores quando precisava escrever, e agora é ele quem, ainda que virtualmente, recebe fãs "trazendo notícias de Bibiana e Belonísia". As personagens são as narradoras de "Torto arado", seu romance lançado em 2019, em Portugal e no Brasil, e que ganhou os prêmios Leya, Oceanos e Jabuti . O último baiano a vencer o Jabuti de Melhor Romance, aliás, fora Amado, em 1995, com "A descoberta da América pelos turcos".

Lançada pela Todavia, a edição brasileira de "Torto arado" já vendeu mais de 26 mil cópias físicas e digitais. É a história de uma família de descendentes de escravizados que, décadas após a abolição, ainda trabalha em terra alheia sem receber um tostão. Geógrafo e funcionário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Vieira Junior viu essa situação de perto diversas vezes.

De sua casa, de onde só sai para ir ao mercado e abastecer a despensa do avô, de 83 anos, que mora sozinho, Vieira Junior conversou com o GLOBO, por Zoom, sobre a troca com os leitores e a assustadora semelhança entre os finais de "Torto arado" e do filme "Bacurau" , de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Também contou um pouco do que vem por aí: uma reedição do livro de contos "A oração do carrasco" (acrescida de inéditos) e um "romance que se passa no Recôncavo Baiano, em terras da Igreja Católica".

— Mais do que isso não conto, porque ainda estou conhecendo os personagens — diz.

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No final de 2018, você venceu o Prêmio Leya e "Torto arado" foi publicado em Portugal. Dois anos depois, o romance venceu o Jabuti e o Oceanos e está na lista de mais vendidos. Você imaginava que Bibiana e Belonísia chegariam tão longe?

Ganhar o Leya já foi uma surpresa, e não imaginava que o livro pudesse vencer outros prêmios. As editoras, a brasileira e a portuguesa, estão satisfeitas ( risos ). É raro ver um romance brasileiro na lista de mais vendidos, ainda mais uma história tão nordestina, tão baiana. "Torto arado" ajudou a quebrar um pouco a hegemonia de livros do eixo Rio-São Paulo, que falam de um país que é o nosso, mas não é o de todos. Livros premiados como "Torto arado" e "Solo para vialejo" (Jabuti de Livro do Ano), de Cida Pedrosa (pernambucana), mostram a forma do nosso trabalho criativo, que sofre com a falta de oportunidades.

Na última década, assistimos a um “boom” do que a escritora Maria Valéria Rezende chamou de "literatura de bar e alcova": livros sobre escritores brancos e angustiados de São Paulo, Rio e Porto Alegre. “Torto arado” não é nada disso, recupera temas que talvez já tivessem sido esgotados pelo romance regionalista dos anos 30 e, ainda assim, provavelmente vendeu mais do que todos esses outros livros...

Quando comecei a ir para o campo, me surpreendi que a dura realidade retratada nos romances dos anos 30 ainda existia. Escrever sobre essa realidade também me permitiu falar de temas universais, demasiado humanos, como o direito à vida e à terra, resistência e solidariedade.

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"Torto arado" fez sucesso no boca a boca. Como tem sido o contato com os leitores?

Enquanto escrevia a última versão do livro, pensava que ia contar uma história que as pessoas talvez não soubessem, que ainda havia gente vivendo em regime de semiescravidão. Os leitores me disseram que eu estava muito equivocado. Essa história pertence à memória coletiva, seja porque os antepassados deles vieram do campo ou porque eles próprios conheceram essa realidade. Nas redes sociais, mantenho um canal aberto com os leitores, e eles me trazem notícias de Bibiana e Belonísia, compartilham impressões, buscam informações. Não sou autor blasé. Se o leitor se dispôs a ler o meu livro, também posso dispor de um tempo para trocar com ele. Não tenho motivo para viver recluso.

"Torto arado" chegou às livrarias brasileiras em agosto de 2019, no mesmo mês em que "Bacurau" estreou nos cinemas. Tanto o livro quanto o filme se passam no sertão e têm finais muito parecidos, extremamente violentos, e que recusam uma longa tradição brasileira: a conciliação. A que você atribui essa coincidência temática? Você e os cineastas captaram o espírito do nosso tempo?

Quando lancei o livro, muita gente me perguntava se tinha visto "Bacurau", mas só fui ver meses depois e me surpreendi ao ver como os finais coincidiam. O que não quer dizer que o autor ou o cineasta estejam incitando a violência. Nos últimos anos, saíram muitas obras violentas que recusam a conciliação , como o romance "Sobre os ossos dos mortos" , de Olga Tokarczuk (Nobel de Literatura polonesa) , e o filme "Parasita" . São obras que captaram algo que está no ar. Talvez a mensagem seja que o tempo da conciliação já passou e que tenhamos que dar respostas definitivas para questões que já toleramos há muito tempo, como nosso abismo social.

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A terceira parte de "Torto arado" é narrada por uma entidade do jarê (religião afro-brasileira praticada na região da Chapada Diamantina). Como você vê o crescente interesse do público por saberes ancestrais dos povos indígenas e africanos?

Nosso caminhar sobre a terra mostra nossas falhas enquanto espécie e ser social. A lógica capitalista fracassou, e até pensadores ocidentais como Bruno Latour (filósofo francês) e Tim Ingold (antropólogo britânico) bebem dos saberes das sociedades originárias. Não é que vamos encontrar um elixir para resolver nossos problemas. Mas precisamos aprender com esses povos que foram sistematicamente agredidos ao longo de séculos e, apesar de muitas baixas, chegaram aos nossos dias e apontam nossos erros. O que me impressionou no jarê foram os laços de solidariedade formados pela crença e que permitem ao povo resistir através dos tempos. Os povos originários e da diáspora têm algo a nos ensinar sobre diversidade e resistência. A sociedade que queremos construir precisa levar em conta essa diversidade de saberes.

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