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Por — São Paulo

A escritora Etaf Rum, de 34 anos, diz ao GLOBO que nunca se sentiu “tão invisibilizada”. Nascida em Nova York, ela é filha de imigrantes palestinos nascidos nos campos de refugiados na Cisjordânia, para onde foram seus avós durante a expulsão de mais de 750 mil árabes de seus territórios após a fundação do Estado de Israel, em 1948, chamado por eles de “Nakba” (“catástrofe”, em árabe).

Ao comentar o cancelamento da homenagem à escritora palestina Adania Shibli há poucos dias, na Feira do Livro de Frankfurt, depois dos ataques terroristas do Hamas a Israel, Rum afirma que ninguém parece disposto a defender a causa de seu povo. Segundo ela, sua própria editora, a HarperCollins, um dos maiores conglomerados editorais do planeta, recusou-se a postar nas redes sociais um convite aos leitores para conhecer a obra de autores palestinos.

— Não queriam que parecesse uma manifestação pró-Palestina” — conta a escritora em entrevista por chamada de vídeo.

Rum é autora de dois romances publicados no Brasil pela Primavera Editorial: “Uma mulher não é um homem” (2019), que escalou a lista de mais vendidos do The New York Times e ganhou reedição em maio último, e “Eu não quero contar uma história”, que acaba de ser lançado. Em ambos, ela narra o que chama de “dupla opressão” das mulheres palestinas, vítimas do preconceito do Ocidente e reduzidas a esposas e mães em suas comunidades de origem. Rum diz ter se esforçado para não reproduzir “o estereótipo da mulher árabe oprimida” em seus livros. E afirma que a “masculinidade tóxica” presente em comunidades palestinas é resultado do “trauma” desencadeado pela ocupação israelense.

Nesta entrevista, a autora falou de seu compromisso em contar histórias palestinas e sobre a situação de sua família na Cisjordânia (“Eles têm medo de sair de casa”). Evitou falar dos atentados do Hamas, mas explicou por que ainda acredita na paz.

Seus livros falam sobre as restrições impostas às mulheres na comunidade palestina. Você teve medo de contribuir para a propagação de estereótipos ao escrever sobre este tema?

Foi difícil tomar coragem para escrever sobre isso. A imagem da “mulher árabe oprimida” é usada pelo Ocidente para pintar os árabes como bárbaros e terroristas. Eu não queria perpetuar estereótipos. Mas muitas mulheres palestinas sofrem uma dupla opressão: a discriminação do Ocidente e falta de voz dentro de suas próprias comunidades. Quis falar em nome delas e contar suas histórias.

E como foi a recepção?

Imaginei que receberia muitas críticas negativas e que talvez ofendesse muitas mulheres. Sabia que era um tema sensível e desconfortável. Mas até hoje recebo mensagens de mulheres árabes e de diversas comunidades imigrantes que se sentem vítimas dessa dupla opressão. Elas me dizem que meus livros as ajudaram a curar feridas, permitiram que elas entendessem melhor o que sentiam e que conversassem sobre o problema em suas comunidades.

Muitas vezes o papel subalterno relegado às mulheres é justificado pela “tradição”. Como manter as tradições palestinas e ao mesmo tempo questionar o tratamento dispensado às mulheres?

Aprendi a distinguir a tradição que honra nossas origens (nossa língua, nossa comida, a beleza da nossa terra) e uma suposta tradição que é, na verdade, efeito colateral do trauma. Antes da ocupação israelense, homens e mulheres trabalhavam juntos no campo, administravam padarias e cafés. As meninas iam à escola. Com a ocupação, os homens foram lutar e as mulheres foram reduzidas a cuidadoras de crianças em campos de refugiados. A ocupação israelense reescreveu o papel social das mulheres palestinas. Nós retrocedemos. Ao aprender nossa história, percebi que o que chamava de “masculinidade tóxica” era fruto do trauma. Quero que meu trabalho ajude as pessoas a entenderem isso também.

Como a literatura palestina inspira o seu trabalho?

Tenho vergonha de admitir, mas só agora estou conhecendo a literatura palestina. Quando era mais nova, só tinha acesso à literatura americana ensinada na escola. Não conhecia “Homens ao sol” (clássico palestino de Ghassan Kanafani), por exemplo. Tem sido libertador descobrir histórias palestinas e autoras árabes como Diana Abu-Jaber (jordano-americana), Susan Abulhawa (palestino-americana) e Nawal El Saadawi (egípcia, 1931-2021).

O trauma da Nakba é um tema central na literatura palestina. Seu objetivo é narrá-lo da perspectiva feminina?

Não dá para separar o que é ser uma mulher palestina dos efeitos da Nakba. É parte da nossa identidade. Descendo de homens e mulheres traumatizados que se tornaram vítimas e opressores uns dos outros. A ocupação não é só um trauma político, mas afetou nosso amor-próprio e nossa sensação de segurança. Esse trauma está no nosso corpo, no nosso DNA. Quando eu era criança e me perguntavam de onde era minha família e eu respondia: “Da Palestina”, retrucavam: “Você quer dizer Israel. A Palestina não existe”.

Você se sente pressionada a escrever só sobre determinados temas, como o exílio e o conflito com Israel?

Essa pressão vem de mim mesma. Sou tremendamente privilegiada. Resisti à pressão da minha própria cultura para ser apenas mãe e esposa e pude estudar. Para mim, soaria falso escrever histórias de amor ou thrillers. Quero jogar luz sobre a causa do meu povo, especialmente a das mulheres. Se os poucos escritores palestinos que têm projeção não fizerem isso, quem vai fazer? É minha obrigação. Às vezes eu gostaria de escolher mais livremente sobre o que escrever? É claro. Mas, se nossa luta continuar sendo invisibilizada, meu trabalho será continuar contando nossas histórias.

Você ainda acredita na paz?

Sim. Tenho muita esperança. Não é possível que continuem cegos à nossa luta depois de décadas de ocupação e de violência. Um dia o mundo vai ficar do nosso lado. E acho que não vai demorar. Tenho fé em Deus e na Humanidade.

Como os ataques do Hamas afetaram palestinos como você, que lutam pela paz e contra preconceitos e estereótipos? Seu trabalho ficou mais difícil?

Eu recuso a premissa dessa pergunta. Uma pergunta mais legítima deveria ser: “Como a ocupação e opressão de Israel por mais de 75 anos afetou palestinos como eu, que lutam pela paz e contra preconceitos e estereótipos? Seu trabalho ficou mais difícil?”

Como escritora palestina, você sente que tem um papel de informar seus leitores neste momento?

Sinto que tenho a obrigação de contar as histórias de um grupo sub-representado na literatura e nas artes. Ao escrever, meu objetivo sempre foi humanizar e dar voz aos palestinos. Agora, faz ainda mais sentido continuar defendendo os palestinos e informar os leitores que estão genuinamente interessados em expandir suas perspectivas para além do que veem na mídia.

Sob protestos de escritores e editores do mundo todo, a Feira do Livro de Frankfurt, realizada semana passada, cancelou uma homenagem à escritora palestina Adania Shibli depois dos ataques do Hamas a Israel. Como é ser uma palestina no mercado editorial?

Somos silenciados o tempo todo, mas nunca me senti tão invisibilizada e nunca chorei tanto quanto agora. Ninguém fala em defesa da Palestina. Minha editora americana, a HarperCollins, preferiu não dar destaque ao meu livro “Eu não quero contar uma história” neste momento para não parecer pró-Palestina. Isso acontece com escritores israelenses? Meu livro acaba de sair. É agora que eu mais preciso da minha editora.

Eles colocaram um freio na divulgação do livro?

Pedi que fizessem um post nas redes sociais incentivando a leitura de vozes palestinas. Mas a palavra “Palestina” é uma bomba e eles se recusam a dizê-la, o que é extremamente problemático. O apoio americano a Israel é incondicional, não importam as consequências. Por que não dar uma chance aos dois lados? Por acaso nós não somos humanos?

Você ainda tem família na Palestina?

Sim, meus avós, tias, tios e primos vivem na Cisjordânia. A família do meu pai ainda vive no campo de refugiados de Al Amari. Já a família da minha mãe mora numa cidade próxima. Eles têm medo de sair de casa. A Cisjordânia ocupada está sob severo monitoramento do exército israelense, que teme revoltas.

Como você faz para manter sua identidade palestina vivendo nos EUA?

Tenho dois filhos e vivo minha identidade palestina junto com eles. Tento educá-los sobre nossa história, vemos documentários juntos, comemos comida palestina quase toda semana. Gosto de comunicar nossa ancestralidade por meio da nossa comida. O nosso azeite é o melhor do mundo. E falo dos nossos costumes, como a hospitalidade. Quero que eles aprendam que ser palestino não é só trágico, mas também é muito bonito.

Serviço:

‘Uma mulher não é um homem’

Autora: Etaf Rum. Tradução: Cristiano Botafogo. Editora: Primavera Editorial. Páginas: 280. Preço: R$ 59,90.

‘Eu não quero contar uma história’

Autora: Etaf Rum. Tradução: Diego Franco Gonçales. Editora: Primavera Editorial. Páginas: 360. Preço: R$ 64,90.

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