Cultura
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Por — Rio de Janeiro

“Eu não seria o que sou, não teria escrito uma frase, uma linha, uma peça, se não fosse filho de Mario Rodrigues”, afirmou Nelson Rodrigues numa crônica de 1967. Já reconhecido na época como o maior dramaturgo do país, o pernambucano radicado no Rio de Janeiro fazia questão de enfatizar a influência do pai, jornalista morto em 1930. Desde sua estreia, com a peça “Vestido de noiva”, Nelson foi recebido como um divisor de águas no nosso teatro, criador de uma genuína — e moderna — linguagem brasileira. O que pouco se fala, porém, é que o caminho estético havia sido mapeado antes de o dramaturgo nascer.

Essa ideia de uma transmissão entre pai e filho é uma verdadeira obsessão do pesquisador e dramaturgo Caco Coelho. Em seu novo livro, “Dossiê Rodrigues: a genealogia (1900-1934)” (editora Oi Nóis na Memória, R$ 99), ele leva a afirmação de Nelson ainda mais longe: o autor também nada seria sem seus irmãos Roberto, Joffre e Mario Filho. A obra rodrigueana seria, na verdade, uma ampla "conspiração" familiar.

Com as manchetes bombásticas e a dicção sensacionalista dos jornais que fundou (como o polêmico Crítica), o patriarca pode ter lançado a pedra de toque de uma linguagem renovadora. Os irmãos de Nelson, porém, também teriam contribuído decisivamente com suas trajetórias artísticas e jornalísticas, demonstra Coelho. Em seu épico de 1.107 páginas, o autor trata a revolucionária arte visual de Roberto, o texto lírico das reportagens de Joffre e o sentimento nacional de Mario Filho como diferentes bases de um mesmo código genético, que iria encontrar sua consagração no teatro de Nelson.

— A criação de um sentido de brasilidade vai se constituir como a principal colaboração dos Rodrigues às artes de um modo geral — diz Coelho, que editou sete títulos sobre Nelson Rodrigues e se envolveu com pelo menos 20 espetáculos de textos do dramaturgo. —Eles mataram a língua-mãe, para vê-la autêntica. Este é um instrumento libertário que o Brasil deve, em grande parte, aos Rodrigues. Com eles, o vira-lata passava a ter uma voz.

'Está tudo em Pernambuco'

Ao fazer o levantamento do Crítica a partir de 1930, Coelho teve a impressão de que todo o jornal de Mario havia sido escrito por Nelson. A partir daí, voltando mais e mais no tempo, saiu em busca de um ponto de origem dessa dicção tão única. O ator e dramaturgo José Celso Martinez Corrêa lhe deu uma pista: “Está tudo em Pernambuco, tenta buscar o que tem lá”, disse-lhe o pai do Teatro Oficina.

Nelson Rodrigues  — Foto: Adalberto Diniz
Nelson Rodrigues — Foto: Adalberto Diniz

Na terra natal de Mario e Nelson Rodrigues, o pesquisador refaz os passos do patriarca em seu início no jornalismo e analisa sua produção nos acervos digitalizados. Mas é a descoberta do primeiro poema de Mario, “Lábio”, que lhe chama mais a atenção.

— O poema já trazia todas as obsessões que estarão em Nelson — diz Coelho. — Do Mario Pai vem, sobretudo, dois aspectos: a brasilidade, que é o cerne da obra rodriguiana, e a cultura. Irineu Marinho, Conde Pereira Carneiro, Assis Chateaubriand, todos eram unânimes em afirmar que Mario era o maior.

— Isto, me parece que é uma das características mais fortes que podemos encontrar, sempre foi feito pela família — diz Coelho. — A reinvenção de um mundo, a elevação do cotidiano, acrescido das vísceras do imaginário. Era assim nas reportagens policiais, nas reportagens culturais, nas resenhas cinematográficas que o Nelson e/ou o Joffre escreveram. Não faz mais sentido separá-los.

Nelson se dizia “embebido” da violência e da fragilidade do pai. O alimento de ambos, acrescenta Coelho, era o cansaço do cotidiano. A obra de diferentes Rodrigues — jornalistas, artistas, dramaturgos — transita num terreno que o pesquisador define como “super-realidade”.

O livro “Dossiê Rodrigues” recupera registros pouco conhecidos dos primeiros escritos de Nelson Rodrigues, que revelam a sua formação estilística. Entre elas estão resenhas de filmes escritas para a Ponce & Irmão, empresa que administrava cinemas do Rio nos anos 1930. Ainda que o futuro dramaturgo, então com 20 anos, só tenha assinado um único texto dessa safra, é difícil não ver sua autoria em algumas dessas relíquias.

Mario Filho (de charuto) Jose Lins do Rego (ao centro) assistem a treino da seleção brasileira em 1949 — Foto: Iandaiassu Leite / Agência O Globo
Mario Filho (de charuto) Jose Lins do Rego (ao centro) assistem a treino da seleção brasileira em 1949 — Foto: Iandaiassu Leite / Agência O Globo

O caso mais representativo é o material de divulgação para “Zaroff — O caçador de vidas”, de Ernest B. Schoedsack. No texto, a já esquisita história sobre um conde solitário que costuma caçar humanos em sua ilha recebe o acréscimo de cenas absurdas, que simplesmente não estão no filme. O tom da resenha não poderia ser mais rodriguiano: “Mate primeiro. E depois — ame. Só depois de matar você poderá gozar o amor! Ele pensava assim e agia assim. Conheçam a vida sensacional de ‘Zaroff, o caçador de vidas!’”

— Enquanto não houver um tratamento condigno de seu trabalho em prosa, a obra de Nelson continuará sendo negligenciada — diz Coelho. — Sem medo de errar, posso dizer que existe encoberto no mínimo outro tanto, ou até mais, daquilo que o Nelson escreveu. No fim do “Dossiê” eu busco, pela primeira vez, um estabelecimento do conjunto da obra. Existem diversas colunas que nunca foram publicadas. Por exemplo, uma história infantil em quatro capítulos.

‘Pátria de chuteiras’

Outros exemplos da produção da família mostram o interesse dos Rodrigues pela cultura brasileira. O futebol tem em Mario Filho um de seus principais divulgadores. Mario aproximou-o do público popular e criou um imaginário novo em torno do esporte, dando uma outra dimensão à paixão nacional. Em seus textos sobre a “Pátria de chuteiras”, Nelson também foi responsável por ligar o espírito do país ao do futebol. E Joffre teria sido o primeiro repórter a subir os morros do Rio, segundo Coelho. Trouxe de lá o samba e promoveu o primeiro e o segundo desfiles das incipientes escolas.

Quando Nelson foi trabalhar na Ponce & Irmão, foi criado o “Broadway Coktail”, uma série de eventos que apresentaram pela primeira vez os cantores ao seu público, que somente os conhecia pelas poucas rádios que já existiam.

— Noel Rosa, Almirante, Lamartine Babo e muitos outros se apresentaram pela primeira vez ao público, e a divulgação destes eventos era do Nelson — diz Coelho. — Ou seja, grande parte daquilo que conhecemos como Brasil teve a sua primeira percepção com os Rodrigues.

Roberto Rodrigues — Foto: Reprodução
Roberto Rodrigues — Foto: Reprodução

Artista da casa, Roberto Rodrigues influiu em toda a obra de Nelson, de acordo com Coelho. O “Dossiê” reconstitui o processo envolvendo o seu assassinato em 1929, e a repercussão midiática em torno dele. Mario morre poucos meses após Roberto. É o início do fim do recorte temporal fixado por Coelho, que encerra sua genealogia em 1934, com a ida de Nelson ao “sanatorinho”, para tratar uma tuberculose. Sobra, assim, pouco espaço para os filhos mais jovens do patriarca, como o jornalista e escritor Paulo, que viria a morrer no desabamento de um prédio em Laranjeiras, em 1967.

— A estética mórbida, o eixo central da obra rodriguiana que é o amor no mesmo passo com a morte, vem de Roberto Rodrigues — diz o autor. — Ele vive nas peças de Nelson.

Tá no DNA

Mario Rodrigues (1885-1930)

“O cerne da obra do Mario é a preocupação com o Brasil, o que acabou influindo em todos os filhos. ‘Lábio’, o primeiro poema publicado de Mario Rodrigues, já trazia as obsessões que irão se fixar na obra do Nelson. Como jornalista, ele também criou nos filhos o gosto por um estilo bombástico, com manchetes arrasadoras”

Roberto Rodrigues (1906-1929)

“Era o artista da casa. Considerado um dos maiores desenhistas das Américas, foi um dos principais introdutores do modernismo tanto nas artes, como no jornalismo. O jornal que criou, ‘Jazz’, encarnava o ‘espírito moderno’. Era um crítico ferrenho das Escolas de Belas Artes. Mesmo assim, fez a escola abrir as portas a Candido Portinari, tamanho o seu prestígio. Seus desenhos estão na base da dramaturgia de Nelson”

Mario Filho (1908-1966)

“O jornalista criou as condições para que o Brasil ficasse conhecido como o país do futebol. É o primeiro a perceber a paixão do brasileiro pelo futebol e o seu potencial como esporte de massas. Todas as primeiras entrevistas com os jogadores na imprensa e todo o processo de profissionalização do futebol passam por Mario Filho. Consagrou o termo FlaXFlu”

Joffre Rodrigues (1915-1937)

“Era o poeta da família, o mais derramado e humorado. Jornalista conhecido por seu texto lírico, entrevistou os maiores sambistas de sua época, subiu o morro com Lamartine Babo e acompanhou Noel Rosa gravar ‘Com que roupa’ no estúdio. Creio que não faz sentido separar as reportagens policiais e culturais que Joffre e Nelson escreveram juntos. Foi uma conspiração entre eles para o surgimento do rodriguiano como um caminho estético”

Nelson Rodrigues (1912-1980)

“Por meio do teatro, ele vai apresentar uma linguagem genuína brasileira, que já vinha sendo trabalhada havia longos anos pelos Rodrigues, desde o patriarca Mario. A criação deste instrumento da linguagem (o teatro) vai se constituir como a principal colaboração deles às artes de um modo geral. Mas, enquanto não houver também um tratamento condigno com a obra em prosa de Nelson Rodrigues, sua obra seguirá sendo negligenciada”

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