Teatro
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Por Maria Fortuna — Rio de Janeiro

Milhem Cortaz sofreu durante 28 anos com crises de pânico. E não havia quem o convencesse a tomar remédio. Administrava por conta própria os gatilhos que disparavam emoções, memórias e traumas que lhe faziam tremer o corpo todo.

Até que veio a pandemia... E ele se viu exausto de tentar manter o controle. Ao mesmo tempo em que buscava cuidar da cabeça fazendo pão na padaria que abriu na garagem de casa, resolveu aceitar a recomendação de um médico para que tomasse dez miligramas de Pondera. E a vida mudou. Ganhou um pouco de paz, relaxamento.

Muitas vezes, Milhem tentou se equilibrar sobre o fio tênue que liga sanidade à loucura. Por estas e outras, não é fácil para ele encenar “Diário de um louco”, texto do russo Nikolai Gogol, que estreia dia 10, no CCBB do Rio, dirigido por Bruce Gomlevsky.

É o primeiro monólogo do ator de 50 anos. É também sua volta após uma década afastado do teatro, lugar que o forjou na profissão. Apesar de ter se consagrado em filmes como “Carandiru” e “Tropa de elite”, o artista construiu sua carreira na ribalta. Passou pela Commedia Dell’Arte, em Milão, e pelo Centro de Pesquisas Teatrais, de Antunes Filho.

Na TV, um de seus trabalhos mais impactantes pode ser visto na série do Globoplay “Os outros”, de Lucas Paraízo, com direção de Luisa Lima. O projeto devolveu ao ator o prazer do ofício após um período de crise, que o fez questionar a vocação. Definido por Luisa como “um ator em carne viva, que se expõe e se entrega com força absurda”, e pela parceira de cena Maeve Jinkings como um “clown intempestivo, com técnica que mistura ficção e vida real”. Milhem, que está no elenco da série inédita “Lua vermelha”, também do Globoplay, deu a seguinte entrevista ao GLOBO, por Zoom, de São Paulo.

Milhem Cortaz em “Os outros”: “esse trabalho veio para eu deixar muita coisa para trás”, ele diz — Foto: Divulgação
Milhem Cortaz em “Os outros”: “esse trabalho veio para eu deixar muita coisa para trás”, ele diz — Foto: Divulgação

Que caminho escolheram para encenar o texto “Diário de um louco”?

Aos 50 anos, preciso falar de amor. Escolhi abordar o afeto, o amor real, a falta dele, o amor-próprio, o sonho, a solidão, esse mal que nos assola e causa síndrome do pânico, depressão. Ninguém consegue falar de amor feliz. Só existe poeta triste. Precisava falar dessa confusão toda na minha vida. Foi uma catarse esse acúmulo de sentimentos da pandemia, e que eu estava vivendo há dez anos. Está todo mundo tomando remédio, flertando com doenças.

O que você sente quando bate a crise?

Sou uma pessoa louca, cheia de lugares que habitei sendo artista. Não é fácil fazer essa peça, falar sobre isso. Tinha altos pânicos no meio dos ensaios. Nem falei para o Bruce... Ficaram impressionados com o tremor da minha mão. Na verdade, estava tendo uma ansiedade do tamanho do mundo, mas protegido pelos deuses do teatro.

Quando se sentiu mais próximo da loucura?

Cheguei perto no sentido de impotência, de não saber mais o que fazer. Até que a sobrevivência te faz entender. Está vivendo aquilo, precisando resolver, se esforçando, dando tudo. Quando está no limite, vive o vazio. Esse vazio que deprime. A arte me deu força para vencer isso. Você vai para um ensaio sem saber o que está fazendo, fica desesperado porque não está fluindo, até que uma hora flui.

E foram dez anos longe dos palcos...

A pior coisa que fiz foi deixar de fazer teatro, que me cura. Voltei e minha vida voltou a fazer sentido. É algo político. O espetáculo me dá o poder de palavra, de falar sobre diferenças de classe. A profissão do protagonista é apontar lápis. Ele sonha ser alguém. E as pessoas não o enxergam. Faço um trabalho parecido com os pães, de alimentar pessoas em situação de rua, acolher, tentar fazer com que se sintam iguais.

O que está aprendendo sobre você com a peça?

Enxergando o meu lado são. Uma vez, eu disse ao (ator) Paulo Autran que queria envelhecer logo para ter o relaxamento dele. Ele respondeu: “Você nunca vai ter esse lugar, com você funciona desse jeito que é”. Estou aprendendo a me divertir, mas tem um lugar entre o personagem e eu que é confuso para mim. Fui fazer o filme do Lula (“Lula, o filho do Brasil”, de 2009) por dinheiro e acabou sendo um dos mais importantes da minha vida. Porque fiz meu avô. Tinha um problema gigante com ele, homem agressivo. Fazendo o filme, descobri ele é meu super-herói, que todos os personagens que fazia tinha o meu vô semianalfabeto, sua inocência. Resolvi um problema de vida. A arte nunca vai ser simples para mim. Ela vem como catalisadora.

Trabalho e vida se confundem...

Adoraria ser um ator proustiano, que não se envolve. Faço isso também, mas dói em mim.

Você me parece um tanto indomável. É por aí?

Sou coerente com o que faço e seguro. Isso me dá uma liberdade que é a seguinte: para ser muito louco, tem que ser organizado. Se fosse indomável e não tivesse disciplina seria inconsequente. Toda essa loucura tem um racional forte por trás. O Bruce está me me exigindo um teatro mais contido, em que as emoções implodem dentro. Geralmente, beiro o melodrama.

Então, “Diário de um louco” tem bastante sobre você...

Sim, essa não compreensão sobre mim, com o que sinto. Sou casado há 23 anos (com a artista circense Ziza Brisola), tenho uma filha (Helena, de 15 anos). Mas de onde vêm essas doenças da depressão? De uma solidão que, no mundo de hoje, não tem como não ter. Esse vazio que tem do meu sentimento até chegar no outro. Um vazio que nos deixa perdido. É um vácuo. Para chegar no personagem, passo por um papo comigo mesmo, minhas inseguranças, da falta de as pessoas te compreenderem, te acharem louco. Acho que sou confundido com essa loucura. Se o personagem, que é lá de 1800, tivesse (Síndrome de) Tourette, ninguém saberia. Taxariam de louco e pronto. E ele é tão inteligente, as coisas que fala são de uma sanidade... Essa clareza o deixa completamente sozinho no mundo.

Aquela ideia de que loucura, muitas vezes, pode ser excesso de lucidez...

Sim. Tem essa busca pessoal de tentar entender o que provoco nas pessoas, o que faço que causa essa impressão, por que há essa leitura de mim. Por exemplo, você dizendo que sou indomável...

Ouvi você dizer que “Os outros” foi o trabalho mais difícil da sua vida? Por quê?

Eu estava sensível demais, à flor da pele e criativo. Tive medo que tudo aquilo que coloquei de emoção não tivesse organizado. Mas a técnica me salvou.

‘Fui para o inferno muito cedo, o que me amadureceu rápido’

Milhem Cortaz em cena de  “A vida de um louco”, que vai estrear no CCBB do Rio — Foto: Divulgação
Milhem Cortaz em cena de “A vida de um louco”, que vai estrear no CCBB do Rio — Foto: Divulgação

A série “Os outros” veio logo depois de enfrentar uma crise existencial e profissional, né?

A gente passou por uma pandemia, por quatro anos políticos horrorosos. Tive diversos problemas pessoais, e esse trabalho veio para eu deixar muita coisa para trás. Um pedaço de um mundo antigo, de ranço machista, de dor, sentimentos e técnicas antigas. Tinha um olhar feminino e liberdade para eu mostrar um potencial de delicadeza, silêncio e sutileza que tenho como artista e pessoa.

Então, o desgosto era mais com você mesmo, com a sua forma de trabalhar, do que com a profissão?

Sim. Estava cansado de estar sempre recomeçando. De ter que ficar fazendo média, agradar, ser inteligente... De não ser eu mesmo. Estava insatisfeito e fui fazer pão. Quando veio a série, descobri no ensaio que a insatisfação era comigo. Que há dez anos não fazia teatro, que estava me repetindo, usando os mesmos truques e que ninguém tinha culpa disso. Prometi que nunca mais vou deixar de fazer teatro. É o lugar que me alimenta. Quando a cortina abre, é a gente na essência.

Essa insatisfação estaria ligada ao fato de te chamarem para fazer personagens marcados pela violência? Esse estereótipo te incomoda?

Nunca me incomodou. O (jornalista) Marçal de Aquino me falou uma coisa na época do “Carandiru”: “Se te taxarem só para isso, fica tranquilo: tem 150 tipos de assassinos diferentes para você fazer”.

Você foi fazer pão para buscar saúde mental. Essa prática funciona da mesma forma que o teatro para você, no sentido de cura?

O paralelo é idêntico: solitário, individual. Tem que esperar, varia de acordo com o seu humor. Entro na minha padaria e é igual às três horas que antecedem o espetáculo no camarim. Não tem família, relógio... Me sinto capaz, não dependo de ninguém. O teatro tem o poder de cura do alimento. Estou sempre alimentando as pessoas. O pão que faço é grande, você vai ter que dividir ou congelar e comer por vários dias. No teatro, a pessoa senta e tem duas horas para ela. A mensagem mexe com o coração das pessoas. Entre 50, uma eu vou mudar. Quando estava fazendo a peça gay “O melhor do homem”, um cara me disse: “O espetáculo foi tão encantador que nunca mais deixei de ir ao teatro” (Milhem chora). Mudei a vida de alguém. Preciso da arte para comer. Não sou romântico, faço teatro para comer e todo mundo na minha casa come porque faço teatro. Mas esse romantismo é o que faz um ator diferente.

Aos 15 anos, sofreu um acidente em que foi parar embaixo de um caminhão, após noitada regada a cocaína. Foi quando sua mãe te mandou para a Itália e lá, você já contou ter tido um “encontro com Deus”. Pode explicar?

Só pode ter sido um encontro com Deus. Um rapaz que estava saindo do Brasil quase expulso pela família de forma amorosa... Me mandaram para a casa da minha tia por causa de drogas. Usei dos 11 aos 15. Fui para o inferno muito cedo, o que me amadureceu muito rápido. Um dia antes da viagem, tinha feito loucuras. Chegar na Itália e nunca mais usar, canalizar minha loucura para um caminho produtivo, é meu encontro com Deus. Porque, juro, saí do Brasil viciado e entrei na Itália uma pessoa normal. Nunca mais cheirei. Eu não bebo. O teatro organizou toda a minha loucura. Virei ator na Itália.

Em 2022, o ator David Junior fez um post sobre abuso sexual e você respondeu que também sofreu essa violência. Seria o caso de a gente falar disso?

Depois que minha mãe se for, eu falarei. Tenho toda a liberdade em relação à minha companheira e à minha filha, sei que não vou envergonhar ninguém. Tenho muita vontade de falar, mas pela minha mãe, prefiro não falar agora.

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