Para empreendedores de tecnologia, a hora do encontro com um investidor pode ser um daqueles momentos determinantes para o futuro do negócio. São conversas que, em geral, vêm após um pitch — apresentações rápidas e persuasivas sobre o negócio da startup e seu potencial. Foi numa dessas reuniões, em que buscava capital para seu negócio, que Mariana Dias teve de responder a um executivo se planejava ter filhos e qual era o papel do marido dela em casa.
— Ele chegou a perguntar sobre o que aconteceria com a empresa se eu engravidasse — conta Mariana, cofundadora e CEO da plataforma de recursos humanos Gupy. — Por muito tempo, normalizamos esse tipo de comportamento e não questionamos por que homens e mulheres eram, e ainda são, tratados de forma diferente. Depois de algumas experiências, passei a questionar e me posicionar mais.
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Com quase dez anos de mercado e rodadas de captação de investimento bem-sucedidas, a Gupy se firmou como uma das maiores plataformas de recrutamento do país — tem 36 milhões de usuários registrados e 4 mil clientes ativos. Com 750 funcionários, a empresa tem metade dos cargos ocupados por mulheres em todos os níveis hierárquicos.
Fundadoras são minoria
A experiência da fundadora da Gupy reflete a realidade de um setor em que as mulheres são minoria. Em cada dez pessoas que fundam uma startup no Brasil, oito são homens. Dos 24 unicórnios (startups avaliadas em mais de US$ 1 bilhão) no país, contabilizados pela plataforma Distrito, todos foram criados por homens, e apenas três têm mulheres como cofundadoras.
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Entre as mulheres que são exceção no grupo dos unicórnios brasileiros está Mariana Paixão, cofundadora da Loft, plataforma digital de compra e venda de imóveis, e ex-diretora de operações da empresa. A empreendedora, que hoje dedica-se à Melvi, startup de saúde da qual é CEO e cofundadora, acredita que a própria dinâmica de criar um negócio de tecnologia gera um ambiente desafiador para mulheres:
— Muitas vezes somos excessivamente cautelosas em relação a nossas habilidades, nos percebendo menos preparadas do que realmente somos. Aqui temos um enorme motivo para termos menos mulheres founders de startups.
Rede limitada de contatos
Mariana Paixão e Mariana Dias são exceções de uma indústria que segue distante de ter uma representação condizente com a demografia brasileira — 51,5% da população são mulheres. O perfil de fundadores de startups continua majoritariamente masculino (79,8%) e branco (70,7% do total), segundo o estudo mais recente da Associação Brasileira de Startups (Abstartups) e da Delloite.
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Ingrid Barth, presidente da Abstartups, afirma que o abismo de gênero no setor passa por barreiras:
— Mulheres enfrentam vários desafios como o acesso limitado a redes de contatos e mentores, preconceitos e estereótipos que questionam suas habilidades técnicas e de liderança, além da dificuldade em obter financiamento.
Em um setor em que captar recursos é decisivo para fazer o negócio prosperar, 72,4% das empreendedoras relatam ter dificuldades em acessar investimento, em especial quando precisam fazer o pitch, segundo pesquisa da Endeavor. Em 2020, a organização apontava que startups fundadas exclusivamente por mulheres receberam apenas 0,04% de todo o investimento alocado nesses negócios no país.
Camilla Junqueira, diretora-geral da Endeavor Brasil, ressalta que ao desafio de as mulheres levantarem capital somam-se ainda outras barreiras, como o viés de gênero no contato com clientes e fornecedores e o peso da dupla jornada daquelas que se desdobram entre o empreendedorismo e o trabalho doméstico.
— As mulheres do setor de tecnologia enfrentam diversos desafios, não apenas ao iniciar seus empreendimentos, mas também ao tentar escalá-los — diz Camilla.
A inovação a partir de startups criadas majoritariamente por homens gera efeitos para consumidores e toda a sociedade, ressalta a economista Itali Collini, diretora da Potencia Ventures no Brasil. Um deles, destaca, é a concentração de riqueza e renda em um mesmo grupo de pessoas. Há ainda um efeito “perverso” nos serviços e produtos ofertados por essas startups:
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— Se os recursos são alocados para startups que não são diversas, estamos perpetuando soluções incompletas para a sociedade. Os investidores também perdem a chance de diversificar seus portfólios e trazer mais retorno a seus fundos.
A Potencia trabalha com investimento de impacto e negócios fundados por grupos sub-representados. Em 2023, a gestora abriu sua primeira turma no Brasil para capacitação de fundadores e fundadoras mulheres, negros e negras e LGBTQIA+.
— As 20 startups do programa têm ao menos uma mulher na fundação, e 75% têm fundadores pretos ou pardos. A gente precisa sair da boa intenção para efetivamente assinar cheques. É a alocação de dinheiro que vai virar o ponteiro para as empreendedoras — completa.
A empreendedora Ludmila Pontremolez concorda que a ausência de diversidade é um entrave à própria inovação. Formada pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São Paulo, ela é cofundadora e diretora de Tecnologia da Zippi, fintech voltada para micro e pequenos empreendedores. O viés de gênero , diz, “descalibra” a avaliação de iniciativas e diminui o espaço para boas ideias no setor.