Época Ruan de Sousa Gabriel

Coluna | Quais os recados políticos da Nobel polonesa Olga Tokarczuk?

‘Sobre os ossos dos mortos’ opõe Blake, Dionísio e a astrologia a filosofias engenhosas em defesa da barbárie
A polonesa Olga Tokarczuk Foto: Getty Images
A polonesa Olga Tokarczuk Foto: Getty Images

Quando a polonesa Olga Tokarczuk levou o Nobel de Literatura, em outubro passado, especularam se a Academia Sueca, que, dizem alguns, gosta de recadinhos políticos, tentava cutucar a extrema-direita europeia (mas não só). Tokarczuk é com frequência descrita como uma feminista de esquerda, vegetariana e incômoda ao governo reacionário da Polônia. No entanto, os suecos também premiaram o escritor austríaco Peter Handke, que discursou no funeral do ditador sérvio Slobodan Milošević , acusado de crimes de guerra.

Talvez os recados políticos do Nobel sejam só uma lenda ou não sejam assim tão óbvios ou coerentes. E talvez seja mais interessante procurar por recados políticos nos livros de Tokarczuk, ou ao menos em Sobre os ossos dos mortos , romance dela publicado por aqui pela Todavia, com tradução de Olga Bagińska-Shinzato.

Sobre os ossos dos mortos é narrado por Janina Dusheiko, uma mulher idosa que vive num vilarejo polonês não muito longe da fronteira com a República Tcheca. Ela, aliás, gosta de atravessar a fronteira: “É uma coisa que me dava prazer, porque me fazia lembrar dos tempos em que isso era proibido”. Dusheiko dá aulas de inglês para crianças, caminha pelas redondezas, fica de olho nas casas de veraneio dos ricos que vivem em Varsóvia, traduz os poemas de William Blake e faz mapas astrais.

De repente, alguns de seus vizinhos começam a aparecer mortos. São todos homens e caçadores. Dusheiko tenta convencer a todos, à polícia e à vizinhança, de que não há mistério nenhum naqueles assassinatos: aqueles homens maus haviam sido mortos pelos animais, que, talvez em consequência das mudanças climáticas, estavam se tornando agressivos e vingativos.

De cara, dá para pensar que o recado político de Tokarczuk é em defesa dos direitos dos animais e da preservação ambiental. E é mesmo, mas dá para procurar outros. No vilarejo de Dusheiko, os caçadores usavam “púlpitos” para abater os animais distraídos.

Esses púlpitos eram estruturas de madeira atrás das quais os caçadores se escondiam e onde apoiavam suas armas para atirar. “É um mal pérfido e sofisticado construir cochos, colocar lá maçãs frescas e trigo para atrair os animais e, depois que se acostumam e ficam mansos, atirar na cabeça deles de um esconderijo, de um ‘púlpito’”, denuncia Dusheiko, que, depois, diz que esses “púlpitos” se “pareciam mais com as torres dos campos de concentração”.

“Que mundo é esse onde matar e causar dor é tido como algo normal?”, ela pergunta, mas a resposta aparece na frase imediatamente interior: “Essa grande matança cruel e insensível, mecânica, sem nenhum remorso, sem nenhuma pausa para pensar, embora muito pensamento esteja implicado a filosofias e teologias engenhosas”. Ofereceriam essas “filosofias e teologias engenhosas” justificativas para a “matança cruel e insensível”? Na cidadezinha de Dusheiko, o padre nunca deixava de abençoar os caçadores.

Para o leitor brasileiro, a imagem de um púlpito que serve de apoio às armas e a “filosofias e teologias engenhosas” que legitimam a matança parece tragicamente familiar. Aí talvez esteja a crítica mais incisiva de Sobre os ossos dos mortos : a denúncia das filosofias e teologias engenhosas que, por vias tortas ou diretas, incentivam, justificam e absolvem a destruição — da natureza e do homem.

Que discursos engenhosos seriam esses? O sermão que absolve a violência, convida à submissão e demoniza o outro? A crença de que é melhor derrubar as árvores no meio do caminho do que atrasar a marcha do progresso? A fé inabalável em determinados indicadores econômicos que deve confortar os pobres quando seus direitos são espoliados?

O problema está na engenhosidade perversa dessas filosofias e teologias, na capacidade delas de obscurecer a realidade em vez de iluminá-la. Está na instrumentalização desses discursos. O problema não é púlpito, mas que ele sirva de apoio às armas (mas se o púlpito se amolda tão facilmente ao braço armado talvez o problema esteja nele mesmo).

O problema é rigidez dessas filosofias e teologias nada porosas , que se apresentam como verdades indiscutíveis. “Eu não conseguia parar de pensar que aqueles que usam a palavra ‘verdade’, mentem”, diz Dusheiko.

Dusheiko responde essa perversidade filosófico-teológica com outras filosofias e teologias também engenhosas. Ela se apega a outros referenciais teóricos e práticos para resistir às ideologias da matança. Dusheiko, a vegetariana, traduz Blake com um ex-aluno chamado Dionísio.

Ela zomba do catolicismo tradicionalista e pró-caça ao procurar palavras polonesas capazes de dar conta dos versos e ideias do poeta inglês que respondeu à rigidez iluminista com misticismo herético. Sobre os ossos de mortos , aliás, empresta seu título de um verso de Blake.

O parceiro de tradução de Dusheiko tem o nome do deus grego do vinho, do prazer. O prazer e a poesia contra a rigidez de filosofias e teologias loucas por sangue.

Dusheiko também é astróloga, crê nos astros com mais fervor do que muitos crentes creem nos desígnios divinos. Nada escapa aos astros. As estrelas determinam desde a programação da TV até a data da morte dos homens.

No começo, a astrologia aparece como mais uma dessas armas que Dusheiko empunha para zombar das filosofias e teologias engenhosas que aprisionam e matam. Mas, com o passar das páginas, a astrologia, que ao lado de Blake e Diosínio parecia um convite a pensar diferente, à liberdade, se transforma num discurso dogmático, com a pretensão de abarcar absolutamente tudo debaixo do sol e também acima dele. Aquilo que nasce para combater a rigidez acaba se tornando igualmente rígido. A astrologia, diz Dusheiko, explica até porque os caçadores morreram como morreram.

Antes de ser astróloga, Dusheiko era engenheira e construía pontes. Pontes: há melhor símbolo do progresso e da racionalidade capitalista do que a construção de pontes para melhor escoar as mercadorias e integrar as economias? (Talvez trens.)

Ela também deve um relacionamento íntimo com um protestante que fazia projetos de autoestrada. Querem outro símbolo do progresso e da racionalidade capitalista? Um protestante europeu que prefere subjugar o mundo criado por Deus com concreto do que as especulações metafísicas do catolicismo. “O que me dava mais prazer era transformar uma ideia em números”, diz Dusheiko, que também confessa que o talento matemático lhe foi muito útil quando enveredou para a astrologia.

Ela trocou a engenhosidade da engenharia de pontes — e ela fez ponte na Síria, na Líbia e em outros lugares onde os tais valores ocidentais fizeram estrago — pela engenhosidade dos astros, tão rígidos em suas órbitas, tão intrometidos, cuidando que os homens também nunca parem de girar em torno de si próprios e de um outro.

Se há algum recado político em Sobre os ossos dos mortos (lembrando que, no fim, quem inventa esses recados é sempre o leitor) talvez seja tomar cuidado para não enrijecer demais as ideias ao contestar ortodoxias, para não transformá-las em novas ortodoxias. E sempre duvidar dos púlpitos que sustentam braços armados. E dos astros.

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