Vinhos de Portugal
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Do alto da Serra da Ursa, com as montanhas da Arrábida atrás, a planície que se estende até se ver Lisboa do outro lado do Rio Tejo parece o que de fato é: uma enorme mancha urbana cortada por rodovias, canais ferroviários, polos logísticos e industriais, com intermináveis áreas residenciais. Mas, daquele mesmo lugar, o enólogo da Bacalhoa, Vasco Penha Garcia, vê outra coisa. “Daqui até o fundo da serra é terra de argila. Depois, temos uma área de transição e então entramos nos solos de areia.”

A prova "Setúbal, vinhos de areia e mar", com o crítico Manuel Carvalho e a jornalista Alexandra Prado Coelho, será realizada neste sábado, às 16h. Os ingressos estão à venda no site: ingresse.com

Nessa simples descrição se faz o retrato dos vinhos da Península de Setúbal. Montanha e planície, cidade e natureza, solos ricos e terras arenosas, frágeis e pobres, espaço para a uva Moscatel e reinado absoluto da Castelão. Todas as diferenças coexistem, como se o velho mundo caipira persistisse em resistir aos avanços das sociedades pós-industriais. A verdade é que resiste. Na região do Parque Natural da Serra da Arrábida, na faixa costeira para lá do Rio Sado até a divisa do Alentejo e, principalmente, no interior da península, há oito mil hectares de vinhas em produção. A maioria esmagadora em solos de areia.

Longe da Arrábida, quer dizer, a uns 40 quilômetros dos solos de calcário e argila, o enólogo Bernardo Cabral caminha em direção a uma das vinhas velhas da vinícola Pegos Claros e exulta: “Aqui, começa-se logo a sentir o terroir nos pés”. Bernardo usa a expressão francesa para descrever o que nenhum termo do português é capaz de expressar numa única palavra: a natureza dos solos, dos climas, das uvas ou dos saberes tradicionais que estão na base da identidade de um vinho. O que ele sente quando caminha para a vinha não é diferente do que se sente quando se está na praia. Da casa da adega até uma das vinhas velhas de Pegos Claros, caminha-se sobre um trilho de areia branca, fina, envolvente, que exige esforço para se vencer. Como é possível a sobrevivência das videiras num solo assim tão pobre?

Para Bernardo Cabral, a “areia é um substrato, um mero suporte para que as plantas fiquem em pé” — Foto: Nuno Ferreira Santos/Público
Para Bernardo Cabral, a “areia é um substrato, um mero suporte para que as plantas fiquem em pé” — Foto: Nuno Ferreira Santos/Público

Na resposta está talvez a principal razão do fascínio dos tintos de Setúbal. Na sua infância, as videiras vivem em hidroponia (a agricultura que se faz sem terra). É preciso lhes dar matéria orgânica e regar até que as suas raízes cheguem a zonas mais profundas. Porque abaixo das areias há sempre camadas de argila onde a água se retém e os nutrientes se acumulam. “Anda-se um metro e há 30 centímetros de areia. Um pouco mais à frente pode haver três metros de areia até a argila”, diz Domingos Soares Franco, durante quatro décadas responsável pela enologia da José Maria da Fonseca.

“A areia é um substrato, um mero suporte para que as plantas fiquem em pé”, diz Bernardo Cabral. Se sobreviverem aos primeiros anos, o que tem sido difícil com a acumulação de anos secos, ganham lastro para durar um século ou mais. Em Pegos Claros, há a vinha nova, com 70 anos, e a velha, com cerca de cem. Por toda a região há vinhas com esse perfil de sobrevivência — ao clima e ao avanço das cidades. Quando chegam à idade adulta, resta esperar pela natureza. “A profundidade da argila dá notas de concentração diferentes nos vinhos”, explica o enólogo de Pegos Claros, uma vinícola que produz cerca de 70 mil garrafas por ano de vinhos tintos de enorme classe.

Para vencer a distância da areia até a argila, há uma uva que brilha pela sua capacidade de adaptação às duras condições dos solos de Setúbal: a Castelão. A uva é, como diz Vasco Penha Garcia, “a rainha das areias”, verdade que tanto traduz o seu domínio nas vinhas da região (“a Castelão representa hoje uns 60% das nossas uvas”, diz Henrique Soares, presidente da Comissão Vitivinícola Regional da Península de Setúbal) como o reconhecimento do seu potencial para criar vinhos de classe superior. Para poderem usar a denominação de origem “Palmela”, a mais consagrada da região, os tintos têm de ter, no mínimo, 66% de Castelão no seu lote.

Para Vasco Penha Garcia, a Castelão é a “rainha das areias” — Foto: Miguel Madeira/Público
Para Vasco Penha Garcia, a Castelão é a “rainha das areias” — Foto: Miguel Madeira/Público

Perda de identidade

De onde veio essa uva que depressa se tornou uma espécie de emblema da região? A Península de Setúbal foi arrasada pela praga do filoxera, na segunda metade do século XIX, e teve de renascer. As videiras ameaçadas entraram com força nas areias de áreas mais interiores porque nesse ecossistema o inseto tem mais dificuldade em prosperar.

O drama da filoxera acabou resolvido com a utilização de porta-enxertos americanos, mais resistentes ao inseto.

Felizmente, por volta de 1850, antes dos ataques do inseto, a Castelão tinha chegado a Setúbal. “Veio da Vidigueira”, uma região importante dos vinhos do Alentejo, diz Domingos Soares Franco. “Resulta de um cruzamento entre a uva Sarigo e a Alfrocheiro Preto. Foi plantada na Cova da Periquita, e nós temos essa marca (Periquita) desde 1850”, diz Domingos.

Durante anos, para os produtores locais, a Castelão era a Periquita por causa dessa origem. Daí irradiou para todos os solos de areia da região. “Há uns 20 anos, mais de 80% dos vinhos tintos da região eram todos Castelão”, diz Henrique Soares. No século XXI, porém, as modas ditadas pela crítica e pelas tendências do mercado retiraram o protagonismo da Castelão. “Seguimos a tendência geral do país, onde se verificou a migração de uvas do Norte de Portugal para o Sul”, diz Henrique Oliveira. Mas não foi só a Touriga Nacional ou a Touriga Franca que lá chegaram. Uvas francesas como a Syrah instalaram-se também em muitas das regiões das areias.

“Estamos a perder a identidade da região”, diz Domingos Soares Franco. “Nos vinhos com denominação de origem, até por força da lei, a Castelão predomina; nos vinhos regionais, não”, acrescenta. O que quer isso dizer? Que a região se divide entre a tradição e a identidade dos vinhos de gama mais alta e um lote de vinhos mais indiferenciados voltados para as preferências dos consumidores — mais intensidade, mais cor, menos complexidade de aromas e de sabores.

Há exceções? Sim, com destaque para os excelentes Cabernet Sauvignon da Bacalhôa ou o Hexagon que a José Maria da Fonseca faz a partir de um lote de diferentes uvas nacionais e estrangeiras. Setúbal, ainda assim, sabe que, sem a força da Castelão das areias, perderá um lugar na realeza dos vinhos de Portugal. Não por uma questão de marketing, também por causa da categoria dos vinhos que essa associação da areia com a planta garante. “Os melhores vinhos desta região são sempre os que são feitos com Castelão”, diz, assertivo, o enólogo António Saramago, que tem a experiência de 62 vindimas em Setúbal.

“A Castelão é uma uva difícil. As vinhas não podem nunca ter menos de 15 anos de idade. Rega, zero, não conheço um único vinho dessa uva bom vindo de vinha regada. Poda e produção têm de ser muito controladas. Não pode ser uma vinha com altitude. E os Castelão precisam sempre de alguns anos de garrafa”, diz Saramago. Na prática, a receita do enólogo contradiz muitas das tendências modernas da vinha e do vinho.

Ele pede tempo à vinha e ao vinho na garrafa, pede cuidados especiais no manejo das videiras e pede baixas produtividades — as vinhas de Pegos Claros produzem três toneladas de uvas por hectare, enquanto uma vinha regada pode chegar às 20. Não dá para produzir vinhos baratos assim. Mas, para Saramago, que baseia o seu negócio em vinhos “acima dos € 30 por garrafa”, não há alternativa: “Nós temos o conhecimento e as técnicas para tratar bem dessa uva, que é de cá. Onde fica a melhor Touriga Nacional? No Dão. E por quê? Porque é de lá. Aqui, é a região da Castelão”, diz.

Entre o “conhecimento e as técnicas” de que António Saramago fala, o trabalho no lagar está entre os mais importantes. A começar pelo próprio lagar, que deve ser o mais possível largo e com pouca profundidade, como os de Pegos Claros, “ideais para a Castelão, porque distribuem bem a energia durante a fermentação e evitam temperaturas mais elevadas”, nota Bernardo Cabral. Se, como diz Domingos Soares Franco, “o problema das areias é a falta de acidez”, é também no lagar que essa lacuna se preenche.

António Saramago: “Nós temos o conhecimento e as técnicas para tratar bem da Castelão, que é de cá” — Foto: Miguel Madeira/Público
António Saramago: “Nós temos o conhecimento e as técnicas para tratar bem da Castelão, que é de cá” — Foto: Miguel Madeira/Público

Em Pegos Claros, uma uva rara e identificada há pouco tempo, a Tintinha, entra no lote com a Castelão por ter altos teores de acidez. Mas há outra receita que Bernardo Cabral usa na vinificação: engaço, a parte vegetal que acolhe os bagos das uvas. “A areia dá vinhos com muita fruta madura, para não serem chatos, precisam de um pouco de engaço. Têm muita fruta concentrada, mas é tanta que precisa de ser equilibrada, e nós vamos pelo lado vegetal”, diz o enólogo.

Com as uvas de cada região a serem cada vez mais importantes para se comunicar originalidade e identidade aos consumidores, a Comissão dos Vinhos de Setúbal discute com os produtores o que fazer para puxar pela força da Castelão. Se a região da Bairrada ganhou com a aposta na uva Baga, Setúbal pode seguir o mesmo caminho ao dar brilho à sua mais importante variedade genética. “Temos um terço da Castelão que está plantada em Portugal e achamos que os vinhos que origina estão alinhados com as tendências dos consumidores”, diz Henrique Soares, referindo-se a um cada vez mais evidente recuo nas apostas de vinhos alcoólicos, encorpados e frutados. Ainda este ano deve ser anunciada uma categoria superior de vinhos feitos com Castelão.

Com três grandes empresas e duas grandes adegas cooperativas a dominar o mercado, Setúbal resistiu pela força dos seus moscatéis, mas precisa de contrariar a ideia errada de que é apenas uma região de grandes produções. Novos produtores, com destaque para a Quinta do Piloto ou Leonor de Freitas, apostam num compromisso que tende a valorizar a qualidade em detrimento do volume. Exemplos como o de António Saramago ou de Pegos Claros mostram que é possível transformar a Castelão num objeto de desejo baseado na elegância e sofisticação dos aromas e gostos. Quando atinge a plenitude, um bom Castelão com alguns anos de guarda adquire um perfil irresistível, como que a provar de novo o grande milagre das vinhas de Portugal: quanto mais pobre, árida e inóspita for a terra, melhor é o vinho.

O Vinhos de Portugal 2024 é uma realização dos jornais O Globo, Valor Econômico e Público, em parceria com a ViniPortugal, com a participação do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto; apoio das Comissões de Vinho de Alentejo, Beira Interior, Dão, Lisboa, Península de Setúbal, Tejo, Vinhos Verdes e da Agência Regional de Promoção Turística Centro de Portugal, Turismo de Portugal, Tap Air Portugal, AB Gotland Volvo e Shopping Leblon; água oficial Águas Prata, hotel oficial Fairmont Rio (RJ), local oficial Jockey Club Brasileiro (RJ), loja oficial Porto Divino, rádio oficial CBN e curadoria Out of Paper. A edição de São Paulo conta ainda com a Cidade de São Paulo como cidade anfitriã e SP Negócios como apoio institucional.

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