Eduardo Affonso
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Eduardo Affonso

Arquiteto e cronista

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Eduardo Affonso

Arquiteto e cronista

RESUMO

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GERADO EM: 29/06/2024 - 00:05

Reflexões de um ex-censor sobre a atualidade artística

Um ex-censor relembra sua atuação nos anos 60 e 70, criticando a militância progressista atual que boicota e cancela quem não segue sua cartilha. Reflete sobre a censura na época e a atualidade, buscando artistas capazes de driblar os novos censores.

No mesmo 19 de junho em que Chico Buarque fez 80 anos, Solano Fernandes (nome fictício — como, aliás, quase tudo o que se segue) completou 100. Tinha 46 quando lhe caiu nas mãos um inocente samba em que a vítima de um relacionamento tóxico (Hoje você é quem manda/Falou, tá falado/Não tem discussão) se ressignifica enquanto pessoa subalternizada (Apesar de você/Amanhã há de ser outro dia) e exige reparação da dívida histórica (Vou cobrar com juros, juro (...) Você vai pagar e é dobrado/Cada lágrima rolada nesse meu penar).

De boa-fé, Solano — censor, servidor público concursado — liberou o samba. Desde então, têm sido 54 anos de culpa e autoflagelação por não ter captado a mensagem subliminar. Como um garoto de 20 e poucos anos pôde enganá-lo e a toda a máquina montada para proteger o público e as autoridades daqueles que tentavam ferir a dignidade e o interesse nacionais?

E se A minha gente sofrida/Despediu-se da dor/Pra ver a banda passar/Cantando coisas de amor fosse uma metáfora para a revolução cubana — indo tudo por água abaixo (Mas para meu desencanto/O que era doce acabou) com o golpe de 64? Quem garante que Levou os meus planos/Meus pobres enganos/Os meus 20 anos/O meu coração não seria referência à luta armada? Ou que Não chore ainda não/Que eu tenho a impressão/Que o samba vem aí não era um chamado à resistência ao AI-5? Devia ter censurado tudo. Sem nem ler. É Chico? Veta. Mais ou menos como hoje faz (por outros meios) a militância progressista — que boicota, intimida e cancela quem desafia o coro dos onipotentes e não reza conforme sua cartilha.

Aposentado compulsoriamente por causa do vacilo, Solano se manteve em alerta máximo. Viu em “Geni” a representação da burguesia neoliberal (Joga pedra na Geni/Joga bosta na Geni). Em “Lígia” (E quando eu me apaixonei/Não passou de ilusão), uma alusão às Diretas Já. “Eu te amo” (Ah, se já perdemos a noção da hora/Se juntos já jogamos tudo fora) seria uma insuspeitada crítica à falta de apoio da esquerda à Constituinte e ao Plano Real. (A cronologia dos fatos e das canções é o de menos: lógica nunca foi o forte dos censores — e isto aqui é uma alegoria.)

Capa do audio - Vera Magalhães - Viva Voz

Solano lamenta ter atuado nos anos 60 e 70, não agora, quando a censura passou de vilã a queridinha. Lembra-se de quando cortaram o pentelho da “Ciranda da bailarina” e o pecado, safado, debaixo do meu cobertor de “Não existe pecado ao sul do Equador”, e todo mundo achou ridículo. Hoje está normalizado ter de trocar letras por números em palavras como g4y e g0rd4 para tentar escapar dos algoritmos e das patrulhas.

Se ainda estivesse na ativa, faria como seus herdeiros no controle da moral e dos bons costumes — protegidos sob o escudo do politicamente correto — e julgaria o Chico de ontem com os parâmetros de hoje. Veria tentativa de embranquecimento em “Morena (morena?) de Angola”. Preconceito e sexualização dos corpos pretos em Vem, mulato mole/Dançar dans mes bras. Denunciaria machismo, gordofobia, homofobia, xenofobia, capacitismo onde nunca houve nada disso.

Centenário, Solano reconhece que Chico & Cia driblaram brilhantemente a censura oficial dos anos de chumbo. Tem procurado, entre os artistas de 20 e poucos anos de agora, aquele que fará a bola passar, com a mesma categoria, por entre as pernas dos novos censores (terceirizados, na mídia tradicional e nas redes sociais). Ainda não encontrou nenhum.

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