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Por — Rio de Janeiro

O aspecto atual da fachada — uma caixa branca, minimalista, com um grande espaço em vidro fumê no meio — pode ser funcional e até moderno, mas nem de longe remete à riqueza histórica do local. Muito por isso, quem passa desavisado pelo Teatro João Caetano, construção que se impõe à paisagem na esquina da Praça Tiradentes com a Avenida Passos, no Centro do Rio, não se dá conta de que está diante da mais antiga casa de espetáculos da cidade ainda em atividade. Há 210 anos, em 12 de outubro de 1813, com a presença de Dom João VI, foi inaugurado ali o palco por onde passaram (e ainda passam) os mais promissores e consagrados nomes do teatro, da dança e da música do país.

A data redonda não ganhou programação especial, nem festejos badalados. Em vez disso, a administração da casa, a cargo da Fundação Anita Mantuano de Artes do Rio (Funarj), vinculada à secretaria estadual de Cultura e Economia Criativa, promete iniciar uma grande e necessária reforma em toda a parte elétrica do teatro. A última do gênero, segundo Marcos Edom, diretor do teatro, foi realizada há quase 50 anos, em 1976.

— A gente vem fazendo pequenas reformas, mas chega uma hora que é necessária uma intervenção maior. A partir de dezembro, vamos fechar para refazer toda a parte elétrica e de ar-condicionado. Isso deve durar mais ou menos seis meses, mas nos permitirá mais trinta, quarenta anos funcionando com segurança — explica Edom.

Antônio José da Silva, 67 anos, técnico de manutenção com 38 anos de serviço no João Caetano — Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo
Antônio José da Silva, 67 anos, técnico de manutenção com 38 anos de serviço no João Caetano — Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo

Não será a primeira vez em que o teatro fechará as portas por um longo período. Longe disso. Em seus mais de dois séculos de história foram muitos intervalos. Consumido por três incêndios no século XIX, foi reconstruído e passou por grandes transformações.

Do primeiro prédio — erguido a partir de um decreto de Dom João VI, em 1810, no qual o monarca atesta ser “absolutamente necessário nesta Capital que se erija um Theatro decente” — nada sobrou. Nem o nome. A construção, em estilo neoclássico, inspirada no Teatro Nacional de São Carlos, de Lisboa, foi inicialmente batizada como Real Theatro de São João, não por acaso o mesmo nome do príncipe regente. Anos depois, em 1826, seguindo a linha de homenagear o monarca da ocasião recebeu o nome de Imperial Theatro de São Pedro de Alcântara.

Em 1931, passou a ser o Theatro Constitucional Fluminense, alusão ao fato de ter sido ali que Dom Pedro I leu o decreto no qual Dom João VI dava a sua aprovação à Constituição que seria elabora em Lisboa. Também no teatro, o futuro imperador prestou juramento ao texto constitucional. Em outra passagem histórica, pouco mais de uma semana depois de proclamar a Independência, em setembro 1822, o mesmo Dom Pedro I apareceu no camarote Real do teatro usando no braço uma faixa verde e amarela com a celebre frase: Independência ou Morte. Segundo relatos da época, foi bastante aplaudido.

O terceiro e mais severo incêndio aconteceu em 1856 (os anteriores foram em 1824 e 1851), logo após récita à qual compareceu o imperador Dom Pedro II. Coincidência ou não, menos de seis meses depois foi assinado o decreto que criava o “serviço de extinção dos incêndios” do Rio, na prática o primeiro Corpo de Bombeiros do Brasil.

Só em agosto de 1923, há 100 anos portanto, a sala recebeu o nome de um plebeu: o homenageado foi o itaboraiense João Caetano dos Santos (1808-1863), considerado um dos maiores atores brasileiros de todos os tempos, que colecionou sucessos no palco famoso e chegou a comandar o teatro por alguns anos.

Até hoje uma estátua de João Caetano na pele do protagonista da peça “Oscar, filho de Ossion”, do dramaturgo francês Antoine-Vincent Arnault (1766-1834), está em frente ao teatro. Um detalhe na peça chama a atenção: há tempos a espada de bronze, empunhada com expressivo vigor pelo ator, foi roubada. Da arma, restaram apenas o punho e o guarda-mão. Retrato de uma realidade de insegurança crônica no Centro que, ao longo das últimas décadas, mudou hábitos, alterou os horários dos espetáculos e, em última análise, afastou o público de teatros naquela região.

Em 2014, Stepan Nercessian estreou a superprodução “Chacrinha, o Musical” no João Caetano. O ator lembra dos desafios impostos pelo espaço.

— Ele (o teatro) está sempre precisando de uma reforma, eu lembro que tivemos que improvisar o camarim, por exemplo. Mas quando vem o espetáculo... aí o João Caetano fica grandioso de novo. O entorno dele, em questão de segurança, acaba levando as pessoas a ficar temerosas de frequentar, mas isso é superado pela grandiosidade, pelo espírito do João Caetano, que é maior do que tudo isso, uma das casas de espetáculo mais importantes e queridas do teatro brasileiro — diz Stepan.

A despeito dos problemas internos e externos, o histórico João Caetano resiste. A programação segue intensa. Só esse ano já foram realizados mais de 20 shows no projeto Fim de Tarde — sucessor do projeto Seis e Meia, idealizado por Albino Pinheiro e que marcou época na cidade entre as décadas de 1970 e 1990 — com nomes como Criolo, Benito di Paula, Rubel, Zé Ibarra e Leci Brandão. As sessões, sempre às terças-feiras, têm ingresso pra lá de popular:apenas R$ 5 a inteira e R$ 2,50 a meia. O resultado, quase sempre, é uma casa cheia e animada. O teatro, que nasceu como um espaço da Corte, se transformou em palco popular.

— Falar do João Caetano é falar do Rio de Janeiro e principalmente do Rio dos trabalhadores. É um espaço muito importante, muito significativo para cultura brasileira — diz a cantora Leci Brandão.

Na temporada 2023 do João Caetano, aliás, foi apresentado, em abril, o musical "Leci Brandão na Palma da Mão", sobre a vida e a obra da sambista de 79 anos. Em setembro, foi a vez da temporada popular da Companhia de Dança Deborah Colker. O espetáculo “Cão Sem Plumas”, baseado no poema homônimo de João Cabral de Melo Neto, ficou em cartaz de 8 a 17 de setembro.

— Pra mim, é muito especial! As nossas temporadas populares no Teatro João Caetano são lindas, é uma delícia de fazer esse jogo com um público tão diversificado, um público lindo! Eu me sinto muito honrada de participar da história deste teatro! Eu devo gratidão a esse teatro lindo da minha cidade, a essa praça tão maravilhosa que tem tanta dança, teatro, música, história e cultura do Rio de Janeiro! A praça do povo! Viva o Teatro João Caetano! — exulta Deborah Colker.

É difícil pensar num grande artista brasileiro que não tenha pisado no palco do João Caetano. De nomes internacionais, as apresentações de Eleonora Duse, em 1885, e Sarah Bernhartd, em 1886, são sempre lembradas. Foi nesse palco também que o alemão Werner Herzog — de filmes como Aguirre, a Cólera dos Deuses e Fitzcarraldo — fez sua estreia como diretor de teatro. Foi em 1992, com a montagem de Floresta Amazônica em Sonho de Uma Noite de Verão.

Desde essa época, uma imagem de São Sebastião, levada pela atriz Lucélia Santos, protagonista da peça, está num altar improvisado na entrada lateral do teatro, ao lado de outra imagem, a de São Jorge. Mais carioca impossível.

— Fui eu que deixei lá, sim. — confirma Lucélia, que lembra ter sido necessário realizar obras no teatro para viabilizar a megaprodução — Na visita técnica ele (Herzog) disse que topava fazer, mas muitas coisas tinham que ser renovadas e foi assim que aconteceu.

Em dezembro de 2022, dois grandes murais modernistas pintados entre 1929 e 1930 por Di Cavalcanti no saguão superior do teatro foram completamente restaurados. As cores vivas e os traços característicos de “Samba” e “Carnaval” foram recuperados de forma minuciosa. À espera de iluminação adequada, as pinturas ainda não foram abertas para visitação pública.

O teatro foi escolhido também como para a despedida de artistas bastante populares. Os velórios de Mário Lago, Bezerra da Silva, Rogéria e Mr Catra, por exemplo, foram realizados no saguão da casa.

Neste mês de aniversário, duas produções musicais ocuparão o palco do João Caetano: Gonzaguinha o Eterno Aprendiz e Belchior, Sujeito de Sorte. Ambos protagonizados por Rogério Silvestre.

Ao iniciar a apuração para este texto, o repórter foi atrás de resquícios do teatro original. Uma velha coluna, uma pedra visível nas fundações, um detalhe na parede... Não há nada ali, aparente, que remeta ao edifício neoclássico de 1813. Mas a alma do lugar está intacta. O espaço é vivo, tem memória. Como gostam de dizer artistas e produtores: é sagrado.

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