É preciso enxergar o que eu vejo

Em 1996, eu e o fotógrafo Ricardo Beliel embarcamos em um Hércules C-130 da FAB para mais uma reportagem que vínhamos ‘garimpando’ há meses. Íamos acompanhar as tropas brasileiras em ação na Força de Paz da ONU, em uma Angola destroçada por décadas de guerras.

Calculava-se que havia uma mina para cada 1,5 angolano, que minguava agora de fome sem poder cultivar na terra minada. Risco que só valia apena em Lunda Norte, área controlada pela UNITA, que se opunha ao governo angolano, onde a Odebrecht e associados começavam a explorar diamantes na nascente mina de Catoca, que viria revelar ao mundo o quinto maior kimberlito (formação típica de diamantes) a céu aberto do planeta.

Atravessamos de avião as províncias de Bengoa, Kuanza Norte e Sul, Huambo, até Bié, onde nos juntamos aos fuzileiros navais brasileiros que ‘desminavam’ a região de Kuito, uma zona de guerra frequente, como sinalizavam as marcas de balas nas paredes de praticamente todas as construções existentes.

Meu aniversário comemoraria mais uma vez atípico, desta vez em um acampamento militar brasileiro em terra minada. Não faltou presentes: desde um vidro das geleias que os soldados recebiam da ONU e acabavam por dar às crianças angolanas, a camisetas, meias e até kit de sobrevivência.

Na ronda pela cidade, ouço um garoto angolano se aproximar de um brasileiro e pedir: “Me levas contigo para o Brasil?” O soldado, sem jeito, explica que não tem como levá-lo, pois está sempre viajando. Tentando atenuar a negativa, ele fala dos problemas que existem no Brasil, lembrando inclusive que há muitos meninos e meninas vivendo nas ruas da cidade por não terem parentes. E pergunta como ele iria se virar sozinho em outro país.

O garoto que nasceu e viveu toda a vida em uma país em guerra responde:  “Há tanta coisa que eu posso fazer. Mas tu não entendes, é preciso enxergar o que eu vejo”, disse antes de seguir com outras crianças atrás de um caminhão da ONU.

Eu e o Beliel seguimos para Catoca, com a permissão de Jonas Savimbi, para entrarmos na região dominada pela UNITA, e onde ‘nascem os diamantes’. Mas nunca mais esqueci o garoto que conseguia enxergar mais longe do que muitos.

Está na hora também de começarmos a enxergar mais além do que vemos. Como aquele garoto, é preciso ver um horizonte mais além da crise, dos problemas, da violência. Enxergar as oportunidades que existem mesmo no desconhecido.

 

Fernando Silva 🏳️🌈

Communication & Culture Ph.D. | Lecturer | Consumer Insights & Strategic Foresight | On Psychoanalysis degree

7 a

Que experiência foda Bia! Você sempre ensina muito. Saudades! Bjo!

Maria Fernanda Romero

Especialista em comunicação e marketing (produção de conteúdo)

7 a

Adorei. Muito bom!

Que lindo, Beatriz! To dentro dessa prática-filosofia. Gratidão por compartilhar. E o lótus continua crescendo sobre a lama :)

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