10 anos de Política Nacional dos Resíduos Sólidos: onde estamos?
A temática dos resíduos sólidos é um assunto infindável, não só pela complexidade de lidar com os problemas advindos do nosso próprio lixo, sejam eles ambientais, sociais ou econômicos, mas também por ser um tema que está em constante mudança e sofre muita variação entre cidades, estados e países.
Há 10 anos, mais precisamente no dia de 2 de agosto de 2010, a Lei Nº 12.305 instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos no Brasil (PNRS). Naquela época, a PNRS trouxe orientações muito importantes, como a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos (ou seja, governo, empresas e cidadãos são corresponsáveis), a importância da logística reversa e a importância do papel dos catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis, inclusive a necessidade de promover a inclusão social e à emancipação econômica desses catadores. Mas, uma coisa é ter política, outra é implementá-la.
A publicação mais recente do Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil, elaborado pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), se refere ao ano de 2018 e traz muitas informações importantes para que a gente consiga entender a situação do Brasil.
Segundo o Panorama da Abrelpe, em 2018, foram geradas 79 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos (RSU) e, desse montante, 92% foi coletado. Por mais que a coleta venha aumentando nos últimos anos, isso evidencia que 6,3 milhões de toneladas de resíduos não foram sequer recolhidas. Além disso, o panorama aponta que 29,5 milhões de toneladas de RSU foram para lixões ou aterros controlados, que não contam com as medidas necessárias para proteger a saúde das pessoas e o meio ambiente.
Cada brasileiro gerou em média 1 kg de resíduo por dia, porém, ao analisarmos os dados por região, observa-se que a região Sul teve o menor índice de geração individual de seus habitantes (0,76 kg/dia), enquanto a região Sudeste, que é também a mais populosa, teve a maior geração per capita (1,23 kg/dia). Essa informação é importante porque mostra que a região Sudeste concentra 42% dos habitantes, mas gera 50% dos resíduos do país.
Um ponto fundamental da PNRS é a orientação da ordem de prioridade de ações na gestão e gerenciamento de resíduos sólidos: não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos.
Embora o aterro sanitário seja considerado como disposição final adequada, a disposição dos resíduos é a última na hierarquia proposta pela PNRS. Em 2018, mais de 40 milhões de toneladas de resíduos foram enviadas para aterros sanitários, sendo que boa parte poderia ser reutilizada ou reciclada, o que contribuiria para a diminuição da extração de matéria prima e para a geração de renda. Hoje, estima-se que apenas 3% do lixo gerado seja de fato reciclado, sendo que temos o potencial para reciclar cerca de 30% no país.
Especificamente no que se refere à reciclagem, a Associação Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (ANCAT) e a Pragma Soluções Sustentáveis, em parceria com a LCA Consultores, publicaram, com base nas cooperativas de reciclagem associadas à ANCAT, o Anuário da Reciclagem referente aos anos 2017 e 2018.
De acordo com a Abrelpe, o Anuário da Reciclagem abarca uma amostra representativa de organizações de catadores que compõem um banco de dados de 1.710 entidades. Isso significa que os dados refletem boa parte da realidade dos catadores em todo o país, mas não a totalidade da situação desse setor.
Os catadores têm papel fundamental na reciclagem no Brasil, pois são responsáveis pela coleta, triagem e destinação de materiais recicláveis. Por outro lado, ainda é necessário fortalecer e dar visibilidade à importância desses trabalhadores na cadeia da reciclagem — já temos aqui uma pendência em relação a PNRS.
A figura a seguir (retirada do Anuário da Reciclagem 2017–2018) apresenta o fluxo logístico da reciclagem no Brasil, destacando que os resíduos reciclados passam pelas mãos dos catadores, sejam eles individuais ou em cooperativas.
O Anuário da Reciclagem aponta que a gestão de resíduos sólidos no Brasil está avançando. Porém, a precariedade de infraestrutura e abrangência da coleta seletiva, e a baixa adesão da população, referida no Anuário como reduzida conscientização ambiental, são verdadeiros entraves ao processo de reciclagem.
Em especial, o Anuário apresenta resultados de uma pesquisa do Ibope realizada em 2018 sobre a percepção dos brasileiros acerca do tratamento de resíduos e a forma como os consumidores podem colaborar com sua gestão correta. Essa pesquisa concluiu que 98% dos brasileiros enxergam a reciclagem como algo importante para o futuro, mas 39% não separam o lixo orgânico do reciclável, 66% sabem pouco ou nada sobre coleta seletiva, e 81% sabem pouco ou nada sobre Cooperativas de Reciclagem.
Em 2018, as organizações acompanhadas pela ANCAT coletaram 67 mil toneladas de resíduos sólidos, registrando um faturamento de 32 milhões de reais. No entanto, os catadores recebem aproximadamente um salário mínimo/mês.
Os materiais coletados pelas cooperativas e associações de catadores acompanhadas pela ANCAT estão divididos nas categorias: papéis, plásticos, alumínio, outros metais (sucata e cobre, por exemplo), vidros e outros materiais (eletroeletrônicos, óleos e gorduras residuais e outros materiais não especificados). Essas mesmas categorias podem ser subdivididas em outras, de acordo com a comercialização do material.
O material mais coletado nos anos de 2017 e 2018 foi o papel, seguido pelo plástico. O alumínio e outros metais são menos representativos no volume coletado pelas cooperativas e associações apoiadas pela ANCAT quando comparado com a coleta seletiva geral, representando cerca de 8% e 12%, respectivamente. O vidro, por outro lado, possui uma participação no volume total similar em ambos os casos, próximo a 10%.
As variações entre os materiais podem ser resultado do padrão de consumo das pessoas, da facilidade na triagem do material, na conscientização da população acerca da reciclagem ou até do preço de venda de cada um.
Depois de coletados e separados, os resíduos são enviados para as recicladoras, que são as indústrias responsáveis pela reciclagem. Devido à diversidade na composição física e química dos materiais, cada um deles demanda um processo de reciclagem diferente, o que significa que cada um tem sua cadeia produtiva, estrutura de custos, logística reversa e produto final. Essas diferenças, bem como a oferta e a demanda dos materiais para reciclagem, explicam a desigualdade nos preços médios de compra e venda.
O preço de venda varia entre as regiões do Brasil. No entanto, e preço médio por quilo em 2018 apontado pela ANCAT foi de R$3,66 para alumínio, R$1,00 para plástico, R$0,64 para orgânicos e outros, R$0,51 para outros metais, R$0,36 para papéis e R$0,11 para vidros. Esses valores se baseiam nos preços de venda por parte das organizações de catadores acompanhadas pela ANCAT, que, em geral, comercializam seus materiais junto a intermediadores e não diretamente com a indústria recicladora.
Segundo Marília Marasciulo para a Revista Galileu, embora quase três quartos dos municípios brasileiros façam algum tipo de coleta seletiva, o potencial de reciclagem ainda está muito aquém, pois a maioria se concentra no Sul e Sudeste e, em muitas cidades, o serviço não abrange todos os bairros. Na prática, segundo o Compromisso Empresarial de Reciclagem (Cempre), apenas 17% da população do país é atendida pela coleta seletiva.
Mas essa é só uma parte do problema. Ana Maria Luz, presidente do Instituto GEA — Ética e Meio Ambiente, ressalta que não basta ter lixeiras de separação para resolver a deficiência do sistema de coleta. Segundo ela, o mal funcionamento do sistema também é resultado da falta de investimentos em educação, pois os próprios cidadãos não separam e, muitas vezes, tampouco sabem o dia da coleta seletiva.
Além disso, há um desinteresse político e industrial no tema pela falta de vantagens econômicas da reciclagem. Enquanto algumas embalagens têm logística de reaproveitamento consagrada, como produtos de aço, alumínio e papelão, outras são descartadas pela falta de retorno econômico.
João Gianesi Netto, presidente da Associação Brasileira de Resíduos Sólidos e Limpeza Pública (ABLP), ressalta a necessidade de incentivos que favoreçam as indústrias que consomem material reciclado para torná-lo mais competitivo em relação ao material virgem.
O desafio de agora: Covid-19
Arrisco dizer que o coronavírus trouxe desafios para todas as esferas de nossas vidas. Com os resíduos sólidos não foi diferente.
Composto em sua maioria por pequenas e médias empresas, o setor de reciclagem tem sido muito afetado pela pandemia do novo coronavírus. A redução da coleta seletiva e da coleta pelos catadores em muitas cidades impactou o setor ao mesmo tempo que vemos o consumo de alguns materiais aumentar além do esperado.
A maioria das companhias do ramo de processamento e venda de sucata de ferro e aço paralisaram ao menos uma parte das suas atividades. Clineu Alvarenga, presidente do Instituto Nacional das Empresas de Sucata de Ferro e Aço (Inesfa), ressalta que a queda na operação dessas empresas também afeta o meio ambiente, pois favorece a criação de focos transmissores de doenças como dengue, chikungunya, zika e febre amarela.
A maior parte dos catadores de materiais recicláveis não tiveram acesso ao auxílio emergencial de R$ 600 disponibilizado pelo governo federal. Para seguir com as atividades durante a pandemia, a ANCAT enviou um manifesto à Presidência da República pedindo que a função de catador de recicláveis seja reconhecida como essencial. O documento foi assinado por associações de catadores, deputados federais e entidades representativas de segmentos da indústria e comércio, mas o pedido não foi atendido pelo governo federal.
Por outro lado, o aceite também traria complicações, pois os catadores em geral não trabalham com equipamentos de proteção individual e dependem do Sistema Único de Saúde (SUS), já sobrecarregado diante do avanço da pandemia. Além disso, muitos catadores fazem parte de grupos de risco para Covid-19.
Em todo o mundo já se observa o aumento da geração de resíduos domiciliares em velocidade maior que a capacidade de coleta e de reciclagem. No Brasil, estima-se que a quantidade de resíduos domiciliares pode crescer entre 15% e 25% durante a quarentena. Além disso, os aterros sanitários têm capacidade restrita, o aumento de resíduos destinados a eles certamente impacta sua vida útil.
Ainda, um elevado crescimento na geração de resíduos hospitalares em centros de saúde é esperado como consequência da pandemia. Esses materiais necessitam de gestão diferenciada devido ao seu potencial de contaminação. A previsão é que, apenas em São Paulo, a quantidade desses resíduos poderá aumentar em até vinte vezes, o que levanta preocupações não apenas pela quantidade, mas também porque um volume considerável desses materiais ainda não tem a destinação correta.
Desafios para o futuro
De acordo com o Panorama da Abrelpe, estima-se que em 2030 o Brasil alcançará uma geração anual de 100 milhões de toneladas de RSU, justamente o ano do prazo final para o cumprimento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU. Seremos capazes de produzir tantos resíduos e ainda encontrar uma solução real para seus impactos ambientais, sociais e econômicos? Conseguiremos mudar nosso sistema de produção e consumo de forma a contemplar a Economia Circular? E indo além: será suficiente?
Mesmo 10 anos após a PNRS, o setor ainda apresenta déficits, seja na coleta seletiva, na reciclagem, na recuperação de materiais, na coleta de RSU, na disposição final desses resíduos e na própria produção de lixo. Se a PNRS estabelece a não geração e a redução de resíduos como prioritárias em relação à reciclagem, tratamento e disposição, o aumento da produção de lixo certamente evidencia que ainda há um longo caminho pela frente a ser cumprido.
“A coleta seletiva está distante de ser universalizada, os índices de reciclagem são bastante incipientes e pouco evoluem, e os lixões estão presentes em todas as regiões, com impactos diretos sobre o meio ambiente e as pessoas — estas, além de serem afetadas por várias doenças, com custos bilionários para tratamentos de saúde, sofrem com o afastamento do mercado de trabalho” (Abrelpe, 2019).
Ainda segundo a Abrelpe, o gerenciamento dos resíduos sólidos não consiste em uma prioridade política no Brasil, faltam recursos específicos para custear as operações do setor ao mesmo tempo que a tributação aplicada não favorece práticas sustentáveis. Para viabilizar avanços e modernizar as infraestruturas na gestão dos resíduos sólidos, são necessários investimentos em novas plantas e recursos financeiros permanentes na sua operação.
Uma saída para isso, conforme Abrelpe, é a implementação de um sistema de remuneração direta pelos usuários, como acontece em outros países, de maneira a basear o pagamento conforme a geração e utilização dos serviços. A Associação ainda ressalta que é necessário “mudar alguns paradigmas vigentes, sobretudo em relação ao engajamento da população, à governança político-institucional e ao custeio dos serviços”.
Vale ressaltar que, embora tenhamos o costume de procurar culpados ou vilões, não há um material ou agente único responsável pelo problema, então banir sacolinhas ou canudinhos, por mais importante que seja, não será suficiente.
Estamos lidando com um problema sistêmico que se alastra há décadas, precisamos combatê-lo por várias frentes: indústria, governos e indivíduos.
Já abordei esse tema antes e vou repetir: a reciclagem não vai salvar o mundo sozinha, mas ela faz parte da solução. No caso do Brasil, a maior parte dos resíduos reciclados passa pelas mãos de catadores, e a solução deve contemplá-los de maneira justa e eficiente, como proposto pela PNRS.
Por mais importante que seja separar melhor, é fundamental mudar nossa forma de produção e consumo — o que leva tempo, e não sabemos se temos tanto tempo assim antes que ocorra um colapso ambiental como consequência de nossa intensa extração de recursos e poluição ambiental.
Além da necessidade de mudanças na própria formulação de novos produtos, para os materiais que já estão circulando, prontos para virarem lixo a qualquer momento, a solução passa por oferecer melhores condições de trabalho para os catadores: equipamentos de proteção individual, salário fixo, e direitos trabalhistas.
Fornecer garantias a esses trabalhadores é importante para regulamentar e valorizar seu trabalho — a informalidade, além de não oferecer condições dignas de trabalho para pessoas já em condições de vulnerabilidade, não consegue garantir sua permanência no setor, é natural que busquem outros trabalhos, ainda que temporários, com melhor remuneração.
O assunto é complexo, mas precisamos encarar a complexidade ou jamais seremos capazes de resolver o problema.
Texto publicado originalmente no Medium de Júlia Alvarenga.
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4 aRecicletool corre aqui! ☺️
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4 aA PNRS vai de encontro ao conceito #lowsumerism, que enfatiza a necessidade primordial de reduzirmos o consumismo e, consequentemente, a geração de resíduos! Júlia Alvarenga parabéns pelo texto, obrigada pela analise de dados de forma tão simples e didática!
Engenheira Ambiental
4 aBruno Teixeira pra vc