100 Obras Básicas para Reler, por Otto Maria Carpeaux
Salim Miguel
Recordações do imigrante austríaco que se tornou um dos maiores críticos literários brasileiros do século 20.
Reler Otto Maria Carpeaux é sempre (ou quase) uma nova descoberta, pois ficamos imaginando o motivo pelo qual não nos demos conta de algumas informações, reflexões, nomes, que lá estavam no texto, mas os artigos de Carpeaux eram tão plenos de dados, que, mesmo prestando a maior atenção, a gente não tinha como, por vezes, não se perder. Verdadeira enciclopédia, ele discorria com igual pertinência a respeito de um Shakespeare ou um Aristóteles, um Da Vinci ou um Bach, bem como de autores de sua época, um Kafka, que ele chegou a conhecer em Viena, e sobre quem foi o primeiro a escrever no Brasil, ou um Joyce, dizendo que o romance se dividia em dois momentos, antes e depois de Ulisses.
O judeu austríaco Carpeaux chegou ao Brasil em setembro de 1939, fugido do nazismo e da guerra, sem saber uma única palavra de português, ao contrário de outro refugiado, o húngaro Paulo Rónai, que aprendeu em terra o “português brasileiro”, conforme dizia, conhecendo algo de nossa literatura. A ambos, a cultura brasileira muito deve. Em 1941, Carpeaux já dominava o nosso idioma e estava colaborando no Correio da Manhã, e, em 1942, aparecia seu primeiro livro, A Cinza do Purgatório, publicado pela Editora da Casa do Estudante do Brasil (CEB), onde ele reúne alguns dos textos que haviam aparecido naquele jornal, sobre Jacobsen, Milton, Conrad, Goethe, Dostoiévski, entre outros. Irreverente e contestador, num dos artigos, intitulado O Admirável Thomas Mann, não considera tão admirável o autor de A Montanha Mágica e começa fazendo restrições ao primeiro livro publicado por Mann, Os Buddenbrooks, afirmando que o escritor se realiza melhor em seus textos curtos, como Tonio Kroeger e Morte em Veneza, repetindo três ou quatro vezes a observação: “... é o maior entre os escritores de segunda ordem...”.
Em 1943 publica, pela mesma editora, o livro Origens e Fins, e já se atreve a incluir textos sobre autores brasileiros; ali estão, entre outros, Drummond, Graciliano, Álvaro Lins. Não mais parou, e discorria tanto a respeito de nomes do passado, Machado de Assis ou Euclides da Cunha quanto de principiantes, José J. Veiga e Ricardo Ramos. Em muitos dos seus artigos, Carpeaux se utiliza de uma espécie de artifício: parecia falar de um autor, mas o texto todo tinha menos de 10 linhas sobre este, tecendo reflexões paralelas. Um bom exemplo é o artigo sobre o romance João Abade, de João Felício dos Santos, que aborda Canudos, no qual Carpeaux bem pouco se detém, e só na última frase ficamos sabendo, não o que contém o romance, mas o que dele pensa Carpeaux: “O desfecho, a imagem dos urubus que espiam o campo da morte, é uma das grandes páginas da literatura brasileira.” (In Canudos como Romance Histórico, no livro Otto Maria Carpeaux: Ensaios Reunidos – 1946-1971, Editora Topbooks, RJ, 2005).
Trabalhador e leitor infatigável, Carpeaux deixou, em diversos jornais, cerca de 1,5 mil substanciais artigos
Trabalhador e leitor infatigável, Carpeaux deixou, em diversos jornais, cerca de 1,5 mil substanciais artigos, alguns reunidos durante sua vida em volumes, contendo os que eram, a seu ver, mais representativos; outra boa parte está agora neste Otto Maria Carpeaux: Ensaios Reunidos (1946-1971). Certamente, muitos ainda existem perdidos nos órgãos onde ele colaborou. O projeto de Carpeaux era bem mais ambicioso, e para marcar seu nome na cultura brasileira, bastaria a monumental História da Literatura Ocidental, em oito volumes, e Uma Nova História da Música, além da sua participação essencial, com Antônio Houaiss, na organização do dicionário enciclopédico Delta Larousse e na Enciclopédia Mirador.
Não me posso furtar a um depoimento pessoal. Fui conhecer os artigos de Carpeaux pouco depois de minha mudança para Florianópolis, em 1943. Na livraria Anita Garibaldi, vendíamos seus livros, como os dois publicados pela CEB, Retratos e Leituras, de 1953, publicado pela Organização Simões: Livros na Mesa: Estudos de Crítica, de 1960, pela Livraria São José, entre outros.
Em 1952, pelo Serviço de Documentação do Ministério de Educação e Saúde, aparece seu trabalho pioneiro: Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira, que me chegou com uma curiosa dedicatória: “Para Salim Miguel, embora não o conheça pessoalmente, sendo bastante a recomendação por tão precioso amigo como é Pedro Taulois. Uma lembrança de Otto Maria Carpeaux. Rio, Agosto de 1952.” Respondi logo, agradecendo e tecendo algumas considerações sobre o livro. Em 1955, aparece a segunda edição do mesmo, revisto e ampliado, dedicado a Pedro Taulois. Antes disso, em 1953, numa ida ao Rio, conheci Carpeaux e não mais perdemos contato. Nas minhas frequentes idas ao Rio, com o Taulois ou no Correio da Manhã (onde Carpeaux era redator), com o romancista José Condé, eu fazia questão de conversar com ele. Também o encontrei na redação do suplemento Letras e Artes, dirigido pelo jornalista, advogado, médico e político catarinense Jorge Lacerda. Foi a partir do meu exílio no Rio, depois do golpe militar, que mantivemos maior contato, pois Eglê Malheiros e eu colaboramos na Enciclopédia Delta Larousse, ela traduzindo verbetes do francês e eu redigindo verbetes sobre autores brasileiros.
Todas estas memórias se devem à leitura/releitura que faço das cerca de 900 compactas páginas do livro: Otto Maria Carpeaux: Ensaios Reunidos (1946-1971). Ali me encontrei com artigos que havia lido nos jornais e outros, dos quais só agora tomo conhecimento. Organizado por Christine Ajuz, o livro é um exemplo modelar de pesquisa e fico imaginando o trabalho que ela teve, recorrendo não apenas a arquivos de jornais desaparecidos, mas também à Biblioteca Nacional e à Biblioteca da Academia Brasileira de Letras. Não posso imaginar qual o critério de Carpeaux na organização de seus livros publicados em vida, pois no atual volume estão mais de 200 trabalhos que permanecem atuais e revelam o domínio que o autor tinha da literatura, não de um outro país, mas de praticamente todo o mundo. Se é certo que Carpeaux deixou cerca de 1,5 mil artigos publicados em jornais e revistas, muitos outros devem estar esperando o exemplar trabalho de Christine ou de alguém, como ela, que se apaixona pelo que está fazendo. Christine recolhe e recupera, com esforço, textos publicados num período de mais de 20 anos e mais três prefácios para obras de Manuel Bandeira (1946), Goethe (1948) e Hemingway (1971), procurando, com esforço, a maior fidelidade ao texto original.
Como se isso não bastasse, temos o acurado ensaio de Ivan Junqueira, poeta, tradutor, crítico, que não apenas examina os textos recolhidos, detendo-se mais demoradamente em alguns que lhe parecem fundamentais para a compreensão da obra examinada, mas traça um perfil do Otto Maria Carpeaux, homem e artista, que Ivan conheceu tão bem, tendo trabalhado com ele no Correio da Manhã e nas duas enciclopédias. Os que tiveram o privilégio de conhecer Carpeaux o reencontram de corpo inteiro, e os demais ficam sabendo o homem invulgar que ele foi e o quanto lhe deve a nossa literatura.
Nos anos 1950, Carpeaux fez relação das obras 100 Obras Básicas para Reler. Vamos nos limitar a duas ou três anotações da introdução: “Existem certas listas de 100 ou 500 ou mil obras básicas, que ‘todo mundo’ ou pelo menos todo homem culto ‘deve ter lido’. São sempre insatisfatórias... / ...não faço a minha tentativa de negar que em qualquer seleção assim entra algo do gosto pessoal do selecionador. / ...o que não vale ser lido de uma vez... Excluiu-se da lista, sistematicamente, a literatura nacional. Pois o leitor brasileiro, para poder passar por homem literariamente culto, precisa ter lido muito mais obras brasileiras do que podem entrar em lista tão reduzida. Contudo, reservou-se o centésimo lugar para Machado de Assis.”
Em fins de 1971, num encontro casual, pensei em perguntar a Carpeaux se, passados quase 20 anos, ele mexeria na lista. Não tive coragem. E agora que estamos no início de um novo século e um novo milênio, será que ela continua válida?
100 OBRAS BÁSICAS PARA RELER
autores de A a Z
― A ―
1. Orgulho e Preconceito, Jane Austen.
― B ―
2. A Prima Bette, Honoré de Balzac.
3. O Pai Goriot, Honoré de Balzac.
4. As Flores do Mal, Charles Baudelaire.
5. Os Doze, Alexandr Blok.
― C ―
6. A Vida é Sonho, Pedro Calderón de la Barca.
7. Rimas, Luís de Camões.
8. Dom Quixote, Miguel de Cervantes.
9. Novelas Exemplares, Miguel de Cervantes.
10. Contos de Canterbury, Geoffrey Chaucer.
11. Poesias, Samuel T. Coleridge.
12. Uma Oportunidade, Joseph Conrad.
[i.e., A força do acaso, ou, Chance: uma história em duas partes]
13. Coração das Trevas, Joseph Conrad.
― D ―
14. Divina Comédia, Dante Alighieri.
15. Casa Soturna, Charles Dickens.
16. Poesias, John Donne.
17. Crime e Castigo, Fiódor Dostoiévski.
18. O Idiota, Fiódor Dostoiévski.
19. Os Irmãos Karamazov, Fiódor Dostoiévski.
20. Os Possessos, Fiódor Dostoiévski.
― E ―
21. Oréstia, Ésquilo.
― F ―
22. Tom Jones, Henry Fielding.
23. Madame Bovary, Gustave Flaubert.
― G ―
24. Fausto, Johann Wolfgang Goethe.
25. Poesias Completas, Johann Wolfgang Goethe.
26. Almas Mortas, Nikolai Gógol.
27. O Inspetor Geral, Nikolai Gógol.
28. Oblómov, Ivan Gontcharóv.
― H ―
29. Tess of the d’Urbervilles, Thomas Hardy.
30. A Letra Escarlate, Nathaniel Hawthorne.
31. Poesias, Friedrich Hoelderlin.
32. Ilíada, Homero.
33. Odisséia, Homero.
34. Odes, Quinto Horácio.
― I ―
35. Brand, Henrik Ibsen.
36. O Pato Selvagem, Henrik Ibsen.
37. Peer Gynt, Henrik Ibsen.
― J ―
38. Niels Lyhne, Jens Peter Jacobsen.
39. Os Embaixadores, Henry James.
40. Ulisses, James Joyce.
― K ―
41. O Processo, Franz Kafka.
42. Poesias, John Keats.
― L ―
43. Fábulas, Jean de La Fontaine.
44. Cantos, Giacomo Leopardi.
45. Obrinhas Morais, Giacomo Leopardi.
― M ―
46. Mandrágora, Niccolò Machiavelli.
47. Os Noivos, Alessandro Manzoni.
48. Poesias Líricas, John Milton.
49. Misantropo, Jean Baptiste Molière.
50. Tartufo, Jean Baptiste Molière.
51. Ensaios, Michel de Montaigne.
― P ―
52. Pensamentos, Blaise Pascal.
53. Fortunata e Jacinta, Benito Pérez Galdós.
54. Poesias, Fernando Pessoa.
55. O Banquete, Platão.
56. Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust.
57. Eugênio Onegin, Alexandr Puchkin.
― R ―
58. Andrômaca, Jean Racine.
59. Atalia, Jean Racine.
60. Britânico, Jean Racine.
61. Fedra, Jean Racine.
62. Elegias de Duíno, Rainer Maria Rilke.
63. Novos Poemas, Rainer Maria Rilke.
64. As Iluminações, Arthur Rimbaud.
65. A Celestina, Fernando de Rojas.
― S ―
66. Memórias, Duc de Saint Simon.
67. Antônio e Cleópatra, William Shakespeare.
68. Como Quiserdes, William Shakespeare.
69. Conto de Inverno, William Shakespeare.
70. Hamlet, William Shakespeare.
71. Henrique IV, William Shakespeare.
72. Macbeth, William Shakespeare.
73. Medida por Medida, William Shakespeare.
74. O Mercador de Veneza, William Shakespeare.
75. Noite de Reis, William Shakespeare.
76. Otelo, William Shakespeare.
77. Rei Lear, William Shakespeare.
78. Romeu e Julieta, William Shakespeare.
79. Sonho de Uma Noite de Verão, William Shakespeare.
80. A Tempestade, William Shakespeare.
81. Antígona, Sófocles.
82. Rei Édipo, Sófocles.
83. A Cartuxa de Parma, Henry Beyle Stendhal.
84. Senhorita Júlia, August Strindberg.
85. Para Damasco, August Strindberg.
86. Viagens de Gulliver, Jonathan Swift.
― T ―
87. Anais, Cornélio Tácito.
88. Contos Semi-Coloridos, Tchekhov.
[cf., entre outros, O Beijo e outras histórias e A Dama do Cachorrinho]
89. Ana Karenina, Lev Tolstói.
90. Guerra e Paz, Lev Tolstói.
91. Morte de Ivan Illitch, Lev Tolstói.
92. História da Guerra Peloponésia, Tucídides.
― V ―
93. Os Encantos, Paul Valéry.
94. Os Malavoglia, Giovanni Verga.
95. O Grande Testamento, François Villon.
96. Geórgicas, Publio Virgílio.
97. Cândido, F. M. Arouet de Voltaire.
― Y ―
98. Poesias, William Butler Yeats.
― Z ―
99. Germinal, Émile Zola.
― & ―
100. Machado de Assis.
Nota bibliográfica. Salim Miguel (1924-2016), ‘Carpeaux revisitado’, Diário Catarinense, Florianópolis, 20 mai. 2006.