5 fatos de que você precisa saber sobre “saidinha de Natal” para não fazer uma crítica injusta
Recentemente, como acontece em vários anos, matérias de imprensa noticiaram que 253 dos 1.785 presos do Rio de Janeiro beneficiados com o que chamam de “saidinha de Natal” não voltaram depois dos 7 dias foram da prisão a que tiveram direito.
A recorrência das matérias demonstra que esse é um fenômeno também recorrente. Ou seja, todos os anos, uma proporção das pessoas presas beneficiadas vai abusar do benefício. Aliás, nos últimos anos essa proporção vem caindo. Esse ano, no Rio de Janeiro, a proporção dos que ficaram foragidos foi de cerca de 14%. Em 2021, chegou a ser 42%.
Todas as vezes que as matérias de imprensa falam sobre isso, o discursos de jornalistas parece ser o mesmo, uma versão de, “como pode o juiz mandar soltar presos perigosos, sabendo que eles vão fugir?” Esse ano, um jornalista chegou a dizer que a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, que está investigando a saída de fim do ano passado (2023), deveria “pedir explicações ao Tribunal de Justiça sobre as decisões judiciais”. Finalizou dizendo, “fica a dica”.
Você é livre para achar que esse benefício para os presos é uma boa ou uma má política penitenciária. Aliás, você é obviamente livre para pensar o que quiser. Porém, se você vai vocalizar sua opinião por aí, seja na mesa do jantar da sua família, no bar com amigo/as ou ao vivo na televisão para todo o Brasil, é uma boa ideia que você saiba os fatos sobre como funciona a saída temporária. Afinal, sua opinião é livre, mas se você baseá-la em proposições falsas, não é só uma opinião. É um erro, uma ignorância, uma crítica injusta.
Pois bem, vamos as 5 fatos de que você precisa saber para não incorrer nesse erro.
Fato 1
O nome técnico do instituto é saída temporária e ele está previsto nos artigos 122 a 125 da Lei de Execução Penal brasileira—Lei 7.210 de 1984. Na verdade, a saída temporária tem alguns sub-tipos. O que nos interessa aqui é o mais comum deles, a visita periódica ao lar, ou VPL, para os íntimos. É uma saída para ficar com a família por até 7 dias, sem supervisão e sem precisar voltar para a prisão no período, e que pode ser concedida por até 5 vezes por ano.
Fato 2
A VPL não pode ser concedida a qualquer preso, apenas de presos que estejam em regime semiaberto. Há duas maneiras pelas quais um preso pode estar nesse regime: ou esse foi o regime inicial fixado na sentença penal, por causa da quantidade pena a que o preso foi condenado (menor do que 8 anos de prisão, em regra), ou ele progrediu para esse regime, a partir do regime inicial fechado, após cumprir uma parte da sua pena e manter bom comportamento na prisão. Ou seja, todo preso que ganha saída temporária ou já cumpriu uma parte da sua pena e manteve bom comportamento na prisão, ou foi condenado a uma pena não tão alta e tem bom comportamento na prisão.
Fato 3
A decisão judicial que autoriza a saída temporária nunca é dada caso a caso, ou seja, não é cada preso que pede cada saída temporária, a cada vez que pretende gozar do benefício. Idealmente, essa seria a ideia da lei: individualizar ao máximo. Porém, como acontece com vários institutos jurídicos, isso é impossível na prática. Só o Rio de Janeiro tem quase 14 mil presos em regime semiaberto. Se metade desses presos têm bom comportamento na prisão--um número subavaliado--cerca de 7 mil presos teriam direito a saída temporária, por até 5 vezes por ano. Se o/as juíze/as de execução penal fossem analisar cada um desses casos individualmente a cada pedido, seria uma decisão para cada um dos estimados 7 mil presos, 5 vezes por ano. Assumindo que cada análise durasse 30 minutos--um tempo subavaliado-- seriam necessárias quase 292 horas apenas para decidir sobre saídas temporárias a cada ano, apenas no Rio de Janeiro. Considerando um dia de trabalho de 8 horas e um mês de 22 dias de trabalho, isso corresponderia a mais de um mês e meio por ano de um/a juiz/a dedicados exclusivamente a analisar esses pedidos, para além de todas as demais decisões e tarefas administrativas que esse/a juiz/a teria de desempenhar.
E mais. Se cada decisão fosse individual, as saídas seriam dadas em qualquer momento ao longo do ano. Com isso, a cada momento, a administração penitenciária teria de manter um controle sobre um número incerto de presos, para saber quem estava gozando de saída temporária, por quantos dias e quando teriam de retornar à prisão. Um pesadelo logístico, praticamente impossível de tornar realidade.
Por conta disso, o Superior Tribunal de Justiça já há muitos anos decidiu que a saída temporária pode ser dada em bloco, em 5 períodos no ano, predeterminados por regra de cada tribunal de justiça estadual. Normalmente, esses períodos são Páscoa, Dia das Mães, Dia dos Pais, Natal, e mais um feriado nacional como Finados ou Nossa Senhora Aparecida. Com isso, ao invés de ficar decidindo requerimentos individuais a cada momento que cada preso pleiteie uma saída, juíze/as simplesmente têm de decidir uma vez para cada preso em regime semiaberto se ele tem direito a VPL. A autorização é anotada no prontuário dos presos--sim, os presos têm prontuário... Daí, os que foram autorizados vão sempre sair juntos, nas mesmas épocas, permitindo um controle de quantos saem e quantos retornam; o que, por sua vez, é o que permite saber imediatamente quantos não voltaram.
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Portanto, mesmo que o/as juíze/as da execução tivessem uma bola de cristal ou outra boa maneira de prever quais presos retornariam e quais não, o máximo que ele/as poderiam fazer é usar esse poder preditivo para não autorizar o benefício em geral, não em cada momento específico.
Fato 4
Quem já deixou de retornar de uma saída temporária e foi recapturado perde automaticamente o direito ao benefício—e pode até regredir para o regime prisional fechado. Ou seja, o poder preditivo do/a juiz/a teria de incluir a possibilidade de determinar quem voltaria e quem não voltaria de uma saída temporária, dentre aqueles que nunca saíram ou nunca deixaram de retornar. Posso estar enganado, mas não existe um meio de prever isso—a não ser, claro, a opinião de leigos ou “especialistas”, depois que o preso já fugiu, quando fica “óbvio” que ele não voltaria desde o início.
Fato 5
A saída temporária é parte da maneira como a pena criminal é concebida legal e politicamente no Brasil. A pena obedece ao chamado "sistema progressivo", que é Juridiquês para dizer que as restrições à liberdade do preso vão sendo diminuídas progressivamente, à medida que ele a cumpre, desde que não cometa novos crimes ou tenha mau comportamento na prisão. A ideia é que, como não temos prisão perpétua, nem pena de morte, a não ser que o preso morra inesperadamente na cadeia, ele, mais cedo ou mais tarde, vai cumprir a pena e ser solto. Por isso, ao invés de ficar trancafiado durante alguns anos e depois ser solto como se nada tivesse acontecido, o preso vai experimentando mais e mais dinâmicas da vida fora da prisão, para ir se adaptando, e para ir se incentivando a manter bom comportamento, para ter mais e mais liberdade.
Não é só a VPL que vai nesse sentido. Também no regime semiaberto, o preso passa a ter direito a sair durante o dia para trabalhar--"trabalho extramuros", em Juridiquês--, também sem supervisão. Presos que conseguem emprego saem de manhã cedo e voltam já de noite, não só 5 vezes por ano, mas todos os dias úteis. No regime aberto, muitos presos recebem a chamada "Prisão Albergue Domiciliar", ou PAD para o íntimos, que, como o nome diz, é uma prisão domiciliar.
Ou seja, a VPL é um elemento de um conjunto de direitos e benefícios a que presos têm direito como parte do sistema progressivo. Todos eles têm risco, maior ou menor, de que o preso abuse e fuja, ou pior, cometa novos crimes enquanto está sem supervisão.
Agora que você sabe os fatos, é perfeitamente possível que você ache, ou continue achando, que a VPL é muito arriscada e tem de acabar. É uma crítica justa, baseada em um cálculo realista de custo-benefício.
Agora, críticas do tipo, "o poder público precisa analisar melhor cada caso, para ver quem vai fugir" ou "o poder público precisa fiscalizar melhor os presos" ou "tem de botar tornozeleira eletrônica em todo mundo", são injustas. Partem de um mundo idealizado, em que o número de presos não é da ordem de dezenas de milhares, e em que os órgãos do sistema penal têm recursos humanos, financeiros e tempo ilimitados, ou em que juíze/as têm bolas de cristal.
Infelizmente, esse é um tipo de crítica comum no meio jurídico, às vezes vindo de juristas, que, por ser técnicos, deveriam ser mais esclarecido/as. O direito e seus institutos não podem viver em mundos utópicos. Vivem em mundos reais. Críticas justas consideram os fatos do mundo real e partem de mundos possíveis para sugerir como o mundo real deveria ser realisticamente ajustado.
Críticas injustas criam mundos ideais, utópicos, e mostram como o mundo real é errado. Críticas injustas não nos ajudam a ter melhores políticas públicas. Só nos fazem ser sempre frustrados.
Consultor/Analista na DeBase Informática
1 aRealmente não é possível analisar caso a caso para a PDL, mas o Tribunal de Justiça tem um sistema que filtre todos os tipos delitos, então já é um bom começo para que possa ser verificado quem possa ganhar o benefício. Se um policial foi assassinado em serviço por um indivíduo dias depois que este ganhou esse benefício e/ou se a ex companheira teve sua vida interrompida por um indivíduo que queria vingança, então esse benefício já não vale a pena e tem que ser revisto. Acredito que a grande maioria entende que as leis no Brasil precisam ser revisadas, policiais hoje fazem na rua a operação “enxuga gelo” na qual prendem delinquentes e a justiça sem argumentos contundentes vai lá e solta. De fato, a grande maioria dos presídios do Brasil são depósitos de delinquentes. Quer dar benefícios aos encarcerados? Que sejam construídas industrias para que eles possam trabalhar e voltando a estudar sejam alguns dos pontos que podem ser somados para que ele possa ter esse direito.
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1 aSou contra saidinha de preso. Pena é para ser cumprida o delinquente no Brasil tem mais direito e proteção que o cidadão honesto. Quem é a favor o é até o dia que um desses cruzarem o seu caminha na saidinha, essa é a verdade.
Advogado. Professor de direito e ciências sociais em nível de gradução, mestrado e doutorado. Apaixonado por dados.
1 aObrigado ao Rodrigo Dutra, que me atentou para um erro na consideração do número de dias úteis em um mês. Correção feita.
Jornalista | Gerenciamento de Projetos | Analista de Comunicação | Fotógrafo | Copywriter | Autor: A Teoria de Tudo Social: Democracia LTDA.
1 adeixei de notar no texto uma crítica as brechas legais sobre isso, principalmente sobre logística dos detentos para impedir fugas, como ocorreu em SP com a prisão de 700 detentos...A essência desse processo possui o seu devido valor, mas com uma lei branda, regida pelo utilitarismo néscio, não passa de uma brecha para outras ilegalidades. O exercício da cidadania não é lecionado de modo efetivo nas penitenciárias em alto grau, como então a saidinha pode ter sua parcimônia para reintegração social adequada, independentemente do delito? A questão é, a flacidez logístico para impedir que efemeridades cumpram sua contingência. Fora isso, texto bom.
Residente jurídico | MPRJ
1 a"Críticas injustas não nos ajudam a ter melhores políticas públicas. Só nos fazem ser sempre frustrados". É exatamento isso. Excelente texto!