ADN de um campeão
O desporto tem, na sua essência, várias características que são similares, podendo encontrar-se pontos de convergência nas razões para o sucesso ou para o insucesso desportivo em diferentes modalidades. Hoje em dia temos a possibilidade de recolher informação privilegiada através de inúmeros canais tais como documentários, livros, palestras, filmes e assim verificar um conjunto de traços de personalidade que estão presentes no ADN dos desportistas que atingiram o grau de excelência nas suas carreiras como atletas profissionais. Nestes últimos dias tive oportunidade de visualizar atentamente o tão aguardado documentário sobre Michael Jordan chamado “The Last Dance”, que retrata uma viagem com imagens de bastidores sobre os seus anos de basquetebolista dos Chicago Bulls. Aproveitei para complementar este documentário com outros programas de diferentes modalidades como Ténis, Futebol, Golf, Boxe ou então documentários sobre as principais lendas da Fórmula 1 tais como Ayrton Senna, Nigel Mansel, Mario Andretti e Jackie Stewart. Nestes documentários tão distintos foi possível destacar, desde logo, um conjunto de traços de personalidade e comportamentos que se observam nos atletas que chegaram a patamares de excelência demasiado evidentes para serem consideradas apenas como meras casualidades.
O principal ponto que salta à vista, tem a ver com a característica de competitividade presente nestes atletas de eleição, o chamado “animal de treino”, isto é, um desportista excecional destaca-se sempre por encarar o seu treino diário como um momento real de competição e como o jogo mais importante da sua vida. É também o momento em que deseja melhorar diariamente as suas capacidades, transformando o seu treino num duelo pessoal que não pode de maneira nenhuma perder. Conseguir ter esta capacidade mental de superação ou motivação para todos os dias trabalhar mais do que qualquer seu competidor, dota este atleta de uma vantagem natural sobre os seus adversários e cria uma personalidade vencedora que será determinante no seu futuro desportivo.
Michael Jordan destacou-se claramente nesse ponto, não suportava a derrota e caso isso acontecesse, transformava esse acontecimento em estímulo competitivo para melhorar as suas capacidades. Exemplo claro observou-se durante as duas vezes em que não venceu as suas finais de conferência frente aos New York Knicks e Orlando Magic, tendo como objetivo claro encontrar no dia seguinte uma preparação imediata para a futura época. Após a derrota no jogo 7 frente aos New York Knicks, convocou toda a sua equipa para que sacrificassem as suas férias de verão, iniciando antecipadamente o trabalho coletivo de ginásio com vista a obter ganhos musculares evidentes e conseguir combater a agressividade que os seus adversários colocaram na série anterior. Dessa forma conseguiu recolher claros dividendos desse trabalho físico vencendo o título na época seguinte com a sua equipa fortemente preparada para os duelos que encontraram durante a sua época desportiva. Outro exemplo interessante de M.J. ocorreu quando foi eliminado na final de conferência frente a Orlando Magic após 18 meses dedicados ao Beisebol. Nessa mesma noite, o seu preparador físico enviou-lhe um SMS a dizer que ia de férias e para o chamar quando quisesse voltar aos treinos. Michael respondeu “amanhã no ginásio”. Esta estrela mundial podia ter ido de férias para um local paradisíaco, mas optou por começar a trabalhar com o seu preparador físico no dia seguinte para voltar a moldar o seu corpo para as exigências da NBA, acabando por se tornar campeão nas três épocas seguintes. Todos os desportistas já enfrentaram derrotas difíceis de digerir, leva tempo a processar esses momentos e por isso é extraordinária a capacidade evidenciada por M.J. de “colocar para trás das costas” essas derrotas e rapidamente procurar, com trabalho árduo, reerguer-se de modo a potenciar soluções para que esses momentos nunca mais se repetissem.
Podemos afirmar que outra característica que está sempre presente nos desportistas excecionais tem a ver com a “autoconfiança” nas suas capacidades, permitindo a superação de momentos adversos. Vejamos o exemplo de Niki Lauda, que após ter quase perdido a vida dentro do cockpit do seu carro, no ano seguinte, quando todos o apontavam como um piloto derrotado, trabalhou arduamente na pista de treinos da sua equipa e adquiriu novamente índices físicos, mas acima de tudo, agilidade mental para voltar a competir. Viria, contra todas as expetativas, a sagrar-se campeão do mundo na época seguinte.
Encontramos também nos desportistas de excelência a sua superioridade em termos psicológicos, a chamada “estratégia de jogo mental” frente aos seus adversários na preparação da competição e está presente nos mais ilustres desportistas. Destacamos por exemplo Bjorn Borg que antes dos seus encontros realizava exercícios mentais de pré-visualização dos pontos que iria disputar e colocava-se num universo mental diferenciado, não deixando as emoções exteriores interferirem com o seu rendimento desportivo. Observamos também a capacidade estratégica que Muhamedd Ali impunha nos seus adversários tendo como expoente máximo a vitória frente a George Foreman no Zaire. Este atleta destacava-se por cansar o seu potente adversário durante vários rounds, deixando-o assumir as despesas do combate para provocar o desgaste do mesmo e beneficiar dele para a vitória nos rounds finais. Outro exemplo é o de Kelly Slater, campeão do mundo de surf por 11 vezes que impunha nos seus adversários os nossos conhecidos “mind games”, tendo como exemplo a forma como procurava destabilizar os seus adversários, caso claro frente a Andy Irons na corrida pelo título.
Muitos estudos referem que um atleta que pratique 10000 horas de uma determinada atividade desportiva, torna-os quase perfeitos no desempenho dessa atividade. Se muitos atletas chegam a esse número de horas é necessário adquirir capacidades que os distingam dos seus competidores, dessa forma a “estrutura muscular perfeita para um desportista” ganha muito relevo em determinados atletas. Martina Navratilova foi a primeira tenista que introduziu dentro do circuito de ténis feminino uma preparação física tremenda e que a elevou a patamares de excelência. Nadia Comaneci foi a primeira ginasta a receber uma nota 10, tornando-se vencedora de nove medalhas olímpicas, caracterizando-se por ser uma atleta diferenciadora na sua preparação física, iniciando numa idade muito precoce níveis de exigência máximo e atingindo valores de rendimento desportivo nunca antes vistos.
O ponto, para mim, mais interessante tem a ver com a anomalia física que verificamos em alguns dos mais distintos campeões de todos os tempos, se por um lado verificamos que Diego Maradona, Babe Ruth, Leonel Messi não eram protótipos de um corpo perfeito para atingir resultados de excelência, as suas supostas imperfeições foram claramente ultrapassadas pelo seu talento, dotando uma capacidade coordenativa que ultrapassava qualquer comum mortal com resultados de perfeição. Nestes casos, é importante interiorizar que, por mais imperfeito que um atleta pareça à primeira vista, nunca devemos “julgar um livro pela capa”, mas sim esperar sempre para ver o atleta num momento de competição onde as características singulares acabam muitas vezes por potenciar uma resolução de problemas de forma mais ágil do que podemos prever e são esse tipo de atletas, únicos e especiais, que está por vezes o caminho para a “imortalidade” desportiva.
Podemos nesta análise compreender que existe um conjunto de comportamentos ou características presentes em vários dos melhores desportistas de todos os tempos, o ADN de um campeão apresenta características singulares que devem ser identificadas e trabalhadas. Sermos capazes de compreender determinados “traços” de personalidade nestes atletas ajuda-nos como Treinadores a ter uma mente mais aberta sobre o maior leque possível de questões, pois se as dimensões coletivas de uma equipa são importantes, dotar as mesmas de atletas excecionais é uma ajuda preciosa para chegar à vitória.
Artigo elaborado por Luís Estrela:
- Licenciado em Treino Desportivo opção Futebol.
- Treinador de Futebol - UEFA B.
- Treinador de Futsal - UEFA B (estágio).
- Técnico de Exercício Físico.
- Professor de Ténis.
27 de maio de 2020