Ah! Pois é!

Ah! Pois é!

Vivemos em democracia. Isto é, a maior parte do chamado "mundo civilizado" ou "desenvolvido" vive num regime denominado democracia que, etimologicamente significa “governo do povo” (ou governo das maiorias). Todos os cultores do regime democrático invocam a Antiga Grécia para fundamentar e dar "pedigree" à democracia. No entanto, poucos dizem, embora acredite que muitos sabem, que o sistema democrático tem mudado muito ao longo dos séculos.

Considerando o início do sistema a que chamamos democrático no VI século antes da nossa era (EC) em Atenas, Grécia, verificamos que se tratava de um sistema que pretendia a “isonímia” (igualdade perante a lei e os direitos políticos).

Caracterizava-se pela auto-proposição de cidadãos, com mais de 30 anos, em plena posse dos seus direitos cívicos e políticos que eram, depois, “sorteados” por um sistema complexo para os quais os gregos inventaram uma máquina designada “kleroteria”. Dentro desses cidadãos, uns eram designados (sorteados) para serem magistrados e outros (tipicamente 501) para fazerem parte da Assembleia.

Como os magistrados tinham de fazer um juramento solene, as suas decisões prevaleciam sobre as da Assembleia cujos membros não eram ajuramentados. A corte podia anular as decisões da Assembleia.

Os cidadãos escolhidos para cargos políticos eram avaliados através de exames (chamados “dokimasia” pelos gregos) para evitar os incompetentes…

Os magistrados serviam somente durante 1 ano, no mesmo cargo, e podiam ser responsabilizados, após o exercício do mesmo (um processo designado por “euthynai”). Além disso, qualquer cidadão podia requerer a suspensão de um magistrado, se apresentasse cabal justificação para isso.

As decisões eram tomadas pelo sistema de “bola branca” (sim) e “bola preta” (não). Prevalecendo a maioria das bolas brancas, a decisão era tomada.

Aristóteles relacionava “igualdade” com “democracia”. Os gregos chamavam “oligarquia” (por oposição a “democracia”) a um governo de uns poucos sobre a maioria.

No entanto, no diálogo “Gorgias”, Platão (século III da E.C.) coloca na boca de Sócrates (o grego…) a ideia de que o sistema permitia a ditadura de uma maioria (uma parcela maioritária de uma sociedade) sobre a totalidade dessa sociedade atendendo ao facto de que, numa situação de maioria absoluta, prevalecia sempre a opinião dos detentores da maioria, impedindo a alteração do “status”, numa postura a que os gregos chamavam “odocracia” (onde é que eu já vi isto?!...).

Tal situação foi questionada por diversos filósofos da antiguidade e, muito mais tarde, por John Adams em 1788 e popularizada por Stuart Mill (citando Tocqueville) em “On Liberty” (1858).

Diversos sistemas ditos democráticos existiram ao longo dos séculos (podíamos citar, por exemplo, Veneza, Florença, etc.), em especial nas repúblicas e ducados do que viria a ser a Itália, em Inglaterra, etc.

A emergência do conceito moderno de Estado, no início do século XX, veio mudar a definição clássica de democracia.

Olhando a nossa realidade actual, parece que a nossa democracia segue, muito de perto, a democracia original, a Grega.

Embora, em primeiro plano dos poderes políticos e administrativos da Grécia Antiga, estivesse a “Ecclesia” (assembleia de cidadãos), esta tinha de consultar, obrigatoriamente, a "Boulé" (espécie de comissão de 500 magistrados, dos quais 50 eram substituídos, por turnos, de 35 em 35 dias).

No entanto, as grandes famílias de prestígio exerciam pressão na eleição dos membros. Era verdade que os cidadãos tinham direito (real ou ilusório) a uma estrita igualdade. Mas a realidade é que só tinha direito ao título de “cidadão” uma escassa percentagem da população (aproximadamente um quarto dos gregos). Assim sendo, a “democracia” era um privilégio de meia dúzia que dominava a maioria dos metecos e escravos…

Aproximam-se, a passos largos, novas eleições. Declarações e posturas de agentes políticos parecem indicar que isso venha a acontecer, por decisão do Presidente da República.

Muitas vezes me interrogo acerca da relevância da política, dos políticos e da sua actividade, na vida de todos nós.

Anos de vivência e de contacto com a realidade da política regional, nacional e internacional permitem-me ter uma opinião. Não garanto a validade universal dessa opinião, mas…é a minha opinião.

Não nego que a política e a actividade política sejam importantes nas nossas vidas. Seria negar uma evidência. Questiono-me, por exemplo, acerca da consciência que têm os votantes num sistema democrático e a sua preparação e literacia política e social para, em consciência, fazerem as suas escolhas. Escolhas já de si limitadas a colocar uma cruz num boletim onde estão nomes de um conjunto de pessoas, grande parte delas desconhecidas, propostas pelas cúpulas partidárias.

Também me questiono acerca do que faz mover os agentes políticos. A frase que por vezes se ouve “a participação política corrompe”, não me parece destituída de sentido, tendo em vista as circunstâncias actuais e a história.

A maior parte dos votantes revela uma apreciável ignorância, irracionalidade nas decisões de voto e desinformação geral.

Também ponho em causa o conceito de que o direito ao voto capacita as pessoas. Quando muito, a democracia capacita o colectivo, não os indivíduos.

Dados empíricos levam-me a acreditar que muitas das decisões políticas que condicionam a vida de todos nós revelam incompetência quando não má-fé de quem as toma. Além de, não raras vezes, serem tomadas em proveito próprio ou de grupo.

O que os regimes democráticos fazem, com frequência, não é função do que o eleitorado quer e para o que vota.

Uma das consequências perversas da política é tornar as pessoas tribalistas e tendenciosas, predispostas a insultar e a odiar quem delas discorde, sem atender a fundamentações ou a aplicar o elementar princípio do contraditório. Muitas das vezes, à falta de argumentos, a táctica é falar mais alto, tentar desacreditar o opositor ou recorrer ao insulto, para ganhar vantagens.

O debate político faz-me lembrar as aulas do Prof. Ian Shapiro no excelente curso que fiz, há 3 anos, "Moral Foundations of Politics" (University of Yale free courses).

Os fantásticos políticos do nosso país, salvo raríssimas excepções, são capazes de gritar, esbracejar, insultarem-se, mas creio que raros deles colocam a hipótese de que a "discussão" sirva, sequer, para uma ligeira aproximação da verdade, nem para uma modesta tentativa de melhorar a vida dos que pretendem que sejam os responsáveis por permitir-lhes ascenderem ao poder.

Falam (todos eles!) para si próprios e para os seus indefectíveis apoiantes, absolutamente surdos aos argumentos dos outros que, por sua vez, estão completamente surdos aos argumentos deles!

O que interessa é conquistar o poder (e as benesses que, estão certos, este lhes trará), a todo o custo, nem que para isso digam qualquer coisa e o seu contrário, prometam seja o que for, sem qualquer intenção de cumprir.

Não convencem, nem pretendem convencer, os adversários. Não têm a menor dúvida (não demonstram ter...) de serem detentores da verdade absoluta. A “verdade” que lhes interessa.

Isto acontece com os menos "trongos" porque há, ainda, uns que nem desconfiam o que por aí andam a fazer, nem têm a menor pista acerca de qualquer coisa que se aproxime remotamente da realidade.

O pior é que TODOS nós embarcamos nesta farsa, que mais não seja por omissão.

Apesar de tudo, a célebre frase de Winston Churchill "A democracia é o pior regime com excepção de todos os outros", continua a ser verdade...


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