"Ainda Estou Aqui" emociona ao nos mostrar um Brasil que resiste
por Adriano Silva *
Acabo de sair da sessão de Ainda Estou Aqui, em Toronto, onde moro.
O filme me atropelou. Nunca chorei tanto numa sala de cinema. Estou mexido, tocado, ungido por essa obra-prima.
Recorro ao texto, esse velho amigo. O tempo é de vídeo sem rede social. Me permita, no entanto, optar pela palavra escrita para expressar melhor, neste instante, o que estou sentindo.
A interpretação de Fernanda Torres é um prato apurado à perfeição – não há um só grão de sal ou de açúcar faltando ou sobrando. Aliás, quem está na tela não é a Fernanda – é a Eunice Paiva.
Saio da sala apaixonado por essa mulher, essa mãe, essa companheira – pela força, pela suavidade e pelo tino da Eunice, e também da Fernanda
Da mesma forma, não é Selton Mello que vemos na tela. Trata-se de Rubens Paiva. Um pai que poderia ser o seu ou o meu. (Com uma doçura e uma simpatia que só Selton poderia lhe emprestar.)
Um pai raptado de dentro de casa, arrancado da sua família, pelo estado brasileiro.
Um homem assassinado nos porões do exército brasileiro. De modo clandestino e covarde.
Um homem que teve sua vida sumariamente terminada, nas mãos da polícia brasileira, menos de um mês depois de completar 41 anos.
Um homem subtraído de tudo que ainda viveria na companhia da mulher, Eunice, e dos cinco filhos, que viram o pai desaparecer diante dos seus olhos, sem saber que jamais o veriam novamente, quando tinham entre 9 e 16 anos
Rubens Paiva teve a morte negada, escamoteada, mentida, por sucessivos governos brasileiros, ao longo de 25 anos – ele morreu sob tortura, entre os dias 20 e 22 de janeiro de 1971 (uma semana antes de eu nascer), no Destacamento de Operações de Informações (DOI) do I Exército, na Rua Barão de Mesquita, no bairro da Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro.
Rubens Paiva foi assassinado pelo então tenente do Exército Antônio Fernando Hughes de Carvalho, conhecido entre a rataria por Alan, oficial do CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva) ligado à Cisa (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica).
Por seu trabalho na repressão, Hughes de Carvalho, morto em 2005, foi condecorado com a Medalha do Pacificador ainda em 1971.
Além de Hughes, o então major José Antônio Nogueira Belham, na época comandante do DOI, foi apontado como responsável pela morte de Rubens Paiva: ele teria autorizado e participado pessoalmente dos interrogatórios.
Nogueira Belham foi promovido a general, depois marechal, e, hoje reformado, aos 89 anos, vive com um salário de 35 mil reais pago pelos cofres públicos. Na prática, um anistiado.
Quanto a Rubens Paiva, num período de dois anos seu corpo foi enterrado no Alto da Boa Vista; desenterrado, transportado e novamente enterrado no Recreio dos Bandeirantes; desenterrado, embarcado numa lancha e finalmente afundado a alguns quilômetros da costa fluminense
Já sua certidão de óbito só foi expedida em 1996, um quarto de século depois do seu assassinato, graças à luta de uma vida inteira de Eunice.
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Ainda Estou Aqui me tocou profundamente por tudo que ele não tem de sentimentalismo.
Quando você corta os adjetivos, o substantivo fica mais forte. Quanto mais você podar palavras, mais potente fica a frase.
Essa era uma história fácil de contar de modo engajado ou panfletário ou piegas. Walter Salles a apresenta de modo pungente exatamente porque o fez com mão leve.
Deixou que os fatos falassem por si; e as sutilezas se revelassem com força, de modo autêntico; e as verdades emergissem ao natural – sem soterrar nada disso debaixo de um discurso. Uma aula sobre como contar bem uma boa história
Seria ótimo que Ainda Estou Aqui ganhasse muitos prêmios – a interpretação de Fernanda Torres, a atuação de Selton Mello, a direção de Walter Salles, o roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega. (O Oscar seria uma piscadela bonita àquela edição de 1999.)
Mas o filme não precisa de nada disso para ser grande. Ele já é imenso. Da ótima trilha sonora (que garimpa e reapresenta pérolas de Erasmo Carlos, Tom Zé e Juca Chaves) à participação impecável e inexcedível, como sói, de Fernanda Montenegro.
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Pessoalmente, encontrei minha mãe na tela. Seu mundo, sua época, seu zeitgeist. Seus sonhos, suas crenças, sua luta.
E os anos 70 no Brasil, o lugar e o tempo em que vivi minha infância – em meio a Kichutes, Fuscas e desfiles cívico-militares sob o céu de chumbo em 7 de setembro.
Reencontrei na sala escura certezas que deviam estar consolidadas depois de décadas – e que se revelaram frágeis
Conquistas que pareciam garantidas pela História – e que corremos o risco de ver escorrer pelos dedos.
Coisas que aprendi quando criança, valores que me formaram – e que parecem ter perdido importância com o passar dos anos.
Isso tudo me choca. O tanto de obviedades que tanta gente parece ter esquecido, de atrocidades que têm sido minimizadas – como as que explodem na tela de Ainda Estou Aqui.
Os princípios mais básicos de decência e humanidade, que têm sido negados, para gáudio de geral. Com cada vez mais gente incensando o absurdo e vibrando com o caos.
Essa distopia mexe comigo. Não enxerguei esse culto às trevas e ao atraso voltando com tanta força. E se estabelecendo. Como uma doença que julgávamos erradicada e que de repente volta a avassalar
Sempre imaginei que a História anda para a frente. Que caminhamos em direção à civilização, que nos tornamos mais inteligentes, que vamos construindo e espalhando bem-estar pelo planeta.
Talvez seja assim mesmo. E essas inflexões ao passado, essa cegueira ou amnésia autoimposta, esse entusiasmo com o retrocesso, esse aplauso à irracionalidade e à barbárie, esse cinismo, sejam desvios passageiros.
Mas talvez não. Talvez nada esteja garantido – muito menos um futuro melhor. É possível que o Brasil, mesmo depois de tudo que vivemos, venha a qualquer momento se consolidar como um país profundamente reacionário, autoritário, obscurantista.
Ou talvez sempre tenhamos sido assim. E esse seja o nosso espírito. O sentimento hegemônico entre nós. A insensibilidade, o egoísmo, o brutalismo como a nossa mais perfeita tradução.
Talvez nenhuma luta por criar um ambiente mais liberal, democrático e justo entre nós jamais tenha tido a capacidade de nos representar de verdade – e todos esses esforços tenham sido mera exceção. Uma quimera
De um jeito ou de outro, tenho tomado tapas na cara. Achando que minha geração, ao invés de representar avanço, não contribuiu em nada para reduzir o atraso no país. E que eu mesmo talvez pudesse ter feito mais do que fiz.
Sempre achei que íamos deixar para nossos filhos um país melhor do que aquele que recebemos de nossos pais. Estou cada vez menos seguro de que conseguiremos fazê-lo.
Um filme como Ainda Estou Aqui ajuda a segurar a barra – para usar uma expressão daquela época, que continua absolutamente atual.
Mais: Ainda Estou Aqui revela um Brasil no qual acredito. Um país que ainda está aqui. Tanto quanto eu.
O Brasil da Eunice, do Rubens, do Marcelo. E da Fernanda, do Selton, do Walter. E de tanta gente bacana e boa, que não se rendeu, que não desistiu, que continua na disputa para que possamos escrever uma história melhor do que esta que estamos compondo. Um país que resiste
Veja o filme. Leia o livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva que lhe deu origem. Resista.
(Artigo publicado em 2 de dezembro de 2024 no site do Projeto Draft)
*Adriano Silva, 53, é jornalista e fundador da The Factory e do Projeto Draft. É autor de dez livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV, A República dos Editores e Por Conta Própria: do desemprego ao empreendedorismo – os bastidores da jornada que me salvou de morrer profissionalmente aos 40.