Amazônia 4.0 e as Mudanças Climáticas
Desde sua ocupação como colônia portuguesa, o Brasil vive uma relação antagônica com a natureza, a começar pelo seu nome. Ainda que ostente uma referência a uma árvore nativa, a espécie só foi considerada merecedora de importância devido ao valor comercial que sua madeira possuía no mercado europeu quando derrubada. É, portanto, uma lembrança ambígua: ao mesmo tempo em que usa um símbolo para celebrar sua biodiversidade - a mais rica do mundo, como sempre vale ser lembrado -, dá-se importância somente àquilo que pode ser transformado em mercadoria. É uma visão puramente utilitarista que não se preocupa em valorizar o ecossistema como um todo.
Considerando-se a escala de devastação ambiental dos ciclos econômicos subsequentes, no entanto, a exploração do pau-brasil parece hoje um modelo quase idílico: o desmatamento local e pontual deu lugar a derrubada de grandes extensões de florestas para latifúndios monocultores (cana-de-açúcar, café e, hoje - para comprovar que ainda não abandonamos esta mentalidade -, a soja). Como agravante, a riqueza da mata nativa foi completamente abandonada. Ao invés de estudar a utilização em larga escala da flora endêmica, deu-se preferência para o plantio de espécies exóticas. A exuberância natural substituída por um deserto verde. Perdeu-se a biodiversidade e a relação com a terra. O modo de exploração tampouco foi sustentável: a industrialização rural deu-se às custas de mão-de-obra escrava, em princípio indígena e, mais tarde, negra. Desigualdades foram criadas e ampliadas e a renda concentrou-se nas mãos de poucos.
Esse modelo mercantilista intensificou-se ao longo dos séculos e permanece substancialmente inalterado, porém, durante o século XX, houve um despertar progressivo da sociedade para os riscos impostos a médio e longo prazo caso esse sistema desenvolvimentista não seja alterado. Consensos foram criados, muito graças às pesquisas científicas, e hoje sabe-se que os efeitos das mudanças climáticas trazem ameaças existenciais sérias à humanidade. Ao Brasil cabe um papel de liderança no encaminhamento da agenda ambiental, tanto por sua biodiversidade como também pelo seu vergonhoso posto como um dos países que mais contribuem para as mudanças climáticas devido à sua altíssima emissão de gases poluentes.
A relação da sociedade colonial com a natureza contrapõe-se à dos povos indígenas, conforme explica Eduardo Viveiros de Castro na apresentação do livro “Um Artifício Orgânico - Transição na Amazônia e Ambientalismo''. De acordo com ele, a relação dos povos indígenas com o ambiente amazônico, no caso, “não é de uma adaptação passiva das primeiras ao segundo” mas “de uma história em comum, onde sociedade e ambiente evoluíram em conjunto”. É importante reforçar a cosmovisão indígena e de povos tradicionais, pois ela é indissociável de um novo modelo econômico que priorize a sustentabilidade.
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Ainda que a movimentação política esteja caminhando no sentido contrário ao desejado, em especial na última década, período em que foi revisado o Código Florestal e houve um desmonte acelerado dos mecanismos de fiscalização e controle ambiental, a sociedade civil dá sinais de estar mais alinhada com as metas e ambições necessárias para frear as mudanças climáticas e reverter o ciclo de destruição que perdura no Brasil há tantos séculos. Dentre as diversas iniciativas de restauração e preservação que, em maior ou menor grau, vêm sendo desenvolvidas e implementadas pelo país, uma das que mais se destaca é o projeto Amazônia 4.0, desenvolvido pelo pesquisador Carlos Nobre.
Pela primeira vez em mais de 500 anos de história, o Brasil tem em mãos a oportunidade de desenvolver uma região inteira do país de maneira sustentável, aproveitando ao máximo a riqueza de sua biodiversidade e do multiculturalismo da floresta (indígenas, quilombolas, ribeirinhos, colonos etc). A favor do projeto Amazônia 4.0 conta a altíssima taxa de florestas remanescentes na Amazônia brasileira (cerca de 80%) e que, mesmo ostentando um aumento da área desmatada nos últimos anos, pode ter sua devastação controlada num prazo curto se houver a conciliação de políticas de comando e controle com incentivos ao desenvolvimento sustentável. Além do aspecto econômico e social favorável, conta também a pressão internacional. Caso nada seja feito, o Brasil corre sérios riscos de ser vítima de sanções embasadas nos consensos construídos nos fóruns mundiais, dos quais o Acordo de Paris é o fruto mais recente - mas não definitivo.
Não bastasse o cenário internacional desfavorável, há grandes chances do agronegócio brasileiro ser duramente afetado pelos efeitos das mudanças climáticas, tanto aqueles já contratados - irreversíveis - como aqueles que ainda podem ser contidos. Sabe-se que o regime de chuvas do Centro-Oeste e Sudeste depende dos chamados rios voadores da Amazônia. Com a intensificação do desmatamento na região Leste e Sudoeste do bioma, no entanto, já se verifica uma redução considerável do volume pluviométrico no Pantanal e Cerrado, com consequências que vêm sendo sentidas nos últimos 2 anos como incêndios descontrolados, períodos prolongados de estiagem e diminuição do nível de reservatórios energéticos e de abastecimento. Adicionalmente, a Amazônia é um ecossistema cujo equilíbrio depende da sua própria manutenção, como as pesquisas do próprio Carlos Nobre atestam. Caso haja uma disrupção excessiva do equilíbrio atual, causado pelo desmatamento de cerca de 25% da área total do bioma, a Amazônia entrará num processo de savanização que empobrecerá a região e emitirá ainda mais carbono para atmosfera, retroalimentando o ciclo vicioso das mudanças climáticas.
Urge, portanto, que o Brasil tome medidas sistêmicas para redefinir seus rumos desenvolvimentistas, garantindo o equilíbrio da sociedade e de seus biomas para as próximas gerações. O projeto Amazônia 4.0 deve, então, ser entendido como uma de tantas engrenagens que ainda precisarão ser desenvolvidas e implementadas para que seus efeitos benéficos sejam sentidos por todo o país.