Antonio Cicero tomou decisões soberanas e bem informadas ao longo de toda sua vida. Por que não poderia fazê-lo em relação à sua morte?

Antonio Cicero tomou decisões soberanas e bem informadas ao longo de toda sua vida. Por que não poderia fazê-lo em relação à sua morte?

Imagine que você foi diagnosticado com uma doença neurodegenerativa, progressiva, para a qual não há tratamento nem cura.

Você começa a se esquecer de eventos que ocorreram em sua vida. Não apenas no passado distante, mas também de coisas que lhe aconteceram ontem.

Você passa a não reconhecer mais pessoas que fazem parte da sua rotina, ou com quem você já conviveu. Você tem medo de passar a não reconhecer também os amigos mais queridos.

A convivência com as pessoas em seu círculo íntimo, que era a coisa que você mais valorizava no mundo, se transforma em constrangimento. Você passa a ter vergonha de encontrá-los, de estar com eles. Porque você é cada menos você. Você está deixando de ser a pessoa que eles conheceram.

Você vai perdendo a capacidade de trabalhar, de pensar, de resolver problemas. Você é um poeta e não consegue mais escrever poemas. Você não consegue mais ler – uma atividade central em sua vida. Você vai perdendo a capacidade de fazer as coisas de que mais gosta, uma a uma.

Há um toque especial de crueldade: você ainda está lúcido o bastante para acompanhar tudo isso que está lhe acontecendo. Você não sumiu de uma vez – você está sumindo aos poucos. Então você se enxerga imerso nesse cenário terrível e inexorável, que você sabe que só vai piorar com o passar dos dias.

A consciência que lhe resta lhe diz que quem decide se a sua vida vale a pena ser vivida ou não é você mesmo – e mais ninguém. Assim como está claro que só você mesmo poderá dizer quando o limite daquilo que você considera digno, suportável e aceitável for atingido.

Então você decide agir. Enquanto é possível decidir. E enquanto é possível agir. Você escolhe ir embora enquanto ainda está aqui.

 “Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade,” Antonio Cicero (Rio, 6 OUT 1945 – Zurique, 23 OUT 2024)

O texto acima é inspirado na carta de despedida do poeta e filósofo Antonio Cicero, irmão da cantora Marina Lima, compositor de várias canções de sucesso e membro da Academia Brasileira de Letras.

Antonio Cicero morreu na quarta, 23 de outubro de 2024, em Zurique, aos 79 anos, num procedimento de morte voluntária assistida (MVA) autoadministrada.

Na MVA autoadministrada, o próprio indivíduo se aplica, num ambiente controlado e sob supervisão, cumpridos os pré-requisitos médicos e legais, uma dose letal de anestésico, morrendo de modo rápido e sem sofrimento.

Na Suíça, a MVA administrada por terceiros (também conhecida por eutanásia) é proibida.

Antonio Cicero foi exercer na Suíça um direito civil básico que ainda não está disponível aos cidadãos no Brasil: o acesso uma morte pacífica e humanizada, sem dor, num ambiente seguro tanto do ponto de vista médico quanto do ponto de vista legal.

Já está mais do que na hora de discutirmos os direitos de fim de vida no Brasil. E de garantirmos a nós mesmos a prerrogativa da autodeterminação.

Porque qualidade de vida implica também em morrer de modo digno, nos termos que cada um escolher para si. O Brasil está muito atrasado nesse debate. Somos uma sociedade tanatofóbica. E, não por acaso, um dos piores lugares do mundo para morrer.

Por isso criei o BoaMorte.org, um espaço digital dedicado a que possamos avançar nessa conversa. Vem comigo.

Marta Martins DeVito

Changemaker I Global brand builder I Amazonia's Brand Ambassador I CEO & Co-Founder I Visionary | Creative Designer Strategist | KeyNote Speaker I Brazilian American

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Assunto complexo. Respeito a decisão e o poder da escolha. Perdi meu marido para esta doença e sei o desafio para aqueles que convivem e para o proprio doente. Que bom que ele pode fazer esta escolha

Raphaela Machado

Gerente de Aquisição de Talentos, Aprendizagem e Desenvolvimento, CTG Brasil

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Conversa muito com o tema do novo filme do Almodóvar “o quarto ao lado”. Acho que, a partir de agora, cada dia falaremos mais sobre esse assunto.

Elisabete Novaes de Souza

Bibliotecária | Licenciada em Letras

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Concordo que todos deveriam ter acesso a ter o acesso uma morte pacífica e humanizada como descrito no texto. Os tutores pode fazer por seus bichinhos, por que não podemos para nós mesmo em casos de doenças sem cura e que judiam tanto?

Mônica Gregori

COO Pacto Global da ONU - Rede Brasil

1 m

Que iniciativa generosa Adriano Silva ! Quem ja conviveu com uma pessoa com Alzheimer sabe o que significa “morrer em vida”, pois a pessoa , ou melhor, sua Persona, deixa de existir muito antes do descesso. Chegar ao fim da vida com dignidade é um direito de todo ser humano.

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