Arrecadação de pedágio em "free-flow" e obrigações das agências reguladoras
Em dissertação apresentada ao PPGD/UFSC, abordei a força normativa do Princípio da Proporcionalidade na modelagem dos contratos de concessões rodoviárias e mecanismos de arrecadação de pedágio.
Historicamente, o modelo de arrecadação estruturado mediante a instalação de praças de pedágio provoca graves distorções, ensejando o problema do free-riding, quando usuários utilizam o serviço público sem oferecer qualquer contraprestação, ao tempo em que outros usuários são demasiadamente onerados.
No Estado de Santa Catarina, um usuário que trafegue pela rodovia BR-101/SC, desde a cidade de Tijucas até a praia de Guarda do Embaú, sairá da rodovia federal no acesso para Enseada da Pinheira, que dista 8,2 km da praça de pedágio de Palhoça, situada mais adiante. Portanto, o usuário percorrerá trajeto de 80,3 km na rodovia federal, durante cerca de uma hora – admitindo-se tráfego normal –, mas não pagará tarifa de pedágio. Em outra situação, um usuário que se desloque também da cidade de Tijucas até Meia Praia, populoso bairro de Itapema, sairá da rodovia federal após atravessar a praça de pedágio de Porto Belo, situada entre os pontos de origem e destino. Portanto, esse usuário percorrerá trajeto de 14,3 km da rodovia federal, durante cerca de dezoito minutos – admitindo-se tráfego normal –, e pagará tarifa de pedágio. O primeiro usuário percorrerá distância superior em quase seis vezes em relação à distância percorrida pelo segundo usuário, mas não pagará tarifa.
Evidentemente, as hipóteses mencionadas revelam grave distorção arrecadatória, sem que exista qualquer razão jurídica de discrímen. O tratamento jurídico desigual decorre não de uma vontade política, mas de configurações técnicas que já não se mostram adequadas ante a realidade contemporânea. A questão é geradora de tantas iniquidades que também em Santa Catarina surgiu lide sobre a qual o STF declarou repercussão geral, enumerado com o tema 513. O leading case reaviva a discussão da (in)constitucionalidade da cobrança de pedágio intermunicipal sem disponibilidade de via alternativa.
Há de se considerar que na década de 90, quando da criação do Programa Nacional de Desestatização e correlatos programas de concessão de infraestrutura, a arrecadação de pedágio, de acordo com o estado da técnica prevalecente naquela época, baseava-se na instalação de praças de pedágio. Embora o modelo praticado fosse desproporcional, não se poderia inferir ofensa ao Princípio da Proporcionalidade, porque solução outra (e menos onerosa) não havia. Naquele momento histórico, o modelo atendia às sub-regras de adequação e necessidade, não merecendo repulsa do Direito. O problema do free rider existia, mas não havia soluções concretas viáveis que possibilitassem sua mitigação.
Atualmente, o cenário é outro, e aquele modelo que, em vista dos objetivos proclamados pela política pública de desestatização e de reinvestimento na infraestrutura nacional, mostrava-se compatível com a ordem jurídica, já não o é, porque fere o Princípio da Proporcionalidade e, por reflexo, o Princípio da Igualdade, atribuindo discriminações injustificáveis aos usuários. Mais, o modelo atual ofende os Princípios da Eficiência e da Atualidade, gravados no artigo 6º, §1º, da Lei de Concessões, haja vista o desenvolvimento acessível de tecnologias que possibilitem a operacionalização do serviço público de acordo com os princípios jurídicos preditos.
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A recente publicação da Lei n. 14.157, de 1º de junho de 2021, inaugura a positivação do Princípio da Proporcionalidade no âmbito das concessões públicas, ao estabelecer condições para a implementação da cobrança pelo uso de rodovias e vias urbanas por meio de sistemas de livre passagem, com o intuito de possibilitar pagamentos de tarifas que guardem maior proporcionalidade com o trecho da via efetivamente utilizado. Assim, a questão que há alguns anos, desde a implantação dos programas de concessões rodoviárias na União e Estados federados, ocupa os Tribunais, sem encontrar solução pacífica, atrai a atenção do legislador pátrio, que determina condicionantes para a arrecadação de pedágio.
Portanto, a Lei determina que existindo possibilidade de implementação do sistema de livre passagem, não resta outra escolha à agência reguladora, de tal sorte que a decisão é vinculada. Disso não se traduz, porém, que a decisão seja automática. Desde a publicação da Lei n. 14.157/2021, é altamente recomendável que as agências reguladoras dos diversos entes federados promovam estudos voltados ao levantamento e tratamento de informações como volume de tráfego, delimitação de trechos homogêneos, identificação, regularização e proibição de acessos, tendência de expansão ou retração econômica da região interceptada pela rodovia, custos de implantação do sistema, estimativa de receita e diagrama de linhas de desejo.
Fator muito importante, que convém considerar para a tomada de decisão, é o tempo restante para a extinção do contrato. Restando poucos anos para a extinção do vínculo obrigacional entre o poder concedente e a concessionária por decurso do prazo contratual, pode ser mais vantajoso que, em vez de celebrar termo aditivo para a implantação do sistema de livre passagem na concessão vigente, tal medida seja efetuada na concessão futura, incorporando-se essas condições aos estudos econômico-financeiros que precedem a licitação. Logo, ainda que seja viável a imediata adoção do sistema de livre passagem, essa pode não ser a melhor opção, em razão de peculiaridades do caso concreto. Situação oposta seria aquela em que o contrato de concessão, com prazo de vigência de vinte ou trinta anos tenha sido celebrado há poucos anos, de maneira que, manifestada a viabilidade da implantação do sistema de livre passagem, não seria razoável esperar durante décadas pelo momento de sua implantação. Havendo possibilidade de conferir pronta efetividade ao Princípio da Proporcionalidade na tarifação dos usuários, o feixe normativo da Lei n. 14.157/2021 orienta que os atos administrativos em sua homenagem sejam praticados.
Se asseverada a viabilidade da implantação do sistema de livre passagem, a decisão sobre concretizá-lo é vinculada. Quanto à ausência de proporcionalidade na tarifação dos usuários da BR-101/SC, se aprofundados esses estudos pela ANTT, de modo a constatar a viabilidade técnica e econômica da implantação do sistema de livre passagem, tal medida se impõe, em virtude da força cogente do art. 1º, §3º, da Lei n. 14.157/2021.
Nos contratos de concessões rodoviárias vigentes, inevitavelmente a implantação de sistema de livre passagem dependerá da alteração do programa de exploração da rodovia ou instrumento símile, com inclusão de requisitos técnicos e parâmetros de desempenho, refletindo-se no termo de contrato as cláusulas de fiscalização e penalidades. Por conseguinte, tal medida importará no cálculo do reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, para o que é imprescindível o desenvolvimento de metodologia própria pela ANTT, mediante processo de participação e controle social e acompanhamento dos órgãos de controle externo. A questão é diretamente relacionada à mutabilidade dos contratos de concessão, engendrada pela evolução das técnicas que passam a conformar o interesse público.
Attorney at Law - Legal Counsel
3 aExcelente texto!
Especialista em regulação de serviços de transportes terrestres e estudante de Direito
3 aBoa reflexão. Importante ressaltar que frente as matrizes de riscos contratuais, a conversão do risco de tráfego do modelo de cobrança por praças de pedágio para o modelo de pedágio "free-flow" passa longe de ser medida trivial, não se limitando a multiplicação, para efeitos de cobrança de uma tarifa de "flee-flow", de um simplificado custo quilométrico pela futura distância percorrida.