Autocomposição: como vivê-la em uma sociedade analfabeta emocionalmente?

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Autocomposição? Pacificação social? Solução consensual de conflitos? Nunca ouvi falar a respeito em minha época de escola, entre os anos 1980 e 1990, mas me encantei ao saber que essas são as palavras de ordem da nossa Política Judiciária Nacional de tratamento adequado de conflitos. Promulgada pela Resolução n. 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça, dentre suas determinações, a Política legitima o emprego dos métodos consensuais na solução dos conflitos cotidianos e define as diretrizes curriculares para a formação de mediadores e conciliadores. É, sem dúvidas, um divisor de águas para o sistema judiciário brasileiro e sociedade civil na medida em que reconhece a necessidade da desjudicialização dos conflitos e, sobretudo, do resgate do protagonismo humano para a pacificação e vinculação social. São muitos os avanços. De lá para cá, novas leis foram criadas e têm norteado a atuação dos agentes facilitadores do consenso, como a Lei n. 13.105 de maio de 2015, que instituiu o Novo Código de Processo Civil, e a Lei n. 13.140 de junho de 2015, que regulamenta a mediação no âmbito da administração pública. Fruto dessas inovações – e da necessidade de facilitadores competentes para dar conta dos conflitos recorrentes nas esferas pública e privada –, foram criados inúmeros cursos de formação de mediadores pelo país, além das câmaras de mediação e conciliação. Isso contribuiu para a propagação e consolidação de alguns termos que antes eram restritos ao Direito, como “mediação familiar”, “mediação empresarial”, “mediação comunitária” e “mediação escolar”. Hoje, é fácil encontrar disciplinas de mediação de conflitos nos currículos acadêmicos de outras áreas, como, por exemplo, na Administração, nas Relações Públicas e na Educação. Tudo isso estruturado em um mecanismo básico de solução de conflitos – a autocomposição. Esse mecanismo, por sua vez, sempre esteve presente nas sociedades primitivas, embora nem sempre fosse o preponderante. Consiste, basicamente, na simples prática de as partes alcançarem o entendimento entre si, uma por meio da outra, e não por meio do litígio ou da violência. A reboque, estão alguns ingredientes essenciais – cooperação, diálogo, outridade, sensibilidade, regulação emocional, afeto e autonomia. Sem eles, não existe autocomposição, quer a que se dá por meio da facilitação de um terceiro (a mediação), quer a direta entre as partes (a negociação). Sem eles, na verdade, a autocomposição é mera figuração, uma espécie de contrato racional e utilitarista que visa servir aos interesses subjacentes dos mais fortes. Sei que parece estranho imaginar duas pessoas envolvidas em um conflito fazendo concessões mútuas e reconstruindo suas relações sociais de maneira autônoma. Afinal, os conflitos envolvem tensões emocionais, sentimentos negativos e, em muitos casos, comportamentos agressivos que desequilibram nosso ser e nos repelem dos outros. Contudo, é possível. Basta que a racionalidade e as outras dimensões que nos envolvem estejam em sinergia com a dimensão emocional. Somos, nesse aspecto, analfabetos emocionais, incapazes de lidar com a nossa dimensão emocional. Tal incapacidade é tributária da estrutura social em que habitamos, articulada com um sistema educacional que reproduz fielmente suas mazelas sociais – desigualdade, violência e individualismo. Ora, ficamos presos demais ao aprendizado de normas, técnicas e conteúdos instituídos pelo mercado (cada vez mais financeirizado) e perdemos a chance de viver positivamente a emocionalidade do comum. Tratar de autocomposição nesse tipo de sociedade, portanto, soa mais como uma excelente saída (a ideal) para um problema social do que, de fato, uma vivência possível. Este é o cerne da questão – como podemos viver a autocomposição em uma sociedade que é, por essência, analfabeta emocionalmente? Do ponto de vista das tensões cotidianas, vislumbro que a partir de uma (re)educação emocional. Ela, como processo, pode atuar na construção de competências emocionais, permitindo que as pessoas tomem consciência dos fenômenos emocionais e de seus próprios mapas emocionais, desenvolvam habilidades de regulação de suas emoções, além de atitudes adequadas frente às tensões. Com efeito, um processo pedagógico aliado a outros comprometidos com a mudança e o bem-estar social. Se, no plano sociocultural, o novo paradigma judiciário investe na ressignificação do conflito, assumindo-o positivamente como oportunidade de transformação social ao invés de uma disfunção negativa (como algo ruim), a concretização disso, a meu ver, se dá com o suporte da (re)educação emocional. A emergente doutrina judiciária espera que, diante dos conflitos, deixemos de lado nossas respostas habituais (culpabilização, penalização, agressão, ressentimento) e, espontaneamente, passemos a dar respostas vinculativas (entendimento, proatividade para resolver, reconstrução de regras, diálogo, afeto). Frente a essa expectativa, enquanto somos moldados pela razão instrumental dominante, pergunto – como chegaremos a esse nível senão por meio da regulação emocional? Como os mediadores comunicativos compreenderão as emoções das partes, em busca da autocomposição, se não tiverem competências emocionais? Enfim, são muitas as questões e os desafios para uma vivência efetiva da autocomposição de conflitos. Por outro lado, são muitos os métodos socioemocionais disponíveis e adequados para cada desafio, a exemplo das Práticas Integrativas e Complementares (PIC’s), recomendadas pelo Ministério da Saúde. O que não existe, diante da questão principal, é espaço para o modo de pensar tradicional no que tange o determinismo metodológico e as demarcações das fronteiras disciplinares. Afinal, como adverte o professor de Direito, Luís Alberto Warat1 , “As fronteiras das diversas disciplinas perderão suas tradicionais demarcações [...] É um absurdo, então, insistir para que os juristas tenham que pensar a complexidade dos vínculos humanos na simplicidade linear do legal e normativo”.

Thiago Barros

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