Breves reflexões sobre o Poder Judiciário e a litigância indevida


 

 

As discussões sobre as dificuldades reinantes no Poder Judiciário brasileiro têm revelado que o tempo excessivo na administração da justiça constitui grave perigo para o Estado Democrático de Direito e pode chegar à negação dos direitos previstos na Constituição da República, muitas vezes com reflexos imediatos no princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado como fundamento do ordenamento jurídico constitucional brasileiro. A questão, é claro, exige solução imediata no âmbito de atuação do Poder Judiciário e urgente tomada de posição na busca da sua solução, para fazer valer o princípio da duração razoável do processo.

Um segundo fator, relacionado ao primeiro, contribui para a situação desconfortável que tem dado causa ao desapreço cultivado em relação aos órgãos judiciais: o excesso de demandas.

A contínua produção de leis, as sucessivas alterações que se fazem no ordenamento processual, as novidades que se imaginam, a construção de um aparato legal unicamente técnico-jurídico – muita vez destituído de consciência social – são medidas tão ineficazes quanto o ritmo e a corpulência que se lhes são conferidos. O mundo atual recomenda, ao contrário, e com rigor, a impostergável necessidade da adoção de espírito e postura de solidariedade nas relações sociais e, além disso, de preito a valores culturais, com o consequente exercício consciente de responsabilidade por parte de todos os segmentos da sociedade. Parece claro que não é necessário muito esforço para verificar o desconfortável e volumoso número de ações e litígios em curso perante as distintas jurisdições (civil, penal, trabalhista, ambiental, consumerista, tributária etc.). E aqui que está a segunda questão.

Não é difícil verificar quantos acorrem ao Poder Judiciário com visão individualista, própria de subjetivismo egoísta, na crença de que podem utilizá-lo sem qualquer preocupação com os nefastos resultados institucionais ou sociais que tal atitude possa causar. Bem por isso é que qualquer plano que se pretenda elaborar para o alcance da almejada duração razoável do processo e da efetiva prestação jurisdicional será tão inútil quanto for o seu desprezo pelo anseio descabido de que um só, e apenas um, processo tenha reflexos maléficos de toda ordem na sociedade.

A visão de que o Estado, em seu segmento judiciário – que também representa a sociedade –, está sempre a serviço de interesses individuais ou de grupos, com a possibilidade de manutenção indevida e onerosa de processos inacabáveis, é própria de uma era ultrapassada e de mentalidade obtusa, firmada sobretudo na crença de que quase tudo é possível em nome de uma equivocada concepção de democracia. A análise que se pretenda fazer sobre o tema não pode se resumir a uma cultura demandista, a despeito do que tem ocorrido e se agravado na sociedade brasileira por força também de uma concepção desvirtuada da garantia constitucional do acesso à justiça, que se presta a variada espécie de abuso. Não raro, processa-se e se é processado por vingança, por pirraça, por inveja, por se tratar de um bom negócio, por tentativa, por tudo.

Em boa hora o CNJ vem se dedicando a tema do assoberbamento do Poder Judiciário, cogitando de medidas tendentes da litigiosidade abusiva no País.

Está claro – e não poderia ser diferente – que não se pensa em impingir prejuízo ao cidadão e a grupos e instituições privadas ou públicas, até porque o princípio da inafastabilidade da jurisdição, como instrumento de acesso à Justiça, é garantia constitucional prevista no inciso XXXV, do artigo 5º da Lei Maior da República, nela inserido como direito fundamental.

Não se prescinde, é evidente, de profundo, coerente e cuidadoso exame do rol de medidas propostas, que certamente virão contribuir para o desidrato apresentado. Dir-se-á que a solução não está no limite de acesso, mas na construção de uma sociedade justa, na aplicação de recursos para a saúde, a educação e para outros fins. Sim, também isso é imprescindível. O tema é delicado e reclama a contribuição de todos – sociedade e instituições – rumo à consecução do propósito ofertado, de modo a atender à justificativa que lhe dá sustentação.

Afinal, como bem asseverou a Ministra Nancy Andrighi na relatoria REsp nº 1.817.845, em que se enfrentou o tema do abuso processual,

é preciso repensar o processo à luz dos mais basilares cânones do próprio direito, não para frustrar o regular exercício dos direitos fundamentais pelo litigante sério e probo, mas para refrear aqueles que abusam dos direitos fundamentais por mero capricho, por espírito emulativo, por dolo ou que, em ações ou incidentes temerários, veiculem pretensões ou defesas frívolas, aptas a tornar o processo um simulacro de processo.

É imperioso lembrar, por fim, para o bem de todos, que “direitos são serviços públicos que o Governo deve entregar como resposta em troca de tributos pagos por cidadãos comuns”[1]. E, com isso, concluir que a sociedade não pode arcar com a reprovável postura de um ou de alguns – incontáveis, na verdade – que, por capricho ou conveniência, mantêm abarrotado o sistema judiciário brasileiro.   


[1] Holmes, Stephen e Sunstein, Cass. The Cost of Rights- Why Liberty Depends on Taxes. New York and London: W. M. Norton, 1999, p 151). (Holmes, Stephen e Sunstein, Cass. The Cost of Rights- Why Liberty Depends on Taxes. New York and London: W. M. Norton, 1999, p 151. Tradução livre.

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