CAMISA S #08: Para onde vai a filantropia?
Arte: Olivia Guidotti

CAMISA S #08: Para onde vai a filantropia?

Publicada a cada três semanas, esta newsletter é produzida por Rodrigo Pipponzi, presidente do Conselho do Grupo MOL, presidente do Instituto ACP e membro do Comitê de Sustentabilidade da Raia Drogasil. Conta com a edição da jornalista Mariana Tavares e a participação de pessoas convidadas. Entre, fique à vontade e mande sugestões!


Para onde vai a filantropia? Um panorama do setor social

Por Rodrigo Pipponzi e Mariana Tavares

Nesta edição inaugural de 2024, Camisa S se dedica a um exercício de análise do que dizem as principais pesquisas setoriais. Que cara tem a filantropia atual? Quais tendências se desenham para o futuro? Quais oportunidades temos a explorar?

Desbravamos as principais pesquisas e estudos de 2023 em 6 grandes tendências, que você pode conferir abaixo :)

(E com a intenção de que você possa fazer suas próprias reflexões, disponibilizamos em formato PDF a síntese de seis relevantes estudos nacionais e internacionais para você ter à mão. Basta baixar os arquivos – é grátis!)


1️⃣ 🌎 Um mundo mais generoso

A humanidade está mais preocupada com o próximo. Pelo menos é o que dizem as pesquisas.

De acordo com o World Giving Index 2023, da Charities Aid Foundation, o aumento na generosidade global visto durante a pandemia de COVID-19 se manteve. Em 2022, quase três quartos da população adulta mundial (72%, ou 4,2 bilhões de indivíduos) doaram dinheiro, tempo ou ajudaram pessoas desconhecidas.

E ainda que no ranking de 142 países o Brasil tenha registrado uma queda importante – caiu da 18ª posição, na edição de 2022, para 89º lugar, em 2023 –, o país vem consolidando uma evolução nos três quesitos avaliados quando observamos a série histórica - a queda se explica muito pelo crescimento da generosidade de outros países. Clique aqui e aqui para uma análise completa que fiz sobre esses resultados brasileiros.

A Pesquisa Doação Brasil 2022, do IDIS, reforça a percepção de fortalecimento da cultura de doação no país. Registrou-se em 2022 o maior percentual de brasileiros acima de 18 anos que realizaram algum tipo de doação na série histórica (84%), com aumento de 50% na mediana dos valores doados ao longo do ano em relação a 2020 (R$ 300).

O futuro é promissor: ainda segundo o IDIS, 45% dos doadores institucionais querem doar mais no próximo ano e 93% das pessoas que não doam consideram mudar de postura – uma baita oportunidade para organizações da sociedade civil (OSC)!

Já no que diz respeito ao investimento social privado (ISP) brasileiro, se há avanços, há também muito espaço para crescimento.

De acordo com o Censo GIFE 2022-2023, o valor total mobilizado pelo ISP em 2022 (R$ 4,8 bilhões) representa um aumento de cerca de 20% em comparação com a média de 2015 a 2019. Mas o montante investido por empresas – segundo grupo com maior volume de investimentos – voltou ao patamar de 2014, além de se constatar uma relevante concentração no ISP: apenas 20 organizações responderam por mais de 70% do volume investido em 2022.

(Vale dizer que muitas iniciativas de ISP não são mapeadas no censo, o que significa que os volumes – e o potencial! – podem ser maiores.)

Por fim, o BISC 2023, da Comunitas, mostra um cenário de priorização da agenda social pelas empresas: apesar da redução no volume total investido (R$ 4,026 bilhões), a mediana do percentual do investimento social corporativo em relação ao lucro bruto das empresas subiu de 0,69%, em 2021, para 0,80%, em 2022. No entanto, a distância entre o resultado brasileiro e o indicador estadunidense já foi menor, deixando claro que podemos avançar.

(E fique de olho: vem aí o lançamento do Compromisso 1%, movimento liderado pelo Instituto MOL e IDIS - Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social que busca incentivar as empresas a se comprometerem com a doação anual de pelo menos 1% de seu lucro líquido. Saiba mais nesse artigo que escrevi com a Paula Fabiani no BISC 2023!)


2️⃣ 😄 Quer ser feliz? Doe!

Não resta dúvida: doação e bem-estar estão ligados!

Segundo o World Giving Index 2023, pessoas satisfeitas com a vida tendem a doar mais. Entre os dez países cujas populações mais doaram dinheiro em 2022, a maioria tem níveis de felicidade acima da média (com base no relatório World Happiness, da ONU). O contrário também vale para as nações com os piores resultados no ranking.

Em território nacional, a Pesquisa Doação Brasil 2022 mapeou um nível alto de satisfação com o ato de doar ao longo de toda a série histórica. Em 2022, 91% dos doadores institucionais se disseram satisfeitos em fazer doações e 88% da população geral opinou que doar faz bem a quem doa. Os resultados são ainda mais positivos entre a Geração Z.

Mas talvez a fonte mais categórica seja The Emotional Rewards of Prosocial Spending Are Robust and Replicable in Large Samples, publicado em dezembro de 2022 por três pesquisadoras do Canadá e dos Estados Unidos.

Não só o estudo comprovou que usar recursos financeiros para ajudar outras pessoas traz felicidade, como identificou fatores-chave para que esses benefícios emocionais sejam sentidos: dar à pessoa doadora a escolha sobre como doar e garantir que ela compreenda de que modo sua generosidade faz a diferença. Neste post, falo mais sobre os achados da pesquisa.

Uma dica final: a relação entre doação e felicidade é um dos temas explorados por Chris Anderson, curador-chefe do TED Conferences, em seu livro Infectious Generosity. Aqui compartilho impressões sobre a leitura!


3️⃣ 🤲🏼 Doação não é sinônimo de dinheiro

As pesquisas consideradas apontam para uma conclusão fundamental: é possível fortalecer a cultura de doação sem ser pela via do gasto financeiro.

A maior parte dos países nas dez primeiras posições da generosidade no World Giving Index 2023 não são economias desenvolvidas. E tanto no resultado global quanto no caso brasileiro a principal maneira utilizada pelas populações para demonstrar generosidade em 2022 não foi doar dinheiro, e sim ajudar alguém desconhecido.

Já na Pesquisa Doação Brasil 2022, observa-se um padrão similar entre a doação de dinheiro, bens e tempo na série histórica: queda em 2020, em comparação com 2015, seguida de aumento em 2022. Destaque para a doação de bens, que em 2022 (75%) superou o registrado em 2015 (62%).

Ainda nessa pesquisa, vale notar o comportamento da Geração Z: os jovens doaram menos dinheiro do que a população geral – algo esperado, já que a renda costuma ser menor –, mas a ultrapassaram em doação de bens e tempo. Além da doação, 62% dessa faixa etária se engajou em outras ações em prol de causas socioambientais, sendo que 43% se mobilizou mais de uma vez.

Por fim, o BISC 2023 mostra que há oportunidades no campo do voluntariado corporativo: 13,4% do total de funcionários se envolveram nos programas das empresas em 2022, número que tem oscilado na série histórica. Houve aumento na diversificação das ações, cabendo ressaltar que as três práticas mais comuns (voluntariado digital, atividades em grupo e liberação de horas de trabalho) não envolvem doação direta em dinheiro.

Se, nas palavras do consultor Kevin Brown, “o dinheiro sequestrou a filantropia”, precisamos encarar o desafio narrativo de desassociar a filantropia – cujo significado é “amor à humanidade” – das doações financeiras. Aqui, comento a fala de Brown e exploro o tema.


4️⃣ 🤝 Confiança é a base

É notória a posição estratégica ocupada pelas OSC tanto no avanço das causas socioambientais – como questionou Cristiane Sultani, do Instituto Beja, no 6º Encontros Doar: quantas pessoas deixariam de se alimentar caso essas organizações parassem de trabalhar? – quanto no ecossistema do investimento social privado brasileiro.

O Censo GIFE 2022-2023 e o BISC 2023 mapeiam o escopo dessa relação: enquanto 84% dos Associados GIFE têm algum tipo de estratégia de apoio a OSC, em um repasse na ordem de R$ 838,3 milhões (17% do volume de investimento total) em 2022, a Rede BISC apoiou 949 OSC com repasses diretos, totalizando R$ 147,3 milhões (queda de 51% em termos reais em relação a 2021).

Mas é imprescindível reforçar a contribuição das OSC não só à esfera social, mas também à economia nacional – tarefa à qual se dedica A importância do terceiro setor para o PIB no Brasil, de Movimento por uma Cultura de Doação, Sitawi Finanças do Bem e Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe).

Segundo o estudo, as atividades do terceiro setor contribuem com 4,27% do PIB brasileiro, o que equivale a mais de R$ 220 bilhões. Isso é mais do que a fatia do setor de fabricação de automóveis, caminhões e ônibus (1,73% do PIB).

Além disso, o terceiro setor responde por 5,88% dos postos de trabalho no país (mais de 6 milhões de postos) e gera R$ 86,4 bilhões anuais em remuneração (salários e contribuições sociais considerados).

Diante desse quadro, era de se esperar um cenário de valorização e apoio às OSC. Mas não é isso que as pesquisas mostram.

Entre a população, a Pesquisa Doação Brasil 2022 indicou um retrocesso relevante nas opiniões sobre organizações não governamentais: apenas 31% acreditam que a maior parte das ONGs é confiável (10% a menos do que em 2020) e 45% não têm confiança no que será feito com seu dinheiro caso doem (resposta com tendência de crescimento na série histórica).

Já entre institutos, fundações e empresas, chama atenção o peso dado à confiança e transparência na relação com as OSC: no Censo GIFE 2022-2023, por exemplo, esse é o principal critério (75%) utilizado pelos Associados GIFE para apoiar organizações.

Há, portanto, uma necessidade premente de estratégias claras, criativas e consistentes de comunicação por parte das OSC, de modo a dar a real dimensão de sua importância no Brasil e reverter percepções negativas da opinião pública – muitas vezes alimentadas por falas irresponsáveis de governantes e coberturas superficiais da imprensa.

Igualmente fundamental é que o ISP avance ainda mais na agenda de desenvolvimento institucional das organizações com o objetivo de fortalecê-las, em especial no que se refere àquelas atuantes em territórios favelados e periféricos – cujas barreiras de acesso ao apoio filantrópico foram mapeadas pelo Instituto PIPA em Periferias e filantropia, de 2022.


5️⃣ 👶🏻 A juventude dá o tom

Tanto os documentos consultados quanto publicações recentes, como a da consultoria LGT Philanthropy Advisory, são enfáticos: é na juventude que a cultura de doação encontrará protagonismo e inovação.

Tendências para a filantropia, lançado em 2023 por Instituto Beja e Oxygen, aprofunda o tema. Uma nova geração de ultrarricos vindos do setor tecnológico, de um lado, e jovens que herdarão a fortuna construída por baby boomers, de outro, representam doadores mais arrojados, avessos a burocracias e guiados por valores. Essa mudança de perfil abre margem a formas diferentes de mobilizar capital filantrópico, como venture philanthropy e financiamento misto (blended finance). Abordei mais sobre o estudo aqui.

Outra fonte de insumos é a Pesquisa Doação Brasil 2022, que dedica um capítulo à Geração Z. Em 2022, esses jovens doaram mais do que em 2020, mostraram-se mais despojados nas decisões sobre doação do que a população geral e a superaram em termos de otimismo com o futuro: 52% da juventude pretende doar mais em 2023 do que em 2022, em comparação com 45% da base geral de doadores institucionais.

Importante destacar também a visão crítica da Geração Z em relação às empresas. A mesma Pesquisa Doação Brasil 2022 mostrou que, enquanto 92% dos brasileiros em geral percebem as empresas como responsáveis pela solução dos problemas socioambientais, entre os jovens a porcentagem sobe para 96%, empatando com o governo.

Em termos de impacto da reputação das marcas nas escolhas de consumo, a Geração Z segue o padrão geral, mas pune mais as empresas que têm práticas inadequadas: 83% rejeitam esses produtos, em comparação com 77% da população geral.

Há, assim, terreno fértil para a atuação social do segundo setor, com as empresas sendo cada vez mais alvo de pressão e responsabilização principalmente pelas novas gerações.


6️⃣ 🚨 Alerta de emergência!

É unânime: as emergências, em especial climática, ocuparão espaço crescente na agenda filantrópica, exigindo que o campo se adeque para fazer frente aos desafios.

E se é preciso um olhar inovador que dê conta de problemas complexos, transversais e interdisciplinares, faz-se urgente uma governança formada por perspectivas diversas – algo que não se vê hoje no investimento social privado.

Ao investigar a composição de gênero e raça das instâncias tomadoras de decisão no ISP, o Censo GIFE 2022-2023 encontrou um quadro vergonhoso: no ritmo atual levará mais de quase 20 anos para a equidade entre homens e mulheres nos conselhos deliberativos, e mais de 60 anos para que todos os respondentes declarem a presença de pelo menos uma pessoa negra nesse foro. Vale ler a opinião de Gelson Henrique, da Iniciativa PIPA, na Camisa S #06 sobre diversidade racial nos boards do setor.

Outra providência que o contexto exige é encontrar equilíbrio entre um fazer filantrópico capaz de dar respostas rápidas às crises, de um lado, e a construção de mudanças sistêmicas por meio de uma filantropia estratégica e de longo prazo, de outro. O estudo Tendências para a filantropia se debruça no assunto.

Por fim, vale destacar um ponto comum entre as pesquisas: a importância do alinhamento do ISP a outras esferas – ao negócio, à agenda ESG, às políticas públicas, aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) – para ampliar seu impacto positivo.

Como ressaltou Chantal Pillet na Camisa S #03, se os investidores e gestores de capital não estiverem verdadeiramente engajados, uma agenda socioambiental que se prove efetiva e livre de washings por parte das empresas será apenas promessa.


Quer saber mais?

Joao Paulo Vergueiro , do GivingTuesday, também fez uma leitura sobre os principais números do terceiro setor, disponível aqui.

E abaixo você encontra os resumos feitos por Camisa S de seis pesquisas úteis para quem trabalha no setor! Basta clicar para abrir o arquivo em formato PDF.


Obrigado pela leitura! Clique aqui para se inscrever na newsletter e até a próxima edição, daqui a três semanas! :)

Excelente conteúdo!👏 Por aqui gerou muitos insights valiosos sobre a generosidade global, principalmente pela priorização da agenda social pelas empresas e a relação entre doação e bem-estar. É fundamental estar atento às mudanças no setor e às oportunidades que surgem.

Rodrigo Rocha

Nonprofit | Fundraising | Grantmaking | Cooperação Internacional | Parcerias | Leis de Incentivo | Mentor ABCR

11 m

No final do ano passado participei de um evento organizado pela ESPM, e nele foi apresentado em detalhes o resultado de um estudo promovido pela Ipsos Brasil sobre o Terceiro Setor. Destaques: 1) Numa comparação entre governo, ONGs e empresas privadas, as ONGs são as que têm maior capital de confiança: 56% das pessoas disseram confiar nas ONGs, enquanto 48% disseram confiar nas empresas privadas, e apenas 36% no governo. 2) A população como um todo tem forte percepção de que as empresas privadas são responsáveis por melhorar a sociedade e o meio ambiente, mas a geração Z se destaca: 59% deles atribuem às empresas privadas a maior responsabilidade. 3) Dois terços da população, entretanto, acreditam que a atuação das empresas em prol da sociedade e do meio ambiente tem sido insuficiente. A maioria acha que o meio corporativo tem feito muito pouco ou nada, o que dá a entender que a intensidade dessa atuação precisa ser revista. 4) Na mesma direção, 72% das pessoas dizem notar uma eventual incoerência entre o discurso e as ações concretas das empresas privadas — especialmente os chamados "socialwashing" e "greenwashing" — o que demonstra um bom grau de maturidade do público a esse respeito.

Joao Paulo Vergueiro

Diretor do Hub América Latina e Caribe do GivingTuesday, doutorando estudando filantropia, professor na FECAP, pai, voluntário e mais.

11 m

Opa, muito legal! E obrigado por compartilhar meu texto! 😍

Cássio Aoqui 🏳️🌈

Polinizador de iniciativas de mudança social e bem-viver | Filantropia | Fortalecimento institucional de OSCs e Coletivos | Pesquisador aprendiz sobre os movimentos da sociedade civil

11 m

Super de acordo, confiança é a base de muito dessa construção! Há um tempo venho montando uma biblioteca sobre o tema, vou organizar e em breve compartilho aqui =)

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