A Canção do Colibri
Marina trabalhava em uma empresa que tinha o colibri como símbolo. “Pequeno, ágil e resiliente”, dizia o slogan abaixo do logotipo em cada slide das reuniões. A organização se apresentava como pioneira em temas de saúde mental, com iniciativas que pareciam ter saído de manuais de empatia e cuidado. Falavam de equilíbrio, dias livres para descanso e até parcerias com terapeutas.
“Cuidamos de pessoas porque elas são a alma do nosso negócio”, dizia a CEO em vídeos com tom acolhedor, que enchiam os olhos e os corações de quem os assistia.
Por trás desse discurso, no entanto, o canto do colibri era constantemente abafado pelo ruído incessante das demandas. Metas se acumulavam como folhas num vendaval, e Marina, com cinco anos de casa, já não sabia o que era descansar de verdade. Suas semanas começavam na segunda e terminavam na madrugada de domingo, entre relatórios e e-mails.
O corpo tinha seus próprios limites.
Foi numa reunião que Marina apagou. No meio de uma apresentação importante, seu cérebro simplesmente desligou. As palavras sumiram da ponta da língua, as imagens no projetor pareciam distantes e borradas, e um tremor percorreu suas mãos até que ela sentiu o chão se aproximar.
No dia seguinte, veio o e-mail do RH com o título: “Estamos aqui para você ❤️”. No texto, sugeriram que ela “desacelerasse um pouco” e tirasse um dia de folga – apenas um. O trabalho, claro, estaria lá esperando por ela na volta.
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Marina procurou um médico, que confirmou o diagnóstico: burnout. Seu corpo estava exausto, e seu emocional havia sido esmagado sob o peso de cobranças constantes. Quando compartilhou o atestado com sua gestora, recebeu um sorriso ensaiado e a resposta padrão: “Que bom que você está cuidando disso. Mas é importante lembrar que o time precisa muito de você agora.”
Semanas depois, Marina foi afastada de um projeto importante sob a justificativa de que precisavam de alguém “100% focado”. Os colegas, antes tão próximos, passaram a tratá-la com certa distância, como se sua exaustão fosse contagiosa.
Pouco tempo depois, veio o corte. A justificativa foi administrativa: uma reorganização interna. Sem cerimônias, a empresa que tantas vezes falava de empatia e bem-estar desligou Marina.
No LinkedIn da empresa nada parecia fora do lugar. As postagens continuavam exaltando iniciativas de autocuidado e apoio emocional. Frases como “as pessoas são nossa prioridade” ainda preenchiam o feed, enquanto outras “Marinas” enfrentavam o mesmo ciclo de exaustão e silêncio.
Hoje, Marina reflete sobre o que viveu. Ela não sente ódio, mas carrega uma tristeza amarga ao perceber como palavras podem ser usadas para mascarar a realidade. O colibri, com sua promessa de leveza e resiliência, era apenas um símbolo vazio, sem raízes no dia a dia da empresa.
Marina agora está em outro lugar, reconstruindo sua vida com cuidado genuíno – não o que é prometido em discursos, mas aquele que nasce da prática diária de se respeitar. Quando vê empresas falando de autocuidado, ela apenas observa. Não são os slogans ou campanhas que importam, mas o que está por trás deles: ações consistentes e verdadeiras.
Fundadora e CEO da Ethos Participações Ltda
1 mMuito bom, Giselli! Ao ler textos tão bem elaborados e fundamentados em uma realidade cada vez mais presente no contexto de profissionais das mais diversas áreas de atuação, reflito sobre minha própria prática de vida. Percebo que, se eu deixar de elaborar planos de atividades que atendam às demandas do cuidado com o físico, emocional e intelectual, corro o risco de me deparar com situações em que, ao priorizar o outro e esquecer de mim, acabo enfrentando resultados que me motivam a prestar mais atenção aos meus limites. Te agradeço por nos fazer pensar! Abraços.
Outsourcing Specialist / Piping, Mechanical, Mining, Sanitation, Paper Cellulose and Civil Engineering.
1 mÓtimo conselho
Terapeuta holístico | Divina Energia
1 mMuito bom!! Existem muitas Marinas, Josés, Pedros e tantos outros na mesma situação. Parabéns pelo texto! 😍