Carta Aberta ao Ministro da CGU
Cerimônia contou com a presença de familiares, amigos, autoridades dos três poderes, servidores e colaboradores da CGU, além de representantes da sociedade civil organizada - Foto: Adalberto Carvalho - ASCOM/CGU

Carta Aberta ao Ministro da CGU

Catanduva, 15 de janeiro de 2023

 Carta Aberta ao Ministro de Estado da Controladoria-Geral da União (CGU) ,

Vinicius Marques de Carvalho ,

 1.        Antes de tudo, quero cumprimentá-lo por seu discurso de posse; tanto pelas justas homenagens que prestou ao Min. Waldir Pires e ao Diogo de Sant’ana quanto pela assertividade com que comunicou os novos quatro eixos de atuação da CGU: 1) colaborar para um Governo voltado às pessoas, 2) construir um Governo aberto para a sociedade, 3) promover um controle para o aperfeiçoamento da gestão pública e 4) priorizar o combate à corrupção. Também gostaria de cumprimentá-lo, na verdade, de “fazer a louvação" de sua equipe, porque, reconhecidamente, compõem-se de pessoas com enorme competência para superar os grandes desafios identificados (Vânia Vieira bem representa a qualidade de seu secretariado e de todas as pessoas que já participam de sua gestão). Mas, sobretudo, devo cumprimentá-lo pela saudação de sua filha: sem dúvida alguma o ponto alto do evento, que pude assistir pelo youtube dias atrás, quando amigos em comum já tinham me antecipado alguns dos momentos mais marcantes.

E me refiro aos amigos em comum, alguns presentes à cerimônia, justamente para esclarecer que até teria condições de lhe encaminhar, reservadamente, o que aqui vai escrito (confesso que esse expediente de “Carta Aberta” soa demasiadamente pretensioso para mim). Contudo, seria um contrassenso se o fizesse. Porque compreendi sua fala não “só” como um chamamento à participação cidadã para a reconstrução das instituições democráticas, da CGU em especial; mas como um convite ao diálogo aberto e ao fortalecimento da esfera pública, que é espaço legítimo onde Estado e Sociedade pactuam, com base nos melhores argumentos e nos direitos humanos. Também por isso, entendi que deveria lhe encaminhar esta carta, por meio do Fala.BR - Plataforma Integrada de Ouvidoria e Acesso à Informação, como uma Sugestão (00106.000725/2023-14), que é o tipo de manifestação (acolhida e tratada pelas Ouvidorias) que melhor registra a disposição em contribuir e colaborar do cidadão.

Pois bem, venho oferecer algumas poucas sugestões que, a meu ver, se situam sobre os eixos que enunciou, com a expectativa de contribuir com a elaboração do novo Plano de Ação da CGU, conciliando interesses públicos e privados. Ou, quem sabe, com a elaboração de uma nova Agenda para Integridade, da qual participem ativamente as empresas deste país.

Para tanto, vou tentar, primeiro, esclarecer a “ideia de Integridade” (para além do compliance), que sustenta tudo aqui; e, depois, apresento sugestões gerais e específicas, pensando no curto (ganhos rápidos) e médio prazos.

Falta só esclarecer, como manda o figurino, que tudo o que digo é de minha exclusiva responsabilidade e não pode ser atribuído à empresa em que atualmente trabalho e mesmo ao órgão público do qual sou servidor licenciado. Ainda que, inevitavelmente, minhas sugestões decorram de minhas experiências profissionais.

 2.        Hoje em dia, quase dez anos após a promulgação da Lei nº 12.846/13, ainda há quem fale em “programa de compliance” ao invés de “integridade”, mesmo que tenha sido esta a expressão contemplada em nossa lei anticorrupção e em seus decretos regulamentadores. De boa fé, muitos acreditam que “integridade” se trate apenas da melhor tradução para “compliance”; melhor do que, simplesmente, dizer “conformidade”.

No entanto, tenho sustentado que ideia de Integridade (com “I” maiúsculo) vai além, porque expressa uma coalizão normativa, uma concertação prática, uma amarração histórica dos cinco princípios constitucionais descritos no texto do art. 37 como “legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Assim, entendo que, ao nos referirmos à Integridade, estamos afirmando que as relações entre Estado e Sociedade pressupõem a realização conjunta, articulada e indissociável desses cinco princípios. Por consequência, defendo que essa afirmação da Integridade, como ideia-força decorrente de nossa própria experiência, “atualizou” os sentidos atribuídos, há décadas, a cada um desses princípios. Logo, compreendo que é melhor tratá-los pelas seguintes denominações: 

i. Conformidade é igual a legalidade e mais todas as regras estabelecidas por uma organização pública ou privada que estejam em linha com o Ordenamento Jurídico, sendo “não conforme” qualquer conduta ilegal e também contrária a uma regra corporativa ou institucional;

ii. Equidade é igual a impessoalidade conjugada com o princípio da igualdade material, o qual nos obriga a colocar as pessoas no centro de nossa atuação e reconhecer que as desigualdades materiais devem ser mitigadas, por exemplo, com ações afirmativas; 

iii. Ética é igual à moralidade aplicada a um determinado contexto ou atividade; e por isso, teremos códigos de ética na Administração Federal, nas empresas e nos demais poderes;

iv. Transparência é igual à publicidade aplicada a todo processo de deliberação; isto é, a publicidade não apenas dos resultados e das decisões tomadas, mas aquela que se manifesta na divulgação da pauta, na discussão sobre os critérios, nas formas de discussão, na avaliação dos argumentos, enfim, transparência é a publicidade aplicada antes, durante e depois da decisão;

v. Efetividade não é igual à eficiência; efetividade pressupõe a realização eficiente e eficaz de uma ação, de uma política pública. A efetividade nos obriga a questionar os impactos das ações, por isso, tem tudo a ver com o movimento por ações efetivas de ESG (meio ambiente, sociedade e governança).

E estou seguro que, assim, relidos, esses princípios são facilmente reconhecidos pelas pessoas, pelas organizações da sociedade civil e pelas empresas como aplicáveis, pertinentes, incidentes sobre quaisquer relações privadas que se desenvolvam no âmbito da esfera pública. Não à toa, dirigindo-se especialmente às empresas privadas, o IBGC preconiza que governança se estrutura sobre quatro princípios (transparência, prestação de contas, equidade e responsabilidade corporativa) e mais a ética, que é a base de tudo. Ou seja, preconiza a adoção dos mesmos cinco princípios. Porque, a distinção entre público e privado não pode ser utilizada para segregar, alijar e incriminar pessoas e organizações. Em sua trajetória é notório seu trabalho de composição entre público e privado, sempre calcado na convergência democrática de interesses, na mútua confiança e na integridade das instituições.

Quando ouvi você (re)afirmar que a “participação cidadã é método de gestão” não só pensei nas pessoas que costumam recorrer às ouvidorias, integrar os conselhos e participar das conferências, que são as novas institucionalidades de participação “surgidas” com a Constituição. Pensei também nas empresas, pequenas, médias e grandes, em seus empregados, patrões e acionistas. Pois, é justamente essa participação ampla e irrestrita – ancorada e decorrente da aplicação prática desses princípios – que vai conferir legitimidade às decisões mais triviais.

É isso. Seja dentro da minha casa ou seja no âmbito da empresa ou do órgão público em que trabalho, vamos constatando que a legitimidade das deliberações democráticas não depende do resultado do processo de participação – do improvável consenso ou da concordância dos participantes – mas, fundamentalmente, depende da integridade do próprio processo. É isto: Integridade e Legitimidade são faces dessa mesma “inestimável moeda” que chamamos Democracia.

Bem que eu gostaria de poder afirmar que essa correlação entre Integridade, Participação, Legitimidade e Democracia ocorre com elevada frequência na iniciativa privada. Mas os exemplos são raros mesmo entre as empresas – e incluo as estatais – que afirmam possuir “Programas de Integridade” efetivos e que prestam contas dos impactos que produzem no meio ambiente, na sociedade e nas instituições. Em se tratando de “ESG”, também são poucas as empresas que compreendem o “G”, isto é, a Governança Corporativa como uma dimensão organizacional da Democracia, sequer como um sistema de gestão da Integridade.

Certamente, as dinâmicas típicas de mercado respondem em grande parte por essa desconexão entre cultura organizacional e ambiente democrático. Todavia, é preciso admitir que tanto a Lei Anticorrupção quanto a Lei das Estatais (Lei nº 13.303/16) acentuaram demasiadamente o poder e o papel de diferentes agências e órgãos de controle na fiscalização das normas, o que fez aumentar o medo e a suspeita generalizados e refrear as contribuições do setor privado. A onda do “comando e controle”, na qual surfou a Operação Lava-Jato, impôs (enquadrou) às instituições e às organizações, por um lado, custos elevados na manutenção de sistemas de controles e, por outro lado, uma notável infantilização de gestores públicos e privados que, desde então, não se sentem nem seguros e nem tampouco confortáveis para tomar riscos, evidentemente, com integridade.

3.        Dito isso, tomo a liberdade de sugerir que a CGU:

3.1. promova, ainda no primeiro semestre de 2023, um seminário com ampla participação de pesquisadores e pensadores sobre temas pertinentes às suas competências para produzir a) esclarecimentos/discussões conceituais (“integridade”, “regulação responsiva”, “compliance comportamental”, “anti-fragilidade” entre tantos outros) e b) sugestões específicas de aprimoramento incremental (como você indicou) e também inovações. É oportuno lembrar (e reconhecer) que, em março de 2022, Ciro Gomes organizou um excelente seminário sobre “Combate à Corrupção” para subsidiar sua candidatura e qualificar o debate nacional; certamente é possível mobilizar muita gente disposta a contribuir;

3.2. transforme a transparência ativa em proativa na oferta de informações públicas – com base em consultas à sociedade – e fomente inovações e novos negócios, a bem da concorrência, do desenvolvimento e, ao fim, do cidadão. Recordo-me que no início de 2012, antes da vigência da LAI, o Ministério das Comunicações reuniu jornalistas e veículos de imprensa para ouvir e compreender quais eram as demandas por informações públicas que interessariam a eles e à toda sociedade, não apenas para se antecipar aos pedidos de acesso, mas para pactuar prioridades face aos recursos limitados do Estado. Por que não fazer o mesmo com organizações, institutos e fóruns empresariais que representam o setor produtivo? As Agência Reguladoras possuem inúmeras informações que poderiam ser divulgadas de forma organizada e com participação dos setores regulados em benefício dos cidadãos. A ANP - Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, por exemplo, possui informações públicas sobre adulteração de combustíveis (que é um crime contra economia popular) em postos que não são divulgadas de forma a permitir que os cidadãos possam identificar facilmente onde estão;

3.3. atue para que as Agências Reguladoras (incluo o CADE aqui também) sejam reorganizadas com base na denominada “regulação responsiva”, como a ANPD (que é uma quase-agência) já se autodeclarou em sua constituição. As Ouvidorias, fortalecidas com o advento da Lei nº 13.848/19, podem desempenhar papel decisivo no fortalecimento democrático das agências, acentuando a integridade e a legitimidade de seus processos;

3.4. impulsione a tramitação do PL 10.844/2018 (subst. da Dep. Érika Kokay-PT/DF na CTASP), que altera a Lei nº 13.460/2017 para permitir recebimento de denúncias anônimas, a obrigatoriedade de criação de unidades de ouvidoria, a exigência de formação mínima para o exercício do cargo de ouvidor, a necessidade de articulação das unidades de ouvidoria em sistema, a criação de mandato para o titular da unidade, dentre outros;

3.5. retome o “funcionamento” do Conselho Nacional de Transparência como órgão colegiado e consultivo na definição de estratégias nacionais de Integridade, ampliando a participação de setores representativos da sociedade brasileira, a exemplo do que foi o Conselho que, em 2006, gestou o anteprojeto da LAI.

4.        E como o combate a corrupção é prioridade em sua gestão, não poderia deixar de registrar que as maiores empresas do Brasil – mais uma vez, incluo as estatais, mesmo não tendo procuração de ninguém – apenderam, nesses últimos anos, que não se promove a integridade tampouco se combate a corrupção incriminando o erro e aprisionando o risco.

A duras penas, aprendemos que é mais confiável alguém que tenha cometido, sem dolo, diversos erros – “mas nunca o mesmo erro mais de uma vez” – do que alguém que nunca cometeu erro algum, porque, provavelmente, jamais se arriscou a fazer.

5.        Por fim, desejo a você, Ministro, apenas sorte à frente da Controladoria-Geral da União (CGU) ; porque sua admirável trajetória revela que lhe sobram talentos e experiências para tudo mais. Para fazer história.

Muito respeitosa e cordialmente,

José Eduardo Romão

Humberto Bezerra

Advogado; Coordenador do Observatório dos Direitos Humanos - OISOL da Secretaria dos Direitos Humanos do Estado do Ceará; Mediador e Conciliador Judicial certificado pelo TJCE / CNJ

1 a

Cumprimentando(a) cordialmente, venho através desta, apresentar o Observatório de Indicadores de Direitos Humanos - OISOL da Secretaria dos Direitos Humanos do Estado do Ceará - Brasil https://taggo.one/oisol

Janice Almeida Menezes dos Santos

Auditora Federal de Finanças e Controle-Assessora Técnica da Ouvidoria Ministério de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar

1 a

Palavras bem colocadas por alguém que ajudou a estruturar nossa tão importante OGU. Abraço Romão

Parabéns, pelo texto Romão!

Excelente Texto!!!

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