Carta aos órfãos do Brasil
Reprodução/Prefeitura de Goiânia

Carta aos órfãos do Brasil

Aos órfãos do Brasil,

Sei que as palavras “caros” e "queridos" pouco ou de nada servem neste momento de dor profunda e luto que partilhamos. Há dias e mais dias, nos vemos ser reduzidos a pó em um emaranhado de impactos - porradas, mesmo - que vêm de todos os lados. Eu queria poder abraçar o mundo e fazer das suas lágrimas as minhas, porque já são. Queria ser a chuva que escorre no rosto e abraça toda a dor, com trovões imensos para ofuscar os gritos de desespero. Mas o que sinto é impotência.

Viver o "dia após dia" está difícil, sobretudo na solidão habitual da metrópole. O Brasil pariu neste um ano e quase três meses um sem-número de órfãos, que agora se alimentam das lágrimas engolidas. Há o que fazer? Eu não acho que exista, pois a dor está aí, como ondas que vão e vem, primeira, segunda e quem sabe até a terceira. Ainda assim, sabemos, pois repetem sempre: a economia não pode parar. É o trator que esmaga o humano todos os dias. É a fome, é a miséria, é o descaso. 

Os argumentos falaciosos já não entram mais pela glote. São regurgitados de uma forma tão insensível e inumana, imunda, que parecem até irreais. A realidade, porém, está batendo às nossas portas dia após dia. E está difícil viver neste Brasil de órfãos. Está difícil consolar amigos e família, pensar que o próximo poderá ser eu, os nossos. Pois a vida humana, assim como a economia, também se conta, subtrai, retrai, entra em recessão. Mas nunca imaginei que haveria tal crise de sentimento.

Hoje nós vivemos a ascensão da falta do sentir. Abstratos, esses substantivos perderam tanto valor nos últimos mais de quatrocentos dias, com quase quatrocentos e quarenta mil mortos apenas em nosso Brasil. Nós somos terra de ninguém, terra sem pai e sem mãe. Por isso, eu sinto que preciso vir aqui e ser algo para alguém, para quem lê este singelo texto, de um autor já muito cansado - genuinamente esgotado - de reclamar dia após dia com tudo o que se vê. Nós vemos todos os dias e sentimos muito. 

A batalha é contra o quê? Contra quem? Quem deverá rir por último? Haverá motivos para encher o peito e dizer: eu estava certo? Nada adianta mais neste Brasil de órfãos. O que resta, mesmo, é tocar em frente, com uma lembrança clara, mas bem clara mesmo, de todo esse pesadelo e os monstros responsáveis. É preciso amor pra poder pulsar. É preciso paz pra poder sorrir. É preciso a chuva para florir.

Que possamos florescer como poesia que nasce do sentir e renasce a vida. Que possamos pulsar como quem ainda vê razão em meio a tanto descaso. Que possamos ter paz após tanta turbulência. Que possamos permanecer vivos para lutar, mesmo que órfãos de líderes, por um país mais humano. As armas não garantem liberdade, os remédios não garantem a cura, o descaso não sara a ferida.

A voz se cala e não há o que dizer / Os dentes mastigam palavras. / Anoitece e amanhece, e a dor segue./

Tudo escurece, agora o que resta nem se sabe / Se é eternidade ou o eterno não-estar./ A saliva desce seca pela garganta travada./

As letras derretem em formatos impossíveis de se traduzir / Para qualquer forma que se pareça amor. / Luto é dor que se luta constantemente contra./

Vida não é só uma fruta apodrecida que cai do pé./ Não, pelo menos, como enxergamos os nossos./ Mas, ainda assim, caímos um a um - e agora cada vez mais rápido./ 

Um baile de cegos à beira do precipício./ O suicídio coletivo guiado por tresloucados./ Seguimos daqui e nem sabemos onde parar./

Não sabemos o que falar e às vezes nem mesmo/ O que sentir./ Talvez seja melhor deixar rolar,/

Como o céu que se limpa após a tempestade./ Só que os tempos últimos trouxeram sobretudo trovoadas,/ Que acabo-me em choque de tanto viver./

Um abraço fraterno a todos que carregam as cicatrizes deste Brasil de órfãos. Meus sentimentos a cada um que padece de tanto sofrimento. Que possamos nos unir para trazer vida e humanidade.

*Théo Mariano é jornalista e escritor. Atua como repórter e colunista no jornal A Redação e escreve poesias para traduzir a vida em palavras.

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