Cegueira ética na prática: a tragédia da barragem de Brumadinho da Vale (Parte 2 de 5)
Disclaimer / aviso legal: Este caso foi escrito com base nos relatórios finais das três Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) instauradas para investigar o colapso da Barragem I da Vale S.A. em Brumadinho pelo Senado Federal, Câmara dos Deputados e Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Esses textos totalizaram 3.171 páginas. Eles incluem dezenas de depoimentos, laudos especializados e provas compartilhadas pela Procuradoria-Geral da República, Ministério Público de Minas Gerais e Polícia Federal.[2] Além dos relatórios das CPIs, informações publicadas pelos principais veículos de imprensa também foram utilizadas pontualmente.
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1. A Tragédia
2. Por que aconteceu? Causas diretas
a. A origem: deficiências de projeto, execução e documentação
b. Deterioração do fator de segurança
c. Relações espúrias com a empresa de auditoria
d. Desconsideração de diversos eventos e alertas
f. Omissão dos responsáveis da Vale
3. Por que aconteceu? Causas fundamentais
a. Visão da empresa como máquina de fazer dinheiro
b. Mentalidade burocrática
c. Ausência de liderança virtuosa
d. Ausência de cultura ética
e. Sistema de incentivos perverso
c. Relações espúrias com a empresa de auditoria
O relacionamento no mínimo problemático entre a Vale e a alemã Tüv Süd, empresa de auditoria responsável pela elaboração das duas últimas declarações de estabilidade da B1 em 2018, foi outra causa que contribuiu para a tragédia de Brumadinho.
O conflito de interesses e as pressões comerciais foram reconhecidos pelo próprio engenheiro da Tüv Süd responsável por assinar os atestados de estabilidade, Makoto Namba. Em e-mail enviado em 13/05/2018 para outro auditor, Namba escreveu: “O Marlísio está terminando os estudos de liquefação da Barragem I de Córrego do Feijão, mas tudo indica que não passará. O risco de rompimento é grande, o fator de segurança para a seção de maior altura será inferior ao mínimo exigido de 1,3. Dessa maneira, a rigor, não podemos assinar a Declaração de Condição de Estabilidade da Barragem, que tem como consequência a necessária paralisação imediata de todas as atividades da Mina de Córrego do Feijão” (grifos nossos).[1]
O conflito de interesses e as pressões comerciais foram reconhecidos pelo próprio engenheiro da Tüv Süd responsável por assinar os atestados de estabilidade, Makoto Namba. Em e-mail de 13/05/2018, ele escreveu: “...tudo indica que não passará. O risco de rompimento é grande (...). Dessa maneira, a rigor, não podemos assinar a Declaração de Condição de Estabilidade da Barragem”.
Menos de um mês após esta mensagem, em 12/06/2018, Namba assinou o relatório de segurança da Barragem I de Brumadinho. O que ocorreu nesse período? De acordo com o próprio auditor, muita pressão e negociações com a Vale, que obviamente não deveria interferir na avaliação da Tüv Süd.[2]
No mesmo e-mail enviado em 13/05/2018, Namba complementou: “Amanhã à tarde, teremos a reunião com a Vale, onde estarão presentes a Marilene e o Sr. César Grandchamp. Ambos irão nos questionar se vamos assinar ou não o laudo concedendo a estabilidade. A primeira resposta que será dada por nós é que os resultados mostrados não são definitivos... O próprio estudo do Marlísio ainda não é definitivo, mas, como sempre, a Vale irá nos jogar contra a parede e perguntar: 'e se não passar, irão assinar ou não o laudo de estabilidade?’” (grifos nossos).[3]
No mesmo e-mail, Namba complementou: “Amanhã à tarde, teremos a reunião com a Vale. (...) irão nos questionar se vamos assinar ou não o laudo concedendo a estabilidade. (...) como sempre, a Vale irá nos jogar contra a parede e perguntar: ’e se não passar, irão assinar ou não o laudo de estabilidade?’”.
Segundo documentos coletados pela CPI da Câmara Federal, houve intensa troca de mensagens e a realização de reuniões para tratar da emissão da declaração no período de 13 a 17/05/2018. Essas trocas de mensagens entre Tüv Süd e Vale teriam sido suscitadas pela vinda ao Brasil de Chris Meier, diretor alemão que representava a matriz da empresa e que participou de uma reunião com o corpo técnico da Tüv Süd em 17 de maio decisiva para a concessão do atestado de estabilidade.[4]
Em uma das trocas de mensagens entre funcionários da auditoria nesse período, o funcionário da Tüv Süd, Arsênio Negro Júnior, usou a expressão “black mail” ao mencionar a hipótese de a Vale pressionar a empresa a assinar o laudo de estabilidade da B1 usando os contratos como elemento de chantagem. Na mesma troca de mensagens, outro funcionário da Tüv Süd, Vinícius da Mota Wedekin, replicou: “Como fica a credibilidade dos resultados? Sempre que não passar a VALE vai envolver uma outra empresa até ter um resultado benéfico pra ela?” (grifo nosso).[5]
Em uma das trocas de mensagens entre funcionários da auditoria, um funcionário da Tüv Süd usou a expressão “black mail” ao mencionar a hipótese de a Vale pressionar a empresa a assinar o laudo de estabilidade da B1 usando os contratos como elemento de chantagem. "Como fica a credibilidade dos resultados? Sempre que não passar a VALE vai envolver uma outra empresa até ter um resultado benéfico pra ela?".
Namba confirmou sentir pressão em outras situações. De acordo com o relatório da CPI do Senado Federal, o auditor ouviu do funcionário da Vale, Alexandre Campanha, a seguinte frase durante uma reunião em que se discutiam os laudos de estabilidade: “a Tüv Süd vai assinar ou não a declaração de estabilidade?”.[6] Namba afirmou sentir a frase como uma maneira de pressioná-lo a assinar o laudo de estabilidade da Barragem I, sob risco de perderem o contrato.[7]
Na verdade, a Tüv Süd tinha mais de um contrato com a Vale. Além de auditar as barragens da companhia, a empresa alemã estava também trabalhando em outros serviços de consultoria com cifras superiores, no geral, a R$ 10 milhões.[8] O evidente conflito de interesses foi reconhecido até mesmo por um diretor da Vale, Gerd Poppinga em depoimento à CPI do Senado Federal: “Excelência, foi constatado que a Tüv Süd, que estava auditando as nossas barragens, simultaneamente estava também trabalhando em outros serviços na empresa, o que pode ser conflito de interesses. Então, nesse sentido, eu acho que deveria haver regras que evitassem essas situações”.[9]
A Tüv Süd tinha mais de um contrato com a Vale. Além de auditar barragens, a empresa alemã estava também trabalhando em outros serviços de consultoria com cifras superiores, no geral, a R$ 10 milhões. O evidente conflito de interesses foi reconhecido até mesmo por um diretor da Vale em depoimento à CPI do Senado Federal.
Curiosamente, ao realizar serviços de auditoria e consultoria para um cliente simultaneamente, a Tüv Süd descumpria as normas básicas de compliance que ela mesmo afirmava cumprir em seu website. Em depoimento à CPI da Câmara Federal, sua diretora de gestão e qualidade Alice Maia – então responsável pela área de compliance da Tüv Süd – afirmou desconhecer o fato de que sua empresa prestava serviços de consultoria e auditoria simultaneamente para a Vale. Segundo o relatório da CPI, “a inverossimilhança da alegação, por parte da diretora responsável, de desconhecimento da relação espúria mantida com a Vale evidencia que a Tüv Süd ocultou o fato de que vinha atuando em desacordo com as regras básicas de compliance, certamente consubstanciadas em seu código de ética e de conduta”.[10]
Ao realizar serviços de auditoria e consultoria para um cliente simultaneamente, a Tüv Süd descumpria as normas básicas de compliance que ela mesmo afirmava cumprir em seu website. Em depoimento, sua diretora de gestão e qualidade simplesmente afirmou desconhecer o fato de que sua empresa prestava serviços de consultoria e auditoria simultaneamente para a Vale.
Para completar, descobriu-se que os profissionais da Tüv Süd, cientes da instabilidade da barragem, elaboraram documentos que certificaram sua estabilidade perante os órgãos estadual e federal de fiscalização e controle com informações que falseavam sua real situação. Nas palavras do relatório final da Câmara Federal, “Ao prestarem informações falsas às autoridades e se omitirem diante desses fatos, os profissionais envolvidos, cientes da situação de instabilidade da Barragem I, assumiram o risco do rompimento da estrutura”.[11]
As relações antiéticas entre a Vale e a Tüv Süd e suas consequências foram bem resumidas pelo relatório da CPI do Senado Federal, “os fatos e evidências confirmam que as Declarações de Condição de Estabilidade (DCE) mostram diversos vícios: interferências indevidas na elaboração dos laudos, por parte da empresa auditada; permissividade excessiva, ao assinar laudos de estabilidade condicionados a correções que nunca foram feitas, por parte da empresa auditora; conflitos de interesses através de múltiplos contratos, no caso da empresa Tüv Süd. Um processo de auditoria viciado, pelos dois lados, onde o objetivo maior parecia ser a obtenção da exigência formal, que era o laudo de estabilidade, ao invés de privilegiar uma análise rigorosa da segurança das barragens”.[12]
"As evidências confirmam que as Declarações de Condição de Estabilidade (DCE) mostram diversos vícios: interferências indevidas na elaboração dos laudos, por parte da empresa auditada; e, conflitos de interesses através de múltiplos contratos da empresa Tüv Süd. Um processo de auditoria viciado, pelos dois lados, onde o objetivo maior parecia ser a obtenção da exigência formal ao invés de privilegiar uma análise rigorosa da segurança das barragens."
d. Desconsideração de diversos eventos e alertas
Não bastassem as evidências de deterioração do fator de segurança da Barragem I e as relações espúrias com a auditoria para emissão de sua declaração de estabilidade, nos oito meses anteriores à tragédia, a B1 deu diversos sinais de que havia graves riscos por meio de uma série de alertas não endereçados corretamente.
Ao menos seis eventos merecem destaque: o fraturamento hidráulico na instalação do dreno número 15; as leituras anômalas do radar interferométrico; o bloco de canga no pé da barragem; as medições anômalas dos piezômetros; a continuação de detonações próximas à barragem e a existência de uma nascente que jorrava água para seu interior.
Não bastassem as evidências de deterioração do fator de segurança da Barragem I e as relações espúrias com a auditoria, nos oito meses anteriores à tragédia, a B1 deu diversos sinais de que havia graves riscos por meio de uma série de alertas não endereçados corretamente. Entre eles, merece destaque o fraturamento hidráulico de 11/06/2018.
i. Fraturamento hidráulico em 11 de junho de 2018
O evento mais grave da barragem de Brumadinho ocorreu em 11/06/2018. Durante a instalação de um dreno com o objetivo de aumentar a estabilidade da estrutura, ocorreu um fenômeno denominado fraturamento hidráulico: uma forte saída de lama e água pressurizada que poderia indicar um perigoso processo de instabilidade interna na estrutura.[13] Para entender a importância deste episódio, é preciso voltar um pouco no tempo.
Em dezembro de 2017, as empresas Potamos e Tüv Süd, à época ainda atuando em consórcio, concluíram pela necessidade de adoção de medidas para a melhoria das condições de segurança da B1. A Potamos sugeriu a construção de uma berma de reforço no pé da barragem. Essa medida produziria efeitos imediatos no nível de segurança da estrutura, mas seria mais cara e poderia prejudicar a produção da Mina Córrego de Feijão.[14]
Já a Tüv Süd sugeriu a instalação de drenos horizontais profundos (DHPs) na barragem com o objetivo de reduzir a quantidade de água no interior da estrutura.[15] Essa medida era mais barata, mas deveria trazer efeitos em médio prazo. De acordo com o técnico responsável pela sugestão, o custo dos drenos era de duas a três vezes menor do que a berma de reforço.[16]
A Vale optou pela recomendação mais barata indicada pela Tüv Süd.[17] A companhia projetou instalar 30 DHPs. Além de mais barata, a perfuração para instalação de drenos envolvia riscos que não podiam ser desconsiderados, uma vez que ela se baseia no uso de jatos de água com alta pressão. Esses jatos poderiam provocar o fraturamento hidráulico do maciço, comprometendo ainda mais a sua estabilidade.
Em dezembro de 2017, as empresas de auditoria concluíram pela necessidade de adoção de medidas para a melhoria das condições de segurança da B1. A Potamos sugeriu uma medida que produziria efeitos imediatos, mas que seria mais cara. Já a Tüv Süd sugeriu uma opção mais barata, que traria efeitos em médio prazo. A Vale optou pela recomendação mais barata. A opção escolhida também envolvia mais riscos para a estrutura.
Durante a instalação do 15º dreno, no dia 11/06/2018, foi exatamente isso o que ocorreu: um forte surgimento de lama e água no local onde o dreno estava sendo instalado, com intenso extravasamento de água e carreamento de material sólido (denominado “piping”).[18] A instalação dos drenos foi paralisada, dando-se início a trabalhos de contenção do vazamento.
Em depoimento à CPI da Câmara Federal, um eletricista da Vale chamado Moisés Clemente informou que a companhia alocou equipes em jornadas de trabalho de 24 horas ininterruptas durante três dias para realizar as obras de contenção.[19] Tanto ele quanto outros funcionários relataram extravasamento de água pressurizada a mais de 10 metros de distância do maciço, lama em abundância surgindo no talude de jusante e necessidade de abertura de um furo de 3 metros de diâmetro por 3 metros de profundidade na barragem para a confecção de um dreno invertido.[20]
Além dos funcionários próprios, a Vale contratou a empresa Reframax para ajudar nos reparos por um período de sete dias. O “mutirão” para resolver o problema com o DHP-15 chegou a contar com mais de cinquenta pessoas, evidenciando a gravidade do ocorrido. Durante esse período, os piezômetros indicaram um rápido aumento da pressão de água na barragem.[21]
Outro funcionário da Vale, Fernando Henrique Barbosa, forneceu um depoimento dramático sobre o episódio à CPI da Câmara Federal: “Por volta de 22 horas estava a Cristina Malheiros, responsável geotécnica da barragem, o gerente Alano, e o Lúcio Medanha, responsável técnico da mina. Mandou o Rodrigo da Silva Moreira buscar meu pai lá em casa, às 10 horas da noite. Meu pai trabalhou lá a vida inteira. Foi lá em casa com o carro, buscou meu pai. Meu pai chegou, avaliou. O que acontece? No quarto banco, entre o dreno central e a ombreira direita começou a brotar lama no talude”.[22]
O pai de Fernando, Olavo Henrique Coelho, também funcionário da Vale, era conhecido como “seu Lau”. Verdadeira memória viva da barragem, seu Lau havia trabalhado na B1 durante toda sua vida, desde sua construção em 1976 pela antiga proprietária Ferteco. Barbosa deu sequência ao depoimento, afirmando que a engenheira da Vale realizou procedimentos não autorizados: “A Cristina, a função dela era analisar os dados, fiscalizar e comunicar. Ela não tinha autonomia nenhuma para mandar mexer na barragem. Buscou o pessoal da usina. Contrataram uma empreiteira do dia para a noite, sendo que tudo depende de licitação. Eu não sei se foi pelo cartão corporativo, como é que fez, nem supervisor tinha acesso. E isso tem muita testemunha, só Deus sabe o que eles fizeram. Eu trago aqui 15 testemunhas que estavam lá. Quinze testemunhas contra ela, se quiser fazer a acareação. Ela mandou abrir vala, colocar areia, brita e manta geotêxtil, para filtrar. Aí, nisso ficou lá até de madrugada. No outro dia o meu pai não foi trabalhar. Ficaram lá carregando areia e brita igual doidos... Eles ficaram uns 5 dias ou 1 semana mexendo lá. Depois, sumiu tudo, ficou com gramadinho, tudo bonitinho... E a Cristina vem e fala que não interferiu? A Cristina mandou pôr areia e brita lá. A barragem estava na iminência de estourar 6 ou 7 meses atrás. E eles com medo de parar e perder emprego, olha no que deu! Foi igual ao que meu pai falou: ‘Você tem a represa lá, tem 15, 20 metros de terra compactada, se brotou lama do lado de fora, isso quer dizer que, por dentro, já está tudo corroído’” (grifos nossos).[23]
"Ficaram lá carregando areia e brita igual doidos... Eles ficaram uns 5 dias ou 1 semana mexendo lá. Depois, sumiu tudo, ficou com gramadinho, tudo bonitinho... A barragem estava na iminência de estourar 6 ou 7 meses atrás. E eles com medo de parar e perder emprego, olha no que deu! Foi igual ao que meu pai falou: ‘Você tem a represa lá, tem 15, 20 metros de terra compactada, se brotou lama do lado de fora, isso quer dizer que, por dentro, já está tudo corroído’”.
Fernando Barbosa concluiu seu testemunho descrevendo um alerta premonitório de seu pai, para muitos um dos maiores conhecedores da barragem: “Aí eu ia pegar um ônibus. E quando eu estava saindo de casa, meu pai falou comigo: ‘Ô, Fernando, ô, filho, você fica na parte mais alta que aquela barragem está igual a uma bomba. Aquilo está condenado. Ela vai estourar a qualquer hora. Aí falei assim: ‘Ô, pai, você não falou nada com a Cristina, com o Alano nem com o Lúcio, não?’. Ele falou: ‘Falei, filho, só que o Alano falou que a Cristina tinha que comunicar, ia ter que parar as obras tudo’. Meu pai falou: ‘Tem que tirar o pessoal do Córrego do Feijão, tirar o pessoal de baixo, que isso aqui vai estourar agora, daqui a 1 mês, daqui a 2 meses. Não fica beirando aquilo lá, não, que vai estourar’. Eu mesmo não dei muita atenção, não acreditei. Falei: ‘Beleza, pai’. E fui trabalhar normalmente. Aí acabou que passaram 6, 7 meses, e o que aconteceu? A barragem estourou... Meu pai trabalhava em horário administrativo. Na hora em que ele sentou para almoçar, estava ele e o Wesley Antonio, que faleceu também, os dois eram muito amigos. Ele tinha a mesma idade que eu, fomos criados juntos. Eu sei que ele morreu lá almoçando, tadinho, almoçando...” (grifos nossos).[24]
Fernando Barbosa concluiu seu testemunho descrevendo um alerta premonitório de seu pai, para muitos um dos maiores conhecedores da barragem: ‘Ô, Fernando, ô, filho, você fica na parte mais alta que aquela barragem está igual a uma bomba. Aquilo está condenado. Ela vai estourar a qualquer hora. ‘Tem que tirar o pessoal do Córrego do Feijão, tirar o pessoal de baixo, que isso aqui vai estourar agora, daqui a 1 mês, daqui a 2 meses.’ Meu pai trabalhava em horário administrativo. (...) Eu sei que ele morreu lá almoçando, tadinho, almoçando...”.
Eventos relevantes como o fraturamento hidráulico ocorrido em junho de 2018 devem ser classificados em uma escala de 1 a 10 em função de seu risco. Em depoimento à CPI da Assembleia de Minas Gerais, o engenheiro de geotecnia operacional da própria Vale, Artur Bastos Ribeiro, declarou que “em um primeiro momento, a anomalia ocorrida seria para dar nota 10”.[25] Atribuir a classificação máxima exigiria o acionamento do plano de emergência da barragem (PAEBM, detalhado na próxima seção), que incluía a paralisação das atividades no complexo do Córrego do Feijão e a evacuação das pessoas.
A elevada gravidade desse evento foi reconhecida até mesmo pelo próprio auditor da barragem, Makoto Namba. Em e-mail enviado em 09 de outubro de 2018, ele advertia que a Alphageos, empresa responsável pela instalação dos drenos, havia feito uma “barbeiragem” ao utilizar uma pressão hidráulica muito alta que resultara em fraturamento hidráulico, podendo produzir um gatilho para liquefação da barragem.[26]
A elevada gravidade do evento foi reconhecida até pelo auditor da barragem. Em e-mail, ele advertia que a empresa responsável pela instalação dos drenos havia feito uma “barbeiragem” ao utilizar uma pressão hidráulica muito alta que resultara em fraturamento hidráulico, podendo produzir um gatilho para liquefação da barragem.
Em vez de reconhecer a gravidade do evento, no entanto, a Vale procurou diminuir sua dimensão. Em seus documentos internos, a empresa atribuiu um grau “6” ao evento. Para os reguladores o comportamento foi ainda pior: ela atribuiu grau “3”, deixando de comunicar o evento imediatamente à Agência Nacional de Mineração (ANM) e à Defesa Civil.[27] Caso a Vale tivesse informado a real gravidade do evento, segundo o relatório final da Câmara Federal, “muitas vidas poderiam ter sido poupadas, já que, possivelmente, a evacuação da área a jusante da barragem teria sido efetivada. Isso teria salvo até a vida do pai do Sr. Fernando, o Sr. Lau, que tanto alertou para tirarem as pessoas de baixo da barragem”.[28]
Em vez de reconhecer a gravidade do evento, no entanto, a Vale procurou diminuir sua dimensão. Em seus documentos internos, a empresa atribuiu um grau “6” ao evento. Para os reguladores o comportamento foi ainda pior: ela atribuiu grau “3”, deixando de comunicar o evento imediatamente à Agência Nacional de Mineração (ANM) e à Defesa Civil.
Além de diminuir a magnitude da ocorrência do fraturamento hidráulico perante os reguladores vis-à-vis seus documentos internos, a Vale não implementou nenhum outro método para aumentar o nível de estabilidade e de segurança da estrutura até seu rompimento alguns meses depois. A companhia contratou um consultor para avaliar o acontecimento e emitir um parecer sobre seu impacto. Nem o corpo técnico da Vale nem o consultor externo contratado demonstraram conhecer adequadamente a região inferior da barragem em que ocorreu o fraturamento.[29]
Tragicamente, os vídeos da câmera de monitoramento da barragem obtidos pela CPI da Câmara Federal demonstram que a ruptura da barragem que ocasionou seu colapso se iniciou na porção inferior do maciço, imediatamente acima do dique de partida, exatamente a região em que ocorreu o fraturamento hidráulico sete meses antes, em junho de 2018.[30]
Tragicamente, os vídeos da câmera de monitoramento da barragem obtidos pela CPI da Câmara Federal demonstram que a ruptura da barragem que ocasionou seu colapso se iniciou na porção inferior do maciço, exatamente a região em que ocorreu o fraturamento hidráulico sete meses antes, em junho de 2018.
ii. Leituras atípicas do radar interferométrico
Outra anomalia relevante ocorrida com a barragem de Brumadinho não endereçada apropriadamente pela Vale se refere a um conjunto de leituras atípicas do radar interferométrico instalado para monitorar a B1. No dia 18/01/2019, apenas uma semana antes da tragédia, o técnico da Vale, Tércio Andrade Costa, enviou um e-mail para seus superiores Cristina Malheiros e César Grandchamp no qual pedia “atenção para deformação na área 17, com superfície aproximada de 1,5 hectares”.[31]
Segundo Tércio, em seu depoimento à CPI da Câmara Federal, “o que me chamou atenção foi que, até então, o equipamento sempre identificou áreas pequenas, áreas de 200, 300, 400 metros quadrados. Nessa época, o equipamento identificou uma área... Foi possível identificar uma área bem maior, uma área em torno de 1,5 hectare, alguma coisa próxima a 15 mil metros quadrados”.[32]
Outra anomalia relevante não endereçada apropriadamente se refere a um conjunto de leituras atípicas do radar interferométrico para monitorar a B1. Apenas uma semana antes da tragédia, um técnico da Vale enviou um e-mail para seus superiores em que pedia “atenção para deformação com superfície aproximada de 1,5 hectares”...”Até então, o equipamento sempre identificou áreas pequenas, áreas de 200, 300, 400 metros quadrados. (...) Nessa época, o equipamento identificou alguma coisa próxima a 15 mil metros quadrados”.
Tércio alertava que “a deformação total era progressiva, sobretudo após dezembro, com velocidade média também positiva ao longo de todo o mês e aceleração oscilante sobretudo depois de janeiro” (grifos nossos).[33] Segundo o técnico da Vale, “uma deformação positiva, gradual e constante” indica que a deformação estava aumentando, inclusive em sua velocidade de deformação, “tendendo a virar uma parábola”.[34]
A resposta dada por seu superior César Grandchamp a essas deformações foi, no mínimo, inquietante: “eu recebi uma resposta do Sr. César Grandchamp, que usou uma frase que é um dito popular: ‘devagar que o andor é de barro, que o santo é de barro’. Eu entendi essa frase como: ‘fica na sua que essa situação não é sua. Isso que você está enxergando não é um problema seu. Faz o seu trabalho, opera o equipamento, tira os dados dele e manda pra gente. Eu entendi essa frase dessa forma’” (grifo nosso).[35]
A resposta dada por seu superior a essas deformações foi, no mínimo, inquietante: ‘devagar que o andor é de barro, que o santo é de barro’. Em depoimento, o técnico da Vale afirmou: "Eu entendi essa frase como: ‘fica na sua que essa situação não é sua. Isso que você está enxergando não é um problema seu. Faz o seu trabalho, opera o equipamento, tira os dados dele e manda pra gente. Eu entendi essa frase dessa forma’”.
Segundo o relatório final da CPI da Câmara Federal, “chama atenção nessa resposta que, além de descabida, é claro o intento de desqualificar os dados à ocasião obtidos pelo radar e, o pior, dá a entender que o Sr. César Grandchamp usa de sua posição hierarquicamente superior para ‘dar uma enquadrada’ no Sr. Tércio Andrade Costa e assim garantir que os dados relativos ao radar fossem por ele administrados”.[36]
Apenas sete dias antes da tragédia, portanto, o radar interferométrico identificou uma anomalia que vinha acontecendo desde o mês de dezembro. Segundo o relatório final da CPI da Câmara Federal, “a Vale, na figura de seus gestores e responsáveis técnicos com gerência sobre a B1, deliberadamente subestimou os indicativos da instrumentação dessa barragem, que apontavam flagrante anormalidade de sua condição de estabilidade”.[37]
Segundo o relatório final da CPI da Câmara Federal, “a Vale deliberadamente subestimou os indicativos da instrumentação dessa barragem, que apontavam flagrante anormalidade de sua condição de estabilidade“.
Final da parte 2 de 5.
Na parte 3, continuarei a abordar as causas diretas da tragédia de Brumadinho, descrevendo como a desconsideração de diversos eventos e alertas nos meses anteriores ao rompimento da barragem e a omissão dos responsáveis da Vale contribuíram para o colapso da estrutura.
Stay tuned!
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Prof. Dr. Alexandre Di Miceli da Silveira é palestrante e fundador da Virtuous Company, uma consultoria de alta gestão dedicada a aportar conteúdo de ponta em ética empresarial, governança corporativa, cultura, liderança, diversidade, propósito e futuro do trabalho.
O autor agradece à Profa. Dra. Angela Donaggio pelos valiosos comentários e sugestões.
Prof. Di Miceli é autor dos livros:
“The Virtuous Barrel: How to Transform Corporate Scandals into Good Businesses via Behavioral Ethics”
[1] Ibid: p. 171.
[2] A tentativa de interferência da Vale na relação com suas auditorias não se limitava à TÜV SÜD. Em 2017, a empresa Tractebel foi contratada para produzir o laudo de auditoria da B1. Em um anexo de e-mail, encontrou-se um documento em formato Word, com anotações de revisão. No item 4.2 “Fundação”, em sua versão original, produzida pela Tractebel, lia-se o seguinte texto: “São poucos os dados referentes à fundação da Barragem 1, dada a ausência dos projetos originais”. A executiva da Vale Cristina Malheiros, então, marca o trecho, em riscado, e escreve: “(Favor retirar esse texto)”, argumentando que “Em 2016 foi realizada uma campanha de sondagem especialmente na fundação a fim de melhorar o conhecimento da área [...]”. Além dessa emblemática alteração no texto criado pela auditoria, várias outras são mostradas na mesma mensagem eletrônica constante no inquérito IPL 0062/2019. Como conclui o relatório da CPI do Senado Federal, “esse tipo de revisão dos relatórios emitidos pelas empresas auditoras/fiscalizadoras do monitoramento da barragem de rejeito B1 parecia ser recorrente, conforme se pode verificar em outras mensagens... E a possível intervenção dos funcionários da Vale nos relatórios das empresas de auditoria ou fiscalização não ficava restrito ao nível hierárquico de Cristina Malheiros... A determinação de atenuar as fragilidades das barragens vinha de funcionários de escalão mais alto”. Relatório final da CPI do Senado Federal: p. 187-188.
[3] Relatório final da CPI do Senado Federal: p. 192.
[4] Como concluiu a CPI da Câmara Federal, o alemão “Chris-Peter Meier teve papel determinante na assinatura da declaração de condição de estabilidade da Barragem 1. E, logo após o rompimento da estrutura, deixou o Brasil para não mais retornar. Procurado pela Polícia Federal e por esta CPI, não se apresentou para prestar declarações que pudessem auxiliar no esclarecimento dos fatos. Ao contrário, ignorou totalmente o apelo das autoridades brasileiras. A Secretaria desta Comissão, na tentativa de convocar Chris-Peter Meier para prestar declarações, obteve da TÜV SÜD a seguinte resposta: ‘Diante dessa convocação, cumpre-nos respeitosamente informar que o Sr. Chris-Peter Meier não pertence aos quadros de funcionários da TÜV SÜD Bureau e não reside no Brasil’”. Relatório final da CPI da Câmara Federal: p. 572-573.
[5] Relatório final da CPI do Senado Federal: p. 192.
[6] Ibid: p. 190.
[7] Ibid: p. 190.
[8] A TÜV SÜD assumiu sozinha o contrato de revisão periódica da Barragem 1, além de ter firmado aditivo contratual para ampliar seus estudos de liquefação. Além desses, Vale e TÜV SÜD mantinham contratos de auditoria externa, descomissionamento, implantação de sistema de instrumentação geotécnica automatizada e monitoramento remoto e “as is” da barragem. A Vale, portanto, era um cliente importante. Relatório final da CPI do Senado Federal: p. 148.
[9] Ibid: p. 191.
[10] Relatório final da CPI da Câmara Federal: p. 560.
[11] Segundo Makoto Namba em declaração à CPI da Assembleia de Minas Gerais, “a Vale tinha solicitado que tais documentos não fossem referenciados para que as informações obtidas na Gestão de Riscos Geotécnicos (GRG) não fossem divulgadas à ANM”. De fato, os relatórios que continham informações e questionamentos sobre a condição precária da Barragem 1 não foram incluídos na Revisão Periódica de Segurança de Barragem (RPSB).
[12] Relatório final da CPI do Senado Federal: p. 187.
[13] Ibid: p. 175-178.
[14] Relatório final da CPI da Assembleia Legislativa de Minas Gerais: p. 173-174.
[15] Os DHPs, também conhecidos como Drenos Sub-horizontais, consistem em estruturas capazes de drenar águas subterrâneas a fim de incrementar a estabilidade de estruturas geotécnicas e, como seu próprio nome indica, são instalados em profundidade no eixo horizontal. Didaticamente, são tubos de pequeno diâmetro inseridos ao longo do corpo de taludes, com o objetivo de coletar águas infiltradas ou procedentes de lençol freático, para minimizar a pressão que a água exerce nos interstícios (poros) do solo.
[16] Ibid: p. 173-174.
[17] O prazo previsto para a instalação dos drenos era até junho de 2018, um prazo tão apertado que a Vale começou sua instalação sem os importantíssimos estudos de percolação que a Potamos havia recomendado (e, em razão disso, os estudos não foram concluídos). Relatório final da CPI da Assembleia Legislativa de Minas Gerais: p. 52.
[18] Ibid: p. 173.
[19] Relatório final da CPI da Câmara Federal: p. 207.
[20] Ibid: p. 208.
[21] Ibid: p. 208.
[22] Ibid: p. 209.
[23] Ibid: p. 209-210.
[24] Ibid: p. 210-212.
[25] Relatório final da CPI da Assembleia Legislativa de Minas Gerais: p. 55.
[26] Relatório final da CPI da Câmara Federal: p. 449.
[27] Segundo o relatório final da CPI da Câmara Federal, “Menciona-se ainda a má fé dos funcionários da Vale, que, no relatório da empresa, classificaram a situação como de gravidade 6, mas, para a ANM, a classificaram como 3, o que demonstra o intuito de não chamar a atenção da agência fiscalizadora”. Relatório final da CPI da Câmara Federal: p. 212.
[28] Ibid: p. 212.
[29] Relatório final da CPI do Senado Federal: p. 178.
[30] Relatório final da CPI da Câmara Federal: p. 161.
[31] Ibid: p. 120.
[32] Ibid: p. 126-127.
[33] Ibid: p. 120.
[34] Relatório final da CPI da Assembleia Legislativa de Minas Gerais: p. 178.
[35] Relatório final da CPI da Câmara Federal: p. 123-124.
[36] Ibid: p. 124.
[37] Ibid: p. 122.
Advogado - Consultor
4 mO caso precisa ser debatido amplamente, creio. Aguardamos a nova edição! Sucesso, professor!
Empreendedor Social | CEO | CRO | Diretor | Conselheiro | Mentor | Palestrante | Autor | Professor de MBA | Crédito | Gestão de Riscos | Mercado Financeiro | International Banking
4 mCapitalismo destrutivo e, ao mesmo tempo, autofágico!
Instrutor, consultor e palestrante em saúde e segurança do trabalho
4 mAs catástrofes dão sinais, não ver quem não quer.