Cenas locais de golpismo e achaque autoritário
Há vários anos, a capital do Estado de Mato Grosso, Cuiabá, vem sendo lugar de renhidas disputas políticas que, ao mesmo tempo em que causam prejuízos à coerência e objetividade dos critérios de tomada de decisão, impactam negativamente a administração pública municipal e, por consequência, a população local.
O principal conflito expressa-se na disputa entre os atuais Governador de Estado, Mauro Mendes, e Prefeito Municipal, Emanuel Pinheiro.
Dentre outras manifestações desse conflito, há tempos, o governador Mauro Mendes declarou, por exemplo, que não "confiava" no prefeito, razão pela qual não faria repasses de recursos discricionários para a Prefeitura Municipal investir, assumindo que intervenções com recursos do Estado na capital seriam feitas apenas quando algum ente administrativo do próprio Governo do Estado as pudesse contratar e administrar.
Outro exemplo dessa disputa está na discussão sobre a implantação de novas soluções para a mobilidade urbana, em que o Governo Estadual decidiu rescindir o contrato para implantação de um sistema de VLT entre as cidades de Várzea Grande e Cuiabá para instalar linhas de BRT, apesar do governo federal ter efetuado financiamento para o VLT desde antes da Copa de 2014 e já ter havido a aquisição dos veículos para serem usados. Sob o argumento de que, à época, as obras para a implantação do VLT teriam sido maculadas por corrupção, os governadores Pedro Taques e o atual Mauro Mendes, interromperam as obras e rescindiram o contrato. Os veículos há muito tempo adquiridos tem motivado, já que foram pagos, que o governo estadual faça tentativas de ofertas de venda, para recuperação do dinheiro investido, ainda sem conclusão. Enquanto o governo estadual quer desfazer-se dos veículos, o Prefeito quer aprovar um novo projeto de implementação do VLT junto ao Novo PAC, para dotar a cidade dessa modalidade de transporte público de passageiros na cidade. Obviamente, a proximidade do fim do mandato, com as eleições municipais tão perto, parecem inviabilizar essa proposição.
Outro ringue do conflito entre o Prefeito e o Governador Mauro Mendes deu-se nas eleições de 2022, quando Mauro Mendes, enquanto apoiador do ex-presidente Bolsonaro, contra Lula, enfrentou a esposa do Prefeito Municipal, senhora Márcia Pinheiro, candidata do PV, com apoio da Federação PT-PV-PCdoB. Mauro Mendes sagrou-se vencedor, mas tal vitória não desanuviou os conflitos pelo comando da cidade de Cuiabá, que se acirraram, em 2023, num novo palco: a saúde pública.
Recomendados pelo LinkedIn
Neste cenário da acirrada disputa, a saúde pública, deve-se saber que Cuiabá é o centro para onde acorrem as prefeituras de todo o Estado para o atendimento de seus munícipes, quanto às necessidades de serviços hospitalares de maior complexidade, no SUS.
A Prefeitura de Cuiabá têm assumindo uma demanda de pacientes do interior, com custos que deveriam ser compartilhados com as demais prefeituras ou assumido parcialmente pelo governo estadual. Sob conflitos, desde episódios envolvendo as OS, responsáveis pela gestão da farmácia e distribuição de medicamentos na rede das unidades básicas de saúde, ainda entre 2011 e 2014, passando por inúmeras acusações de compras superfaturadas, diversos episódios envolvendo a Polícia e o Ministério Público resultaram em acusações contra Secretários Municipais e outros responsáveis pela gestão da saúde pública, com muitos processos ainda em andamento, vários deles sem consequência, exceto pela destruição da reputação de diversas pessoas. O momento mais grave, denotando o elevado acirramento desse conflito, deu-se quando o Tribunal de Justiça determinou uma intervenção da saúde pública municipal, em 2023, pelo governo estadual, o que aconteceu. Os problemas, entretanto, não foram resolvidos, havendo agora diversas acusações de condutas reprováveis dos "interventores" no que se refere a diversos atos administrativos durante a intervenção, sendo eles, agora, acusados de terem efetuado compras superfaturadas, dentre outras acusações. Por sua vez, o Estado recusa-se a assumir dois hospitais hoje municipais que servem a pacientes de todo o Estado, como uma forma de reduzir o pesado ônus financeiro que a capital do Estado tem assumido, ultrapassando, e muito, as médias de gastos com a saúde pública, comparativamente aos demais municípios. Esse imbróglio da saúde pública motivou tentativas de afastamento do Prefeito Emanuel Pinheiro, decretada pelo Tribunal de Justiça, decisão revertida nos tribunais superiores, ou com a oposição do prefeito na Câmara Municipal propondo sua cassação, que também não aconteceu, por problemas quanto à materialidade das acusações, no que diz respeito à sua juridicidade.
Então, no TCE - Tribunal de Contas do Estado, em julgamento das contas da Prefeitura, para o ano de 2022, deliberou-se por um parecer de reprovação das contas, o que ensejou que os vereadores de oposição protocolassem um pedido de Comissão Processante na Câmara Municipal, com o intuito de cassação do Prefeito, agora, às vésperas da eleição de 2024. O Prefeito, obviamente, tenta defender-se das acusações, tanto no Tribunal de Contas quanto na Câmara Municipal. Numa etapa desse esforço de defesa, ontem, um Conselheiro do Tribunal de Contas deliberou pela sustação do parecer pela reprovação das contas da Prefeitura, enquanto não houver julgamento definitivo dos argumentos de defesa apresentados, e, em consequência, pela interrupção do andamento da Comissão Processante na Câmara Municipal, dado que a fundamentação jurídica para a sua abertura foi o parecer do TCE. Lendo o parecer técnico usado pelo TCE para sua tomada de decisão, não encontrei dados que me informassem sobre quais foram os motivos que teriam causado o incremento dos valores de Dívida Liquida Consolidada, principal item a ensejar a reprovação das contas. O processo de julgamento no TCE-MT, com seus Documentos, encontra-se em https://www.tcemt.tc.br/processo/89044/2022#/ e o Relatório Técnico em https://www.tcemt.tc.br/processo/documento/89044/2022/249117/2023.
Independentemente do que aconteça, um fato é inegável: assim como na Operação Lava Jato, as consequências políticas do conflito entre o Governador do Estado e o Prefeito Municipal já foram produzidas, em enorme prejuízo do Prefeito Municipal e de sua capacidade de administrar a cidade, uma vez que sua imagem foi fortemente afetada e que grande parte de seu tempo foi tomado por uma enorme quantidade de esforços e procedimentos para responder às demandas judiciais.
Ainda que eu não mantenha quaisquer afinidades políticas ou ideológicas com o Prefeito Municipal, tendo a considerar que algumas das propostas que ele defende são melhores do que aquelas representadas pelo Governador de Estado. Mas, sobretudo, discordo de como uma forte coalização formou-se para derrotar judicialmente e administrativamente ao Prefeito, com um tsunami de acusações e processos que não se provaram fundamentados senão na própria divergência.
Do meu ponto de vista, esses acontecimentos são um indício, no âmbito local, do pesado acirramento das tensões contra a democracia que o Brasil vivenciou desde as manifestações de 2013, passando pelo Golpe do Impeachment de 2016, pela política de teto de gastos (esdrúxula), pela Lava Jato e pelo péssimo governo golpista de Bolsonaro, com suas fracassadas pretensões de desmantelamento das instituições erigidas pela Constituição de 1988.
Apesar do Governo Lula representar uma chance para a retomada dos percursos do país pelas trilhas do ideário democrático, a persistência do golpismo e do autoritarismo ainda está muito evidente e é necessário que defenestremos a poluição do denuncismo e do achaque sabotador que constituem a essência do seu espírito beligerante, tanto no nível local, no âmbito dos municípios, como nos Estados e na cena política nacional.