Certeza da Incerteza
A prática clínica diária é um jogo de tabuleiro onde a incerteza é a única certeza que temos. Foram várias as vezes que no findar dos meus dias, tropeçava numa emoção estranha. Um desconforto emocional que se mesclava com medo e me petrificava o corpo e a mente.
Era normalmente despoletada pela movimentação de uma das peças à qual se seguiria uma nova jogada. Surgia da necessidade de um diagnóstico em fisioterapia, da certeza da melhoria clínica ou do conforto de um futuro pleno em saúde e sem as dores que tantas vezes nos separam de nós próprios.
Perguntava-me como poderia dar uma série de certezas que não tinha sem me sentir um Pinóquio ou sem no mínimo defraudar as expectativas vindouras de alguém com o qual partilhava uma jornada de reabilitação.
Numa retrospetiva percebi que o problema não era de agora, mas de sempre. Não apenas meu, mas partilhado com a humanidade, como se este sentimento tivesse sido imprimido geneticamente.
E certo é que historicamente, a espécie humana progrediu graças à sua capacidade de reduzir sucessivamente a incerteza. Criámos a astrologia, a física, a matemática e a medicina acreditando que o detalhe e o conhecimento são a melhor forma de prever o futuro. Contudo, encandeados e empoderados pela luz do conhecimento desacreditamos e diminuímos a incerteza. Tal como na vida e na reabilitação, a incerteza volta invariavelmente para nos mostrar que nesse tabuleiro somos tão bons como maus jogadores.
A incerteza, é do ponto de vista teórico, o grau relativo da nossa capacidade para prever o futuro. E quando confrontados com situações de potencial desconforto passamos a optar por respostas rápidas, menos verdadeiras e menos pragmáticas.
O campo da saúde é um jogo complexo, dinâmico e interativo, pleno tanto em certezas como em incertezas. Estas últimas sempre foram vistas como ameaças e erros, e os profissionais de saúde pouco habituados a conviver e a lidar com elas.
Quer a medicina como a fisioterapia sustentam a ideia que a criação de novo conhecimento nos permite reduzir a incerteza. Contudo a incerteza clínica é inerente à saúde e está presente nos encontros clínicos tanto nos momentos de diagnóstico, como de prognóstico e de intervenções em saúde.
O desconforto físico e ansiedade são uma emoção base que surge nestes momentos de vazio. A jusante, estes sentimentos desaguam em problemas de saúde mental e/ou burnout, um problema bem real, vivido e documentado pelos fisioterapeutas portugueses. Todos já nos escondemos atrás de um diagnóstico pato-anatómico, já fomos paternalistas com o utente, já usamos da assimetria do poder para responder a algo que não sabemos. Muito disto, porque não soubemos lidar com as nossas emoções, a nossa vertigem, a nossa incerteza.
O futuro não passa por nos agarrarmos a jangadas de pedra. Passa por aceitarmos a incerteza, acreditando que este é um campo fértil em ideias, em soluções e pleno de oportunidades. Que as pessoas nos possam procurar não só pela certeza, como pela capacidade de lidar e aceitar o manuseamento da incerteza. Que possamos navegar nestes mares em relação à doença sabendo que a saúde é um jogo de probabilidades e que, por vezes, sentimentos menos positivos nos mantêm despertos, menos propensos ao erro e que na súmula poderá ser uma verdadeira mais valia.
Que nos encontros clínicos possamos usar a comunicação (verbal e não verbal) para ultrapassar estes momentos, aceitando o desafio de falar de medos com coragem, criando pontes que nos permitem melhorar a relação terapêutica e marcar a nossa posição ao longo da jornada de cuidados.
Lidar com a incerteza deve ser uma competência dos profissionais de saúde, que assente na prática centrada na pessoa, na comunicação e no estabelecimento de uma relação terapêutica.
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Xeque-Mate
Ricardo Vieira
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