“A Chapecoense e meus 30 anos de trabalho”

“A Chapecoense e meus 30 anos de trabalho”


O leitor talvez se pergunte: o que tem a ver uma coisa com a outra? Bom, a princípio só queria dizer que fui um dos milhões que acordou de madrugada, tomou um susto quando mexeu no celular e correu pra televisão sem acreditar na maior tragédia da história do esporte e do jornalismo brasileiro, simultaneamente. Eu fui um daqueles que se emocionou e acompanhou, com profunda tristeza, os episódios cruéis que levaram um time da glória para a morte em questão de minutos. Mas, creia, não é este o motivo deste texto.

Este ano – que aqui pra nós em termos de más notícias superou o mais carniceiro dos programas policialescos – me dei conta que completei 30 anos de trabalho. Verdade: eu mesmo me assustei. Não tinha me tocado. Desde os 17 anos, primeiro acumulando a lida com os estudos, e depois exclusivamente na profissão que escolhi, percebi que consumi quase 64% da minha vida na labuta. De auxiliar de escritório numa fábrica de sandálias até chegar a professor e jornalista foram várias noites em claro, fins de semana perdidos e jornadas triplas.

Não espere também alguma lamentação, estilo Titãs, de que “devia ter trabalhado menos, ter visto o sol se por”. De fato, devo ter perdido coisas boas na vida na avalanche do cotidiano. Poderia, por exemplo, ter convivido mais com meus filhos ou amigos ou descobrir momentos de raro prazer ou autoconhecimento na contemplação e no ócio. Mas esta conta não é simples. Porque não se trata somente de uma opção sua.

O mercado adora vender o mito de que nós temos liberdade de escolha. E ela até existe, mas é diretamente proporcional ao dinheiro que você tem. No mundo do capital, quem não trabalha não come. Acho que, se conseguir passar para os meus filhos o que eles encontrarão no mundo real, com o devido senso crítico, terei feito um bom trabalho enquanto pai.

Por outro lado, procurei identificar, desde muito novo, as coisas que realmente me faziam bem e, ao mesmo tempo, pudessem me acrescentar algo: ler, ouvir música, beber com os amigos, ir ao cinema, jogar bola, brincar com os filhos, correr, tocar, cantar, namorar, escrever, acompanhar o time de futebol, enfim. Não basta ter tempo livre: é preciso ocupá-lo com qualidade (deixando claro que tal conceito varia de pessoa pra pessoa).

Porém, por mais que queira racionalizar tais coisas, o acidente com a Chapecoense reacende a luz vermelha deste dilema entre coisas efêmeras e eternas, direitos e deveres, trabalhos e prazeres. Talvez por isso precisemos passar por tantos lutos em nossa caminhada: pra quando em vez lembrarmos que não somos para sempre.

Um dia ocuparemos um não-lugar por estas bandas. Enquanto isso, temos uma enorme responsabilidade sobre os ombros: reconhecer a vida como dádiva. Isso significa aprender a viver melhor o tempo presente e, por que não dizer, respeitar esta centelha de luz passageira nos nossos semelhantes, como ocorreu nas intensas mensagens de amor e fé de tantos clubes e torcedores, em especial dos que lotaram o estádio do Atlético Nacional, em Medellín.

*Demétrio Andrade

Jornalista e sociólogo.


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