Chief Compliance Walker
A expressão “walk the talk” é comumente utilizada por profissionais de compliance com o fim de realçar a importância da coerência entre o discurso e o comportamento da alta liderança para o atingimento do objetivo do sistema de ética e compliance de uma organização. Dizemos que o exemplo deve partir do topo, em forma de condutas éticas, ou seja, pela prática da “virtude moral”, como já antevia Aristóteles em 345 a.C.
O objetivo maior do sistema de ética e compliance consiste na criação e manutenção do senso de responsabilidade compartilhada entre os colaboradores de todos os níveis hierárquicos, de modo que cada um contribua, voluntariamente, para o sucesso de longo prazo da empresa, seja aprendendo, cumprindo e disseminando o conjunto de valores organizacionais e as normas externas e internas, seja participando da construção e de melhoria dos processos internos (relatando erros e desvios de conduta, por exemplo), seja, ainda, performando com alto desempenho.
Evidentemente, o “tom do topo” deve reverberar entre os gestores do nível médio (middle managers), afinal, por estarem mais próximos do “chão de fábrica”, suas condutas são mais visíveis pelos colaboradores deste nível. Todos sabemos, entretanto, que a média gerência é muitas vezes resistente à mudança cultural. Vem daí o surgimento de novas instâncias de governança (“contrapesos organizacionais”) para vocalizarem e viabilizarem os valores mais nobres da empresa (um bom exemplo é a criação do conselho de inclusão da empresa química americana Dow).
É a partir do topo que a ética molda o sistema organizacional e de gestão, a busca de oportunidades, a tomada de decisões e as relações da empresa com todos os seus stakeholders – funcionários, acionistas, clientes, fornecedores, governos, comunidade local e sociedade em geral.
Sem dúvida, a qualidade da relação que a alta liderança mantém com esses públicos está no centro das discussões sobre a tomada e a divulgação estratégica de decisões relativas ao objetivo de longo prazo do sistema de ética e compliance, afinal, o que se pretende é provocar o entusiasmo coletivo pelo comportamento ético e isso só será alcançado pela exemplaridade moral da líder e pela conexão emocional que ela é capaz de gerar e manter com os seus seguidores. It’s all about relationships!
Frise-se, desde logo, que a divulgação das ações de cuidado com a comunidade local ou com a sociedade em geral é muito importante para se articular o “entusiasmo corporativo”. Hoje, em meio à pandemia criada pelo #coronavírus, não são poucos os funcionários que se sentem orgulhosos e identificados com as ações humanizadas de suas lideranças. É mesmo animador ver várias empresas anunciando medidas de ajuda aos stakeholders externos.
Convenhamos, não há como acreditar que uma empresa possa crescer perenemente em uma sociedade doente. Como diz Benjamin M. Friedman, “a saúde importa tanto quanto a educação – não somente em si mesma, mas porque qualquer que seja o conhecimento ou treinamento, os trabalhadores mais sadios faltam menos ao trabalho e são mais produtivos”. Tampouco podemos conceber uma força de trabalho produtiva sem igualdade de oportunidades para as pessoas das mais diversas origens, características e perspectivas.
O que passa é que, atualmente, os ouvidos das lideranças conscientes estão, mais do que nunca, direcionados às manifestações de medo dos seus liderados. Percebe-se claramente o esforço de muitas empresas para oferecerem segurança aos seus colaboradores, seja na forma de proteção à infecção respiratória covid-19, seja através da preservação do emprego e da renda. Dá gosto de ver essas empresas criando fundos para cuidar dos seus funcionários e parceiros (exemplos: Natura, 99, iFood) ou, até mesmo, aumentando os seus salários em 20%, como o fez a empresa espanhola Chocolates Valor, em retribuição “por el esfuerzo y la entrega que están demostrando durante estas complicadas semanas”. Iniciativas como essas são dignas de destaque (sugiro, inclusive, que acesse o Radar de Sustentabilidade para conhecer outras ações de valor).
Não há fórmula mágica para as empresas superarem as adversidades ou sobreviverem às crises como esta que todos atravessamos. Alexandre Di Miceli escreveu recentemente três primorosos textos sobre os atributos de uma empresa resiliente – aquela que é capaz de “crescer com as adversidades e ter sucesso em um mundo de incertezas” –, quais sejam: (i) aprendizado contínuo, (ii) ética e (iii) existência de um propósito maior além do resultado financeiro. É disso que estou a tratar.
Se a líder de uma companhia demonstrar (by walking around) que está conectada com os interesses e sentimentos dos seus liderados, construindo um ambiente psicologicamente seguro que lhes permita serem suas melhores versões no trabalho, ou seja, que lhes permita revelarem quem realmente são, com toda a sua diversidade cognitiva, potencial de aprendizado, entre outros skills; e se os colaboradores perceberem que as ações da liderança estão genuinamente direcionadas à promoção da autonomia, da confiança recíproca, do respeito mútuo, da diversidade, da inclusão, da sensação de pertencimento e do feedback sincero (speak up safely culture); não faltará engajamento e entusiasmo dos stakeholders para preservarem a vida da companhia.
É crescente o número de pessoas que buscam colocação em organizações com valores e propósitos com os quais se identificam e onde haja grande dose de liberdade para expressar sua individualidade. Sendo capacitadas e influenciadas emocionalmente pelo exercício diário e coerente da liderança humanizada, a tendência é que elas comecem a sentir que compartilham do mesmo destino de quem as lidera. E, uma vez que esse senso de afinidade é gerado ou que a motivação intrínseca das mesmas é ativada, elas passam, então, a “vestir a camisa” da empresa onde trabalham, sendo mais criativas e dedicadas; enfim, elas passam a se sentir responsáveis pela sobrevivência e crescimento sustentável da organização.
Deste modo, não surpreende o fato de que, em momentos de dificuldade, alguns dos mais comprometidos e entusiasmados funcionários trabalhem de graça para manter uma empresa viva. Foi o que fizeram muitos dos colaboradores da rede varejista norte-americana Whole Food Market quando uma enchente de grandes proporções a destruiu, em 1981. “Não possuíamos reservas de dinheiro, seguros ou estoques guardados em outro lugar. Sem maneira de nos reerguer com os próprios recursos, estávamos falidos”, disse John Mackey.
O que Mackey e os demais fundadores da empresa não imaginavam é que, no dia seguinte à inundação, funcionários e dezenas de clientes e vizinhos aparecessem na loja com esfregões, baldes e pás, afirmando que não deixariam a loja morrer. “Muitos de nossos colaboradores, então, trabalharam sem receber. (...) Na verdade, todos os principais stakeholders (clientes, colaboradores, fornecedores e investidores) se manifestaram após a tragédia, para se certificar de que o Whole Foods Market não morreria e que seríamos capazes de reabrir. E foi o que fizemos, 28 dias depois da inundação”, finaliza Mackey no seu valioso livro Capitalismo Consciente.
É notável o crescimento dessa empresa desde o seu alagamento há 39 anos. De uma única loja em Austin ela passou a ter 460 supermercados espalhados pelos EUA, Canadá e Reino Unido, com cerca de 90 mil trabalhadores. Em 2016, a rede alcançou a marca de US$ 16 bilhões em volume de vendas. Não sem razão a gigante Amazon a comprou no ano seguinte.
O mais surpreendente de tudo isso é que o cofundador e até hoje CEO da Whole Food Market, John Mackey, nunca teve uma única aula de administração. Como se pode explicar esse crescimento? A resposta é básica: propósito, aprendizado contínuo, ética, confiança e desejo genuíno de cuidar de todos os stakeholders. Como ele mesmo diz, isso “funciona como um fator de motivação extremamente poderoso”. “Cuidado gera cuidado e, em retribuição, os stakeholders cultivam uma preocupação genuína em relação à empresa”.
Igualmente, foi a partir do aprendizado contínuo, de um propósito maior e da virtude prática manifestada em relações saudáveis com os seus stakeholders, que Madam C. J. Walker construiu um grande império da indústria de cosméticos no início do século XX, nos EUA.
Considerada a primeira mulher americana a se tornar milionária por conta própria, Madam Walker não tinha, porém, um background favorável. Filha de escravos e órfã aos setes anos, Walker viveu em uma época na qual a população negra era tratada da pior forma possível. Ela não teve educação formal. Ademais, os empregos que existiam além da coleta de algodão – atividade comum aos escravos americanos – eram todos de baixos salários. “Eu sou uma mulher que veio dos campos de algodão do Sul. De lá, fui promovida ao tanque. Depois, fui promovida à cozinha. E de lá promovi a mim mesma ao negócio de produção de produtos para cabelo”, exclamou Walker.
Com muita força mental (grit) e decidida a criar o seu próprio negócio e a fazê-lo prosperar, Madame Walker não parou de aprender, tanto para aprimorar a fórmula do seu produto principal – uma pomada para curar a queda de cabelos que acometia muitas mulheres negras da época –, quanto para redesenhar os pentes quentes até então existentes e para criar outros produtos. Além disso, através de tentativa e erro, ela aprendeu a vendê-los. Walker percebeu que, ao contar a sua própria história – de como o uso do “elixir capilar mágico” lhe devolveu os cabelos e, consequentemente, a alegria, a confiança e os sonhos –, as mulheres que a cercavam começavam a se conectar emocionalmente com ela.
Assim, Madame Walker aperfeiçoou sua técnica de storytelling e, por despertar o entusiasmo nas pessoas, aumentou suas vendas. O fato é que a sua energia inspiradora decorria do propósito maior por detrás de cada palavra falada: criar oportunidades para as mulheres negras saírem da pobreza. “Não estou apenas satisfeita em ganhar dinheiro para mim”, afirmou ela em 1914. Como diz o historiador americano Henry Louis Gates Jr., mais do que vender um produto às suas clientes, “ela oferecia um estilo de vida, um conceito de total higiene e beleza que as levaria com orgulho ao progresso”.
Muitas das clientes de Madam Walker se tornaram também suas vendedoras. Isso é o que “acontece com grande parcela das empresas conscientes”, refere John Mackey.
O cuidado que Madam Walker tinha com o destino das mulheres negras motivou a capacitação de cerca de 40 mil vendedoras e cabeleireiras através de um número crescente de cursos de cultura capilar que ela criou em parceria com algumas instituições existentes. Madam também olhava com cuidado para as comunidades dessas “Walker agents”, razão pela qual ela as incentivava a usarem sua prosperidade e influência para ajudar não só os seus familiares, mas também sua vizinhança. “O primeiro dever de vocês é com a humanidade”, dizia ela. Isso contribuiu para o crescimento da classe média negra nos EUA.
Madam Walker também não hesitava em fazer doações generosas quando o assunto era a promoção dos direitos civis e a educação da população negra.
Como não podia ser diferente, a relação de Walker com as suas colaboradoras era baseada na confiança, no respeito e na segurança psicológica. Parte da sua “política de respeitabilidade” foi retratada na nova série da Netflix, A Vida e a História de Madam C. J. Walker. Vejamos um dos vários episódios marcantes.
Pouco antes de inaugurar a 1ª Convenção Anual de especialistas em beleza na Filadélfia – evento que se tornou um dos primeiros encontros nacionais de mulheres de negócios nos EUA e que acabou reunindo mais de 200 profissionais –, Madame Walker dá um grande exemplo de virtude moral prática. Prestes a assinar um acordo que levaria os seus produtos a inúmeras farmácias, ou seja, que expandiria sobremaneira o seu negócio, mas que prejudicaria as suas vendedoras de porta em porta, ela refletiu e, ouvindo afetivamente as críticas das suas agentes, decidiu desistir do acordo. “Vocês são muito mais que funcionárias para mim. Eu sonhei com a fábrica, mas vocês a tornaram real. Fiquem comigo e controlem o seu destino”.
Convenhamos, quem é que não retribuiria uma demonstração genuína de cuidado como essa? Não seria isso suficiente para supermotivar as colaboradoras a fazerem o melhor pela empresa, a salvaguardarem os seus valores e imagem? Indo um pouco além: quem é que não se sentiria à vontade para sugerir boas ideias, ainda que opostas às da líder, quando esta assume as suas vulnerabilidades e é a primeira a praticar a audição afetiva e a estimular a inovação? Em uma organização que incentive seus colaboradores a falarem a verdade às lideranças (speak truth to power), quem não se sentiria seguro para alertá-las sobre os seus eventuais vieses inconscientes? Não seria tudo isso a energia de uma empresa que aprende (com erros, desvios, blind spots e experiências mal sucedidas)?
Não há dúvida de que o sucesso da The Walker Company derivou do aprendizado contínuo da sua líder. Mas foi sobretudo pelo seu propósito, inteligência emocional e virtude moral prática – diariamente percebida pelos colaboradores como tratamento justo e coerente – que Madame Walker conseguiu conectar e empoderar centenas de mulheres para, então, construir seu império.
Madame C. J. Walker deixa, assim, um lindo legado de inspiração para todos nós. Semeando a ética com cuidado e atitude, ela viu florescer a confiança, o engajamento das suas agentes e, consequentemente, o êxito financeiro da sua companhia.
De hoje em diante, em que as empresas precisarão ser, realmente, resilientes, com uma enorme capacidade de reação rápida e criativa diante de uma realidade complexa e mutante, o sucesso delas dependerá, cada vez mais, do seu propósito, da exemplaridade moral e da inteligência emocional da sua liderança para criar condições que despertem a chama do entusiasmo em seus liderados, de modo que possam revelar toda a sua iniciativa, criatividade e paixão. Isso não é criado por um comando, diz Gary Hamel no recomendável O que importa agora. Como construir empresas à prova de fracassos.
Com efeito, como bem ressaltam Michael Sandel, Marco Fabossi e Ricardo Voltolini, não faz o menor sentido impedir que os colaboradores levem para dentro da empresa toda a sua bagagem moral, espiritual e sentimental, pois só assim eles mostrarão quem realmente são, sem “capas” (Kenji Yoshino) ou “personagens” (Marco Fabossi).
“Se você não puder trazer tudo o que é para o trabalho, você certamente não trará o seu melhor” (Safra Catz, CEO, Oracle)
Um sistema de ética e compliance será bem sucedido na criação e manutenção do senso de responsabilidade compartilhada entre os colaboradores se a alta liderança utilizar os valores que este público traz de casa. Caso contrário, parafraseando Adán Nieto Martín, a empresa perderá a oportunidade de aproveitar um potente motor de motivação intrínseca para cumprir com a ética e a legalidade.
Chief Compliance Walker é sobretudo quem cuida antes de ameaçar, é quem pede ajuda ao invés de apenas comandar, é quem reconhece a importância da segurança psicológica no ambiente corporativo, é quem promove a cooperação.
PS: ia dedicar esse texto a todas as "Madames Walkers" existentes. Mas, nessa "quarentena" descobri que serei pai. Esse artigo é dedicado à minha Alice, com muito amor.
Parabéns Me. Marco Aurélio Borges de Paula. Ótimo texto... inspirador!!!!
🎓MENTORING COMPLIANCE Anticorrupção&RESPONSABILIDADE Empresarial 📌LL.M. Direito Penal Econômico, UniCoimbra 📌Direito e Processo Penal, UniMackenzie 📌MBA Direito Corporativo e Compliance, Escola Paulista de Direito
2 aTexto fabuloso, Marco Aurélio! Parabéns, #SucessoSempre! Abs
Sócio fundador do escritório Pironti Advogados. Pós-Doutor em Direito pela U. Complutense de Madrid. Doutor e Mestre em Direito Econômico. Atuação em Compliance, Gestão de Riscos, Proteção de Dados e Direito Público.
4 aSempre um prazer estar contigo meu amigo! Abs
Head de Legal e Compliance. Experiência de mais de 10 anos em Compliance/GRC, Privacidade de Dados, Prevenção à Lavagem de Dinheiro e ESG. Autora de 6 livros. Professora convidada de Pós Graduações e LLMs.
4 aPrimoroso o texto. Parabéns 👏
Chief Compliance Officer em LATAM Airlines Group
4 aFabuloso seu artigo, meu amigo! Juntando uma história real a conhecimentos de ética e Compliance, citações filosóficas e a vida como ela é, você construiu um texto que dá gosto de ler e, de quebra, fez uma propaganda “priceless” pra série da Netflix! Parabéns!🍾E que venha a Alice, com muita força e saúde!