Chuva no país das laranjas em tempo de guerra
Acordo cedo. Abro a janela. O céu esconde o Sol e deixa cair uma chuva intermitente. Felizmente, chove! Numa brecha da memória, recordo Luís de Sttau Monteiro por causa do título do seu livro que conta a tentativa frustrada de uma revolta liberal, em 1817, supostamente chefiada por Gomes Freire de Andrade. A narrativa veste-se com os panos do drama épico e, em dois actos ou na sequência dos acontecimentos históricos desse mês de Outubro, traduz na nossa pele e nos ossos a injustiça da repressão política que conduziu aquele homem com fome de liberdade ao cárcere e ao enforcamento.
O cenário repete-se no tempo, mas o espaço diverge do forte de São Julião da Barra. Os regimes do mundo actual já não são como o do marechal Beresford nem como o que existia em 1961, quando Sttau Monteiro publica a obra «Felizmente Há Luar!», a qual o consagra como dramaturgo e forte opositor ao regime do Estado Novo, cuja indumentária salazarista, autoritária e corporativista enegreceu este país que, na linguagem árabe, grega, turca, macedónia, arménia, azeri ou na de muitos outros falantes orientais, se chama «laranja».
Na turbulência dos dias presentes, com a Ucrânia invadida pela Rússia, numa obsessão doentia e sanguinária que se prolonga, há oito meses, enquanto Vladimir Putin impõe a lei marcial nas regiões anexadas ilegalmente, são, pelo menos, 28 os países em conflito activo e que sofrem com a barbárie dos combates artilhados, como indica a organização não-governamental especializada na análise e mapeamento de crises Projecto de Dados de Localização e Eventos de Conflitos Armados.
Há décadas, perduram as tensões entre Israel e os seus vizinhos árabes e palestinianos, assim como na terra afegã, com os fundamentalistas talibãs a recuperarem o poder nessa encruzilhada de povos asiáticos e a acentuarem a violência e os ataques contra civis. No Iémen, com uma guerra civil, desde 2014, que opõe duas potências do Médio Oriente – com a Arábia Saudita a apoiar as forças sunitas do governo de Abd-Rabbu Mansour Hadi e, no outro lado, o Irão a ajudar a milícia rebelde houthit, de xiitas, porque têm uma visão diferente quanto à linhagem sucessória do profeta Maomé e da sua autoridade político-religiosa –, somos contemporâneos da «pior situação humanitária do Mundo», como classifica a Organização das Nações Unidas, embora se diga que é uma «guerra esquecida».
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Soma-se a esta violência sem fronteiras onze anos de guerra na Síria, depois da Primavera Árabe, com mais de metade do território sob o controlo de Bashar Al-Assad e do seu regime sustentado por Putin. Entretanto, na Etiópia, o conflito (re)iniciado em Novembro de 2020, arrasta os abusos por parte dos oponentes e prossegue com o assassinato de civis e com os estupros em massa, trazendo para as ruas a brutalidade de milhões de famintos, estimando-se que 90% da população da região do Tigré precisa de assistência alimentar.
Noutro continente, em Mianmar (antiga Birmânia) – país com mais de uma centena de grupos étnicos –, as divergências políticas e étnicas, que se arrastam há décadas, dão fôlego a uma escalada na violência, sobretudo a partir de 1 de Fevereiro de 2021, quando o exército deteve a conselheira Aung San Suu Kyi, o presidente Win Myint e outros líderes do partido governante e tomou o poder. Esse golpe de Estado desencadeou manifestações populares que continuam a ser fortemente reprimidas pelas armas das forças de segurança.
Termino com um excerto do último volume da obra «Em Busca do Tempo Perdido» (ou seja, em «O Tempo Redescoberto»), em que Marcel Proust fala dos «homens arrastados pela imensa revolução da terra, da terra sobre a qual são bastante insensatos para continuarem as suas próprias revoluções e as suas guerras vãs, como a que ora ensanguentava a França». São as impressões e a representação literária da Primeira Grande Guerra na escrita deste romancista nascido em 1871, um ano antes da morte de Theophile Gautier, cujo pensamento marca o dia de hoje: «A violência leva à violência e justifica-a.»
(«Diário de Coimbra»: DA RAIZ E DO ESPANTO, 23.10.2022)