Coaf para o Banco Central é uma decisão acertada? Folha SP 31ago2019
Recebi agora a reportagem completa da Folha SP do dia 31.ago.2019 - Jorge W Queiroz e do Gustavo Loyola
OPINIÃO – Expressa a opinião do autor do texto
JORGE W. QUEIROZ
Transferir o Coaf do Ministério da Economia para o Banco Central é uma decisão acertada? SIM
BC é responsável por assegurar estabilidade do sistema financeiro
31.ago.2019 às 2h00
Jorge W. Queiroz
A transferência do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) para o Banco Central é positiva, desde que condicionada à observação do espírito e letra da lei e de acordos internacionais, assim como de todo o arcabouço jurídico correspondente —e à sua efetiva aplicação de forma diligente.
Tecnicamente, a transferência faz sentido, considerando que, entre suas diferentes atribuições, o BCé o órgão que regula e fiscaliza todo o sistema financeiro, sendo responsável por assegurar sua estabilidade. Com efeito, estrutura similar à de outros países, como os EUA.
Cabe observar que a MP 893 essencialmente altera o nome do Coaf, criado através da Lei de Combate à Lavagem de Dinheiro (lei 9.613/1998), que passa a se chamar UIF (Unidade de Inteligência Financeira), sendo que suas atribuições e seu quadro de profissionais permanecem basicamente inalterados.
Independentemente disso, a vinculação do novo Coaf com o Ministério da Justiçacontinua robusta, à luz da existência da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro (Enccla). Instituída em 2003 sob a coordenação do Ministério da Justiça e Segurança Pública, a Enccla é formada por mais de 80 órgãos dos três Poderes, como Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, Ministérios Públicos, Polícia Federal, Banco Central, Coaf, Receita Federal e Comissão de Valores Mobiliários, entre outros.
O governo entendeu que a vinculação direta ao BC blinda o Coaf de ingerências políticas. Sem embargo, eventuais riscos de problemas oriundos de uso político do novo Coaf existem, da mesma sorte que existiam com a denominação anterior, com destaque para o fato de a credibilidade dos representantes dos poderes constituídos ser bastante baixa, corroborada pelos resultados do clamor da sociedade pelo fim da impunidade e do foro privilegiado nas eleições de 2018.
A população não aceita mais retóricas vazias de seus representantes ou procrastinação, desculpas e manobras para evitar a implementação de programas anticorrupção considerados vitais por sua maioria, como o fim do foro privilegiado e o projeto anticrime, em tramitação no Congresso. Entende os efeitos devastadores dos crimes praticados pelos corruptos, que fazem milhões de vítimas em todo o Brasil, usurpando seu direito universal à vida, ao trabalho, à educação, à segurança, ao transporte, à habitação, à alimentação e à saúde —sem falar de saneamento básico, poluição e destruição da natureza.
Somado ao acima exposto, é importante frisar que o Brasil possui uma extensa legislação sobre atividades relacionadas ao combate à corrupção e a ilícitos financeiros, como as leis 12.683/2012 e 12.846/2013, atreladas a acordos internacionais dos quais fazemos parte.
O Brasil é membro da Forca Tarefa Ação Financeira (1989) e signatário da Convenção Interamericana contra a Corrupção (1996), da Convenção Antissuborno da OCDE (1997), da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Internacional (2003) e da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção (2005). A implementação e o nível alcançado pelos signatários dessas convenções integram relatórios das mesmas e são refletidos no risco, grau de investimento e precificação de ativos do país e consequente atração ou fuga de capitais.
A questão central não está na vinculação, estrutura e atribuições do Coaf, mas sim no problema da ineficácia da aplicação dos dispositivos legais pelo órgão e por outros responsáveis pelo combate à corrupção.
Jorge W. Queiroz
Especialista em prevenção e solução de crises e combate à corrupção; autor do livro 'Corrupção, o Mal do Século' (ed. Alta Books)
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GUSTAVO LOYOLA
Transferir o Coaf do Ministério da Economia para o Banco Central é uma decisão acertada? NÃO
Pode ser uma ameaça à independência da autoridade monetária
31.ago.2019 às 2h00
Gustavo Loyola
A transferência do Coaf, renomeado UIF (Unidade de Inteligência Financeira),para a órbita do Banco Central do Brasil foi um movimento desnecessário e arriscado.
Desnecessário porque o Coaf cumpriu bem as suas funções quando subordinado ao então Ministério da Fazenda, inclusive durante o período mais crítico da Operação Lava Jato, quando poderia ter sofrido pressões indevidas derivadas de investigações sobre autoridades públicas detentoras de mandato político.
Manteve, desde a sua criação, a necessária isenção e profissionalismo, produzindo relatórios de inteligência financeira que foram essenciais ao deslinde de esquemas criminosos de variada natureza. A manutenção da isenção e da autonomia do Coaf foi assegurada principalmente pelo dispositivo legal que exigia que o órgão fosse composto apenas por funcionários públicos de carreira, cedidos por instituições como o Banco Central, a Receita Federal e a Polícia Federal, entre outros.
Arriscado porque traz para o Banco Central uma função que, embora de extrema relevância, é alheia às funções típicas de autoridade monetária. Desde a crise financeira de 2008, consolidou-se a ideia de que os bancos centrais devem ter como mandato duplo o controle da moeda e a estabilidade financeira.
Para o exercício de tal mandato, os bancos centrais devem ser independentes, embora devam, de forma transparente, satisfações de seus atos às autoridades eleitas.
Numa democracia, o grau elevado de autonomia dos bancos centrais somente é possível em razão do escopo limitado de suas funções. De fato, o mandato político dado aos bancos centrais deve ser profundo e estreito, jamais, raso e largo.
A vinda da UIF para o BC pode se tornar uma ameaça ao exercício independente das funções típicas de autoridade monetária, mesmo se lhe atribuída autonomia formal em lei. Há o risco de o BC se ver enredado em questiúnculas políticas que prejudiquem o exercício independente da política monetária.
Vale ressaltar que o fato de o sistema bancário ser o maior foco dos lavadores de ativos não implica necessariamente que a UIF deva se subordinar ao órgão supervisor dos bancos. Nessa função, cabe ao BC garantir que seus supervisionados cumpram adequadamente as normas de Prevenção à Lavagem de Dinheiro (PLD), inclusive no que diz respeito às comunicações tempestivas de operações suspeitas.
Não lhe deve caber, contudo, o papel de centralizar tais informações, processá-las e transmitir conclusões a órgãos de repressão, como Polícia Federal e Ministério Público. São instâncias que trabalham coordenadas entre si, mas de forma autônoma. Não é por outra razão que o novo arranjo institucional adotado no Brasil é raramente encontrado no mundo.
Adicionalmente, a transferência do Coaf para o âmbito do BC pode suscitar riscos de ordem administrativa para ambas as instituições. Conforme o texto da medida provisória, a UIF se subordina ao BC, mas com ele não se confunde. O ineditismo na administração pública brasileira da criação de um ente semiautônomo ligado a uma autarquia tem o potencial de gerar no futuro dificuldades relevantes para a gestão de pessoal e orçamentária do Banco Central.
Não se quer aqui dizer que a atuação da UIF subordinada ao BC esteja fadada necessariamente ao insucesso. Porém, é difícil justificar essa transferência casuística e potencialmente perigosa, no momento, aliás, em que o governo tem diante de si tarefas complexas muito mais urgentes e necessárias ao país.
Gustavo Loyola
Ex-presidente do Banco Central (1992-93, gestão Itamar Franco; e 1995-97, gestão FHC), doutor em economia pela Fundação Getulio Vargas e sócio da Tendências Consultoria Integrada