Começo, meio e saudade sem fim
Vinte e sete de agosto de dois mil e dezessete. A data do meu último dia de peregrinação. O dia de lembrar de tudo que vivi para chegar até aqui com tamanha felicidade.
Na noite anterior desse último dia, decidimos em um conselho que iríamos fazer nossa derradeira caminhada para Santiago juntos e bem cedo. Seria nossa peregrinação noturna.
Acordamos às três da manhã, em muito silêncio para não despertar os outros peregrinos do albergue. Descemos com nossas mochilas, nos reunimos na cozinha, tomamos café, comemos e conversamos bem baixo, mas com uma alegria altíssima. Estávamos todos felizes. Faltava pouco para chegar, vinte e três quilômetros que faríamos no mesmo ritmo. Nenhum passo separados, nenhum quilômetro mais a sós. Caminharíamos em grupo por cada centímetro que nos separava de Santiago.
Carlos, Sebas, Ana, Jane, David, Enrique, Lorena e também todos que não puderam fazer essa última etapa conosco, mas que em algum momento estiveram comigo com amor, carregava na minha mochila. Os abraços, as caras de dores, os risos, as palavras doces, as músicas, os choros, os cheiros, as comidas, tudo que eu havia experimentado nesses quase oitocentos quilômetros de caminhada também estava comigo nessa última jornada.
Sentia dores em todo o meu corpo. As costas não aguentavam mais as mochilas. Os pés pediam distância dos calçados. A perna avisava há dias que iria parar em breve. A mente também já me dizia que era hora de aquietarmos. A última mensagem que enviei para o meu corpo foi nessa manhã: “nenhum quilômetro a mais. Nenhum quilômetro a menos”.
A noite estava deliciosamente fria. Cruzamos bosques, pequenos povoados, subimos morros para depois descê-los com dores e saudades. Sentimos sede, paramos para reabastecer nossos cantis. Quando a fome chegou, dividimos o que tínhamos em nossas mochilas. Descansamos.
Havia uma mistura de sentimentos nessa última etapa. Vinte e três quilômetros de recordações que faziam o corpo esquecer o jeito certo de caminhar. Caminhávamos inclinados para o lado que estava a pessoa mais próxima, como se tentássemos tocá-la pela última vez em agradecimento por tudo.
Um paradoxo dar os últimos passos querendo chegar e que tudo não se acabe tão depressa. Pelo corpo é o último dia. Pela alma, são dias infinitos. Me sinto preso a essa experiência, tanto quanto um pássaro se sente limitado voando na imensidão do céu.
Quando avistamos Santiago de longe, do Monte Del Gozo, já havíamos gozado de todo o prazer da caminhada. Já havíamos chegado onde mais queríamos aparcar: na alegria de estarmos juntos dividindo nosso mais duro e verdadeiro amor. Nos abraçamos para chegar num corpo só.
Pisamos na praça da catedral juntos. Conectados a centenas de outros peregrinos. Reencontramos amigos que se juntaram ao nosso grande corpo. Choramos e celebramos por cada metro alcançado.
E a nossa chegada, que pensávamos ser o fim, foi apenas o começo do que estamos vivendo exatamente agora.