Como é difícil lidar com Autoridades

Como é difícil lidar com Autoridades

Um dos traços culturais do brasileiro mais perniciosos é a distância hierárquica: a forma como subordinados se colocam diante de autoridades.

Essa elevada distância de poder se evidencia nas organizações e em situações corriqueiras da convivência social. Brasileiros esperam eleger novos parlamentares e dirigentes para enfrentar a gestão que promete ser a mais difícil das últimas décadas, com a necessidade premente de diversas reformas. Mas como esperar que os políticos representem quem os elegeu, se basta a eles se tornarem autoridades para desfrutar de infinitos privilégios, usando de "carteirada" para burlar leis e regulamentos e, quando questionados, injuriados responderem: "você sabe com quem está falando?"

Distância hierárquica

Nos anos 1980 Geert Hofstede conduziu a mais abrangente pesquisa sobre diferenças culturais de dezenas de países. Essa pesquisa foi replicada no Brasil, país de dimensões continentais passível de manifestar diferentes culturas regionais. No geral a pesquisa brasileira de 1990 corroborou a pesquisa original de Hofstede, e as diferenças regionais, embora aparentes, não se mostraram tão incongruentes.

Para o autor, a distância hierárquica é o grau de aceitação da repartição desigual de poder pelos que têm menos poder. Em uma escala de zero a cem, a Malásia apresentou a máxima distância hierárquica; Guatemala com 95 pontos e México com 81, vêm a seguir; as monarquias árabes apresentaram 80 pontos. O Brasil apresenta 69 pontos, indicando elevada distância hierárquica. Em comparação, EUA apresentou grau 40 e demais países escandinavos e anglo-saxões revelaram distância hierárquica menor ainda.

Não é raro ouvir que "chefe nunca erra, apenas se engana", como se eles fossem oniscientes. E o mais nefasto símbolo dessa distância de poderosos surge no popular aforismo: "manda quem pode, obedece quem tem juízo". Ter juízo, no Brasil, significa ser obediente aos superiores. Então, "vestir a camisa" significa prestar lealdade aos chefes, e não à organização, muito menos à contribuição social desta. Quando a organização obtém êxito, ele é creditado à máxima autoridade: se houver "salvadores da Pátria", eles tendem a ser figuras de autoridade.

Impactos da distância de poder

A criatividade que o brasileiro em geral manifesta nas artes, na dança e na música não é congruente com a falta de inovação tão habitual nas organizações que atuam no país. Existem entraves à criatividade e inovação nas organizações, e a razão pode ser cultural. Se ter juízo é obedecer, quem tomaria a iniciativa de fazer as coisas de um modo diferente? Quem iria propor inovações, sem ter a prévia certeza de que os chefes a acolherão? Quem se tornaria intraempreendedor, propondo novos negócios à organização onde atua? A distância hierárquica não fecunda, fossiliza.

Quem desenvolverá visão estratégica, sistêmica e de negócios em um ambiente onde o chefe "só se engana", se não for convidado a participar da reflexão estratégica? Quem tomará iniciativas e será protagonista em um ambiente onde o protagonismo é reservado, como funcionários supõem, aos dirigentes e diretores? A distância hierárquica anula a força de vontade, portanto atenua o desempenho do pessoal. Em um círculo vicioso, quanto pior o desempenho da base, mais ele reforça a defasagem entre topo e base, ampliando a distância hierárquica.

Quem tomará para si o encargo de realizar experimentação nos projetos, em um ambiente onde o "chefe nunca erra, só se engana"? Não há lugar para erros em um ambiente desse matiz. Com tanto onisciência, por que razão a organização haveria de investir em pesquisa, em experimentos práticos, em testes de conceito? A distância hierárquica tende à inércia, portanto tende a cristalizar a organização, que só muda e se renova quando há substituição de pessoas.

Sobretudo, o pior impacto da distância hierárquica está em inibir o pensamento crítico e a reflexão. Se "você sabe com quem está falando", você faria críticas, mesmo que construtivas, ao que ocorre sob responsabilidade desse chefe? Se eles "nunca erram", haveria espaço para uma troca verdadeira de feedback? Sem essa retroalimentação, os chefes jamais serão promotores do desenvolvimento de seu pessoal, jamais serão líderes educadores ou líderes servidores, como as novas teses em liderança pregam.

Sem pensamento crítico, outro círculo vicioso se espalha: não faria sentido aos chefes convidarem à reflexão estratégica gente dócil e obediente, que não defenda opiniões autênticas, visando mitigar a incerteza sempre presente nas estratégias. Sem crítica, os indivíduos perdem a capacidade de interpretar o mundo ao seu redor; tornam-se alienados de si e de seu papel na organização, na comunidade e na sociedade.

A distância hierárquica faz com que os de baixo depositem todas as suas expectativas positivas na sabedoria dos que estão acima. Claro que quando erros acontecem eles só poderiam ser creditados aos que estão hierarquia abaixo. Não é à toa que se busca tanto os líderes heroicos e messiânicos, neste que nós consideramos o país do futuro, de um futuro em que outros serão protagonistas. Futuro que nunca chegará.

Mudança cultural

Se a distância hierárquica é um traço cultural do brasileiro, essa cultura é duradoura e resiliente, por isso é tão difícil de mudar. Não se pode esperar que essa mudança ocorra espontaneamente, dado que as práticas, os exemplos, e tudo o que lemos e ouvimos só faz reforçar esse traço cultural.

Mas sem a mudança, grande parte dos princípios de gestão advogados para a sociedade do conhecimento perdem efetividade. Todo esforço de mudança começa com um passivo cultural que gera fricção e atrito. Pior ainda se a mudança for coercitiva ou tecnocrática. O leitor talvez concorde que precisamos de mudança direcionada e participativa.

Os dirigentes da organização podem começar admitindo erros cometidos no passado. Nada melhor que sua própria iniciativa de desfazer mitos a eles relacionados. Podem começar a reconhecer e dar visibilidade às iniciativas tomadas em níveis inferiores, pelo protagonismo em inovar, pelas propostas de projetos estratégicos - de onde quer que venham.

Um passo importante é o de tornar contáveis os gestores, os líderes de produtos e os de processos. Quanto mais responsivos, responsáveis e engajados - que é o significado de accountability - menos eles dependerão de líderes heroicos. Para isso a educação é fundamental. Outro fator que requer educação e se coloca no mesmo estágio de mudança é desenvolver assertividade, para que as pessoas comuniquem suas opiniões, interesses e sentimentos de forma a não gerar defensividade nos líderes. A educação para o pensamento crítico é igualmente relevante, nesses tempos de ansiedade de informação e raro tempo para introspecção e reflexão. Somos demasiadamente ativos, e pouco reflexivos, nesses tempos de valorização de gestores frenéticos.

A mudança cultural não depende apenas de mudança de atitudes, elas precisam se refletir nas práticas organizacionais. Um grande legado das doutrinas da qualidade foi o de mudar as práticas na base das organizações. A qualidade em serviços e o design thinking mudam as práticas na linha de frente das organizações. O planejamento estratégico reformulado muda as práticas nos escalões superiores da organização.

Resta um enorme desafio: mudar a relação chefe-subordinado ou gestores e suas equipes. Pressionados pela exigência de desempenho, eles podem resistir a uma atuação menos pragmática e mais cuidadosa com os processos grupais, com a congruência do seu discurso, com o reforço de valores que promovem a transformação e o "fazer a diferença". Podem resistir a abdicar de seu papel de comando-e-controle tão arraigado.

Ainda há organizações que não punem aqueles que praticam assédio moral, por serem considerados high performers; ou quem despreza o lado humano, por considerar que o trabalho é apenas técnico; ou quem gera resultado a qualquer custo, desprezando o impacto futuro dessas práticas sobre o clima e os valores organizacionais.

O mais difícil será disseminar a noção de igualdade, que considera que autoridades são pessoas comuns desempenhando papéis diferenciados. Nem por isso deixam de ser pessoas comuns quando os papéis diferenciados acabam, por exemplo, na aposentadoria. Esse é o desafio existencial que brasileiros mais precisam enfrentar.

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