Senna e Desempenho no Auge da Eficiência
Obviamente, não sou piloto de Fórmula 1. Mas se tem algo que eu entendo muito bem é de eficiência.
Uma das coisas mais extraordinárias da história do automobilismo foi a disputa entre Senna e Prost nos dois anos em que eles correram juntos pela McLaren. Dois gênios do esporte, que deram a sorte ou azar de serem contemporâneos e de dividirem a mesma equipe. Nesse contexto, era de se esperar que a diferença entre eles fosse mínima. No entanto, Senna humilhava Prost em algumas pistas, em especial Mônaco, onde ele chegou a se classificar com 1,5 segundo de vantagem em relação a Prost, o que na F-1 é uma eternidade. Mas como Senna conseguia um desempenho tão espetacular?
Quando se está trabalhando no limite da capacidade humana são os detalhes que vão fazer a diferença.
A resposta está no que chamo de pequenas eficiências. Sabe aquele detalhe aparentemente insignificante e que você só percebe no fim de um trabalho? Sabe aquele probleminha cuja resolução envolveria você ter que refazer ou reestruturar um monte de coisas? Pois é. Quando se está trabalhando no limite da capacidade humana são esses pontos — ou melhor, é o conjunto deles — que vão fazer a diferença.
O domínio das técnicas fundamentais e a alta habilidade são lugar comum nesse nível. Ninguém tem medo de entrar rápido na curva. Todos sabem usar a combinação de frenagem no pedal e no freio motor. Todos sabem qual marcha usar em cada curva. Todos sabem afundar o pé na reta. Mas nem todos querem pagar o preço da perfeição dos detalhes. Pior ainda, pouquíssimos vão querer sair de um estado onde as coisas estão funcionando super bem para consertar algum detalhe não está encaixando perfeitamente. Ainda mais se a pessoa perceber que a correção desse detalhe envolve a reestruturação do modo que ela está acostumada a fazer as coisas.
A pista de Mônaco, em especial na chuva, deixava transparecer com muita clareza como Senna se preocupava com cada detalhe.
Naturalmente, o tempo e os recursos são finitos e pode-se passar uma eternidade procurando e ajustando detalhes. Contudo, se você realmente busca um quê a mais, é aí que você vai ter que procurar. Aparentemente, a pista de Mônaco, em especial na chuva, deixava transparecer com muita clareza como Senna se preocupava com cada detalhe sobre como guiar um carro de 1000 cavalos em curvas estreitas, com uma mínima margem de erro.
Muitos usam o adjetivo "obcecado" para falar de alguém que está trabalhando nesses detalhes. Eu prefiro o termo "trabalhando nos detalhes" mesmo. Não tem conotação negativa e nem parece uma coisa mística ou coisa de gente doente. Alguém trabalhando em detalhes é simplesmente uma pessoa que já chegou num nível elevado num domínio e que apresenta três características: (1) ela acha certas ineficiências irritantes; (2) ela está realmente disposta a consertá-las; e (3) ela possui a inteligência e o conhecimento para tal.
Cada uma dessas três características representa um aspecto da psique humana. A irritação é o aspecto emocional. A vontade de consertar é o aspecto conativo. Finalmente, a inteligência e o conhecimento são o aspecto cognitivo. Todas devem atuar em conjunto. Ficar irritado e não tentar e persistir em melhorar não vai adiantar muito, o mesmo acontece se faltam os requisitos de habilidade e conhecimento para tal. O resultado será apenas frustração. Assim, talvez seja possível até afirmar que em todas as instâncias que o ser humano atinge um patamar sem precedentes, ele está conjugando de forma brilhante os três aspectos da psique.
Contudo, a psique humana, ainda que esteja completamente sinérgica e integrada, depende de um fator externo importantíssimo: a presença de oportunidades.
Para um desempenho fantástico, é necessário não apenas a conjugação da psique humana trabalhando no mais alto nível sinérgico, é preciso também que as oportunidades existam e estejam ao alcance da pessoa.
Aqui cabe uma digressão. Oportunidades e Fórmula 1 têm um significado especial para mim. Devo confessar que minha primeira escolha profissional por algo que não fosse imaginário (como o esquadrão relâmpago Changeman) foi ser piloto de Fórmula 1. Porém, não demorou muito para eu perceber que ser piloto de Fórmula 1 dependia de uma série de oportunidades que só os muito privilegiados poderiam ter. E demorou alguns bons anos até que eu conseguisse achar alguma coisa que envolvesse minha psique de uma forma tão arrebatadora como imagino que a Fórmula 1 envolvia a psique do Senna, e — claro — precisava ser algo que eu realmente tivesse a oportunidade de perseguir.
Com a inclusão das oportunidades, temos uma equação mais completa para analisar gênios como o Senna. Para um desempenho fantástico, é necessário não apenas a conjugação da psique humana trabalhando no mais alto nível sinérgico, é preciso também que as oportunidades existam e estejam ao alcance da pessoa (algo que na verdade não é novidade na literatura de desenvolvimento do potencial humano; para saber mais recomendo a leitura de Subotnik et al., 2011). Mas ainda tem mais!
Outro elemento significativo e que também aparece na literatura é a vivência (e superação) de adversidades (Simonton, 2014). A adversidade pode temperar a personalidade de uma pessoa de uma forma bastante peculiar. Na dose correta, pode levar a um senso de merecimento e de propósito que seria difícil de imaginar em alguém que não passou por certa dose de adversidades. Contudo, numa dose forte demais para a psique do recipiente, ela pode levar a uma personalidade autodestrutiva e, pior ainda, a comportamentos socialmente patológicos. Assim, embora algumas pessoas possam heroicamente florescer na completa adversidade (ver Seligman, 2012), parece haver uma dose "ótima" de adversidade que robustece a psique em vez de destruí-la. A experiência com essa adversidade “ótima” parece ser importante para o desenvolvimento da tenacidade saudável, ou pelo menos na fronteira do saudável. Não sei dizer exatamente a natureza das adversidades que Senna experienciou antes da sua carreira na Fórmula 1, mas aquela tenacidade vinha de algum lugar...
Dessa forma, temos três elementos importantes até agora: a integração da psique em torno ode um objetivo; a presença de oportunidades; e a adversidade como constituinte de uma personalidade forte. Será que dá para juntar isso tudo num modelo?
Dá sim. Em um artigo para o Journal of Genius and Eminence, eu propus um modelo para o desenvolvimento da polimatia (expertises em múltiplos domínios) que é tão poderoso que pode ser aplicado também ao desenvolvimento de uma genialidade que não é polimática (como no caso de Senna). Em ambos os casos, o desenvolvimento de altas habilidades está fortemente ligado ao senso de identidade da pessoa e a como ela enxerga seu caminho de desenvolvimento pessoal, ou melhor, seu projeto de vida. Se por um lado, a pessoa polimática vai buscar um caminho onde ela desenvolverá tanto a abrangência quanto a profundidade e também a integração do seu conhecimento (o caminho polímata; Araki, 2018), por outro lado, a pessoa especialista focará mais na profundidade em um único domínio (pelo menos até mudar sua meta de vida ou entrar numa crise existencial, o que é extremamente comum com super especialistas, principalmente os que começam muito cedo uma carreira).
Todavia, como vimos, ambos os caminhos que levam à genialidade têm como antecedentes uma forte sinergia entre os três elementos da psique e uma boa dose de oportunidades e adversidades numa zona de enfrentamento ótimo (ver também flow; Csikszentmihalyi, 2014). Na figura abaixo está o Modelo Desenvolvimental da Polimatia, que divide o caminho em três etapas: os antecedentes, os mediadores e as realizações.
Figura 1. O Modelo Desenvolvimental da Polimatia.
Embora os elementos internos no modelo difiram entre pessoas que buscam realizações polimáticas e pessoas que buscam desempenho genial em um único domínio, como o Senna, certos “segredos” do processo psicológico acabam sendo desenvolvidos por ambos tipos psicológicos. O primeiro desses segredos eu falei bem no início: a busca contínua por pequenas eficiências. O segundo está na otimização da experiência do flow.
O flow, ou fluxo, se refere a uma experiência em que a atividade que a pessoa está desempenhando é desafiadora o suficiente para superar o tédio, mas cuja dificuldade não é tão avassaladora a ponto de só gerar ansiedade (Csikszentmihalyi; 2000). A capacidade de melhorarmos nossas habilidades a cada momento que entramos num processo contínuo de prática deliberada é a base da teoria do stint (Araki, forthcoming). Curiosamente, a teoria do stint foi inspirada na Fórmula 1. O stint é o período em que um piloto é capaz de ficar na pista sem precisar ser interrompido para ir aos boxes. A teoria diz que a prática deliberada — na Fórmula 1, assim como na vida — ocorre em stints. O stint só termina quando você é interrompido por algum evento (ou por uma necessidade fisiológica!). A maioria das pessoas odeia ser interrompido no meio de um stint, pois, assim como um carro de Fórmula 1, nós demoramos até atingir um nível ótimo de funcionamento; i.e., entrar no fluxo.
Figura 2. O estado de fluxo.
Além do nível ótimo de desafio e da adequação à capacidade da pessoa, o estado de fluxo também demora um pouco para acontecer. Isso é análogo a um carro de Fórmula 1, que precisa aquecer os pneus até atingir um nível ótimo de funcionamento.
O último segredo, a capacidade de integração, foi mencionado de forma rápida na discussão sobre os três elementos da psique humana. Mas esse elemento é tão importante que merece uma discussão mais aprofundada. Segundo estudiosos da criatividade, a integração é a capacidade de articular, combinar e integrar diferentes aspectos, modos de agir e matrizes de pensamento, e ela pode ocorrer em vários níveis. O primeiro nível de integração se refere ao nível ideacional. Significa combinar e integrar diferentes ideias, métodos e conhecimentos (ver também mathemata; Araki, 2015; 2018), em especial de diferentes campos, enxergando conexões latentes onde a maioria não vê. O segundo nível de integração se refere ao nível da personalidade. Segundo Root-Bernstein (2004; 2009), as pessoas mais surpreendentes de uma área conseguem não apenas combinar ideias, mas sim desenvolver uma rede de diferentes empreendimentos pessoais (ver network of enterprises; Gruber, 1988), que podem envolver múltiplos domínios, mas que são integrados holisticamente num todo psicológico. Isto é, a pessoa não desempenha uma coleção de atividades avulsas, e sim várias dessas atividades alimentam um todo psicológico que é mais forte do que a soma das partes em separado. Por fim, existe ainda um terceiro nível de integração chamado de meta-integração. Ela está relacionada à melhoria da própria capacidade pessoal de integração. Isto é, por meio de introspecção, criticidade, reflexão profunda e proposicionalista, a pessoa consegue perceber como melhor integrar suas ideias, suas tarefas e suas aspectos cognitivos conflitantes. Para alguns, essa última busca é análoga — senão indistinguível — de uma jornada espiritual.
Para encerrar o artigo, voltemos ao grande e saudoso Ayrton Senna. Embora ele talvez tivesse sido o maior exemplo de uma pessoa que vivia para uma única atividade, a Fórmula 1, ele trouxe alguns aspectos novos para o esporte. O mais premente foi a questão da preparação física. Ele sabia que para ele elevar a pilotagem para um outro nível, ele teria que ser mais teimoso do que um carro impulsionado por mil cavalos a 300 km/h. E fazer isso por duas horas seguidas exige um preparo físico tremendo. Outro aspecto memorável também foi a sua personalidade marcante. Veja esse trecho de uma entrevista com Paddy Lowe, diretor técnico da Williams:
“Eu estava na Williams nessa época e ele [Senna] era o cara que tentávamos superar. Conseguimos em 1992, mas parecia impossível nos anos anteriores. Ele era implacável, tinha diversas táticas para intimidar os rivais, mas era assim que o jogo funcionava na época. Outro dia eu estava conversando com o Riccardo Patrese sobre isso. Naquela época, os pilotos não eram punidos por bloquear os rivais na classificação então você tinha que ir nos boxes do cara e intimidá-lo para que ele não lhe atrapalhasse mais. Era assim no passado. Agora você pode confiar na ‘polícia’ para multar o cara, caso ele faça isso. Era um mundo completamente diferente e Ayrton jogava o jogo como podia naquela época”.
Figura 3. Senna “conversando” com o jovem Schumacher depois de uma colisão.
Para atingir aquele nível de desempenho, ele teve que atacar um sem número de pequenos probleminhas, um de cada vez, um stint por vez. Um momento inusitado na carreira dele, quando ele estava insatisfeito com a Fórmula 1 e chegou a fazer testes numa equipe de Fórmula Indy, nos oferece uma oportunidade única para enxergar como Senna atacava um problema novo. Embora houvesse semelhanças entre um Fórmula Indy e um Fórmula 1, também havia muitas diferenças, em especial quando se está pilotando no estado da arte.
Figura 4. Anotações de Senna quando ele testou o carro de Fórmula Indy da Penske em dezembro de 1992.
A figura 4 é a segunda página da folha de anotações que ele fez no dia desse teste! É possível ver os tempos que o Senna marcou em cada volta, assim como os seus comentários. É interessante notar que algumas voltas são bastante “lentas” e de repente ele faz uma série de voltas rápidas. Seus comentários fazem bastante comparações com um Fórmula 1, e ele cita coisas boas e ruins do carro. Mas dá para perceber que ele estava bastante concentrado em como melhorar seu desempenho nas curvas. Por exemplo, a anotação (U/S) na volta 45 se refere a understeer; isto é, quando o carro sai de frente. Era um probleminha irritante que aparentemente foi resolvido a partir daquela volta. E o que é melhor: a anotação da volta seguinte (46) mostra ele formulando uma aprendizagem (mathema) sobre aquela situação: “é preciso inclinar mais o carro de traseira, assim ele gira mais”. É até difícil interpretar a frase, pois ela só faria completo sentido na mente do próprio Senna. Aliás, essa singularidade e incapacidade de reprodução perfeita fazem parte da natureza do mathema. Por mais que Senna tentasse explicar para alguém como ele fazia uma curva, seria muito difícil para o interlocutor realmente entender a mensagem por completo, uma vez que ele não teria o mesmo conjunto de experiências e de outros mathemas (aprendizagens) que eram únicos ao Senna. Aparentemente, o modo como ele resolveu — ainda que provisoriamente — aqueles problemas surtiu um bom efeito: até onde eu pude pesquisar, o tempo de 49 segundos seria um tempo competitivo naquele circuito. Nada mal para um “principiante”. Depois do teste ele deu esse depoimento:
"Eu não dirijo um carro de corrida há um mês e meio, e o carro da Indy é muito mais pesado. Os pedais foram ajustados para o Emerson e o assento foi montado para Rick Mears, e o volante estava muito mais perto do meu corpo, mas eu gostei. Parte de ser um piloto de corrida é ser adaptável.”
Por fim, uma pergunta: o que vocês acham que teria acontecido se ele tivesse decidido partir para a Fórmula Indy? Todos sabemos que ele teria que enfrentar uma série de obstáculos novos e superar um sem número de detalhes que ele ainda precisava melhorar bastante. Será que a capacidade dele de resolver ineficiências irritantes e transformá-las em trunfos únicos e especiais poderiam ser transferidas para a Fórmula Indy? Será que ele teria a conação, emoção e cognição para ser o melhor também nessa categoria?
Encerro com um interessante vídeo sobre a técnica do Senna de frenagem e aceleração:
#altaperformance #genialidade #desempenho #senna
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Referências
Araki, M. E. (2015). Polymathic Leadership: Theoretical Foundation and Construct Development (Masters Thesis, PUC-Rio).
Araki, M. E. (2018, in press). Polymathy: A New Outlook. Journal of Genius and Eminence, 3(1), 58-74.
Araki, M. E. (forthcoming). Stint Theory: What is behind the sophistication of mathemata.
Csikszentmihalyi, M. (2000). Beyond boredom and anxiety. Jossey-Bass.
Csikszentmihalyi, M. (2014). Toward a psychology of optimal experience. In Flow and the foundations of positive psychology (pp. 209-226). Springer Netherlands.
Gruber, H. E. (1988) Networks of enterprise in creative scientific work. In B. Gholson, A. Houts, R. A. Neimayer, & W. Shadis (Eds.), Psychology of science and metascience. Cambridge, England: Cambridge University Press.
Root-Bernstein, R., & Root-Bernstein, M. (2004). Artistic scientists and scientific artists: The link between polymathy and creativity. Creativity: From potential to realization, 127-151.
Root-Bernstein, R. (2009). Multiple giftedness in adults: The case of polymaths. In International Handbook on Giftedness (pp. 853-870). Springer, Dordrecht.
Seligman, M. E. (2012). Flourish: A visionary new understanding of happiness and well-being. Simon and Schuster.
Simonton, D. K. (2014). Diversifying experiences in the development of genius and their impact on creative cognition.
Subotnik, R. F., Olszewski-Kubilius, P., & Worrell, F. C. (2011). Rethinking giftedness and gifted education: A proposed direction forward based on psychological science. Psychological science in the public interest, 12(1), 3-54.
Gerente Financeira na Soul Malls | Fundadora do Atelier do Sorriso
6 aExcelente colocação Michael Araki!
Gestor
6 aMuito boa reflexão. O Senna como referência foi ótimo e deu muito valor ao texto.
Ótimo texto!