Contratação Pública – É a burocracia boa conselheira?

Contratação Pública – É a burocracia boa conselheira?

 

A burocracia. O que se entende genericamente por “burocracia” é algo difuso, que pode variar entre algo parecido com “sistema administrativo baseado na organização em serviços e na divisão de tarefas, que privilegia as funções hierárquicas de maneira a dispor de uma grande quantidade de trabalho de uma forma rotineira” e “influência abusiva da administração, impedindo o prosseguimento de uma ação com procedimentos oficiais desnecessários”. De forma recorrente, é neste segundo sentido que a palavra é usada quando se ouve falar em burocracia na televisão ou em debate sobre o funcionamento da Administração Pública.

Para que serve a burocracia? Neste ponto não há como evitar recorrer ao que sobre o tema escreveu o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920): “a burocracia constitui a maneira mais eficiente e racional de organização da atividade humana em processos sistemáticos e hierarquias organizadas, por forma a manter a ordem, maximizar a eficiência e eliminar o favoritismo”. Por outro lado, Max weber abordou o “outro lado da moeda” quando deu nota de que “burocracia irrestrita pode assumir uma forma de ameaça à liberdade individual, com o potencial de enredar os indivíduos no que designou como uma " gaiola de ferro" impessoal, contruída em torno de um controle racional baseado num sistema de regras que bloqueiam qualquer iniciativa e toldam a ação”.  (fonte: Weber, Max "Bureaucracy" in Weber's Rationalism and Modern Society,).

Feito um enquadramento sumário da ideia de burocracia, passemos à contratação pública, o que é e para que serve?

O que é a contratação pública? A contratação pública consiste numa arquitetura jurídica de regras de direito administrativo que visam disciplinar, regular, enquadrar, as compras públicas feitas por entidades adjudicantes públicas (Estado, Autarquias, Institutos Públicos, outras entidades com financiamento público, etc. Ver artigo 2.º do CCP). Numa perspetiva académica, a contratação pública define-se como sendo um conjunto ordenado de atos e formalidades tendentes à celebração de um contrato público. Este conjunto ordenado de atos assume a designação de “procedimento pré-contratual” e percorre várias etapas, do lançamento do procedimento pela entidade adjudicante, até à adjudicação do contrato ao adjudicatário.

Para que serve? As regras da contratação pública, que como acima constam do Código dos Contratos Públicos -CPP-, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, e respetiva legislação complementar, que sucedeu aos anteriores regimes jurídicos para contratação de empreitadas – RJEOP - (DL 59/99 de 2 de março) e para contratação de bens e serviços (DL 197/99 de 8 de junho). O CCP resulta da transposição da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, tendo por ideia geral, “para além do objetivo de alinhamento com as mais recentes diretivas comunitárias, a cuja transposição aqui se procede, o CCP procede ainda a uma nova sistematização e a uma uniformização de regimes substantivos dos contratos administrativos atomizados até agora” (preambulo do diploma).

Então, temos que, o CCP transpôs o direito Comunitário para um diploma interno, sendo que, dos 84º artigos da Diretiva (e 12 anexos) o legislador português transformou esse regime em 473º artigos (e 6 anexos). Esta profusão de artigos (quase mais 400 do que o texto da Diretiva), mereceu na altura, por volta de 2010, um interessante reparo feito pelo Prof. Valadares Tavares na sua aula de jubilado no IST, onde disse algo do género (se a memória não me falha, pedindo desde já desculpa pela possível imprecisão) que o Código dos Contratos Inglês eram duas folhas de papel, ao passo que o português era um “tijolo pesado”.

Ora, o que distingue o CCP português da Diretiva Europeia?

No fundamental, o nosso CCP é mais burocrático. Muito mais burocrático.

Um exemplo, na Diretiva 18CE só existem três limiares: 162.000 euros, genericamente, para os contratos públicos de fornecimento e de serviços que sejam autoridades governamentais centrais; 249 000 euros, genericamente, para os contratos públicos de fornecimento e de serviços celebrados por outras entidades adjudicantes e 6.242.000 euros, para os contratos de empreitada de obras públicas. Já no nosso CCP, conseguimos estabelecer um total de treze (13) limiares diferentes (vide artigos 19º -empreitadas-, 20º -aquisição de bens e serviços, 21º - outros contratos-, e 128.º regime simplificado).

Outro exemplo, na Diretiva 18CE, o legislador preocupou-se com a inclusão de uma norma sobre “Contratos de serviços adjudicados com base num direito exclusivo”, determinado que, nesses casos, a diretiva não é aplicável aos contratos públicos (vide artigo 18.º), deixado à jurisprudência o preenchimento dos requisitos e pressupostos para a aplicabilidade da norma (aliás, numa já longa serie de Acórdãos do TJUE vide Ac. 10.4.2003 – Processos Apensos C-20/01 e C-28/01). Já no nosso CCP, optou-se por criar um “complexo” normativo de exclusões com dez artigos (artigo 23.º e seguintes), alguns com sete n.ºs e várias alíneas, onde se pretendeu amalgamar um conjunto de realidades híbridas que conduzirão, eventualmente, à não aplicação dos limiares do Código. Pergunta-se, deste modo evita-se a necessidade de construir jurisprudência interpretativa, dispensando os tribunais de serem chamados a preencher os conceitos da Lei? Nem por isso, o STA, o Tribunal de Contas, as Relações, têm sido bastas vezes chamados a pronunciarem-se sobre o correto entendimento dos pressupostos para aplicação dos “critérios materiais” (vide Ac. STA n.º 011/11 de 21-06-2011, ou Ac. TC n.º 11/2020 de 18/02/2020).

Claro que, a somar a estas “complexidades”, o Legislador Português foi pululando o CCP com normas enxertadas ao longo das várias revisões do código e que foram ajudando na criação de caminhos tortuosos para descobrir o verdadeiro “querer” do legislador sobre determinada situação ou previsão legal. Por exemplo: “Pode adotar-se o concurso público ou o concurso limitado por prévia qualificação, sem publicação do respetivo anúncio no Jornal Oficial da União Europeia, nos casos em que pode ser adotado o ajuste direto ao abrigo do disposto nos artigos anteriores do presente capítulo, com exceção daqueles em que só seja possível convidar uma entidade e do caso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo anterior” (artigo 28.º do CCP), o esforço interpretativo para retirar o sentido desta norma, que surge na sequência da regulação da aplicabilidade dos “critérios materiais”, convínhamos, não será condizente com a aplicação da norma de forma informada pelas 3.091 freguesias portuguesas, das quais 2.882 freguesias no Continente, 155 na Região Autónoma dos Açores e 54 na Região Autónoma da Madeira.

Note-se, porém, que o Legislador Português entabulou um caminho mais complexo do que aquele encetado pelo Legislador Comunitário. É que, para além de regular a fase pré-contratual, pretendeu ainda, regular uma miríade de outros aspetos conexos (com maior ou menor importância), tais como, declarações a apresentar pelo adjudicatário (incluindo registo em base de dados anticorrupção), apresentação de documentos de habilitação – incluindo a quantidade, o formato, o prazo e até, a sua força probatória (Artigo 83.º-A, introduzido pela Lei n.º 30/2021, de 21/05). Para além de dispor sobre as garantias administrativas (artigo 267.º e seguintes), onde se cria um novo caminho critico para dirimir a conflitualidade à margem do Código de Procedimento Administrativo (não se sobrepõem pois o CPA, desde 2015, que dispõe “A formação dos contratos cujo objeto abranja prestações que estejam, ou sejam suscetíveis de estar, submetidas à concorrência de mercado, encontra-se sujeita ao regime estabelecido no Código dos Contratos Públicos ou em lei especial.” – artigo 201º do CPA).

E podia ser bastante. Mas o Legislador quis ainda regular o “regime substantivo dos contratos administrativos” (artigos 278º a 343º do CCP) e, indo por aí adiante, encetou uma viagem regulatória que começa na “permissão” aos contraentes públicos de, para exercerem a sua atividade (prosseguindo os fins para que foram criados), podem celebrar quaisquer contratos administrativos, salvo se outra coisa resultar da lei ou da natureza das relações a estabelecer – Muito útil, perguntando-se, caso assim não fosse, como dita a norma escrita (art. 278.º CCP), como seria?

Passando pela regulação da invalidade do contrato (elencando os casos de nulidade e anulabilidade dos contratos), preocupando-se o legislador em estabelecer a distinção entre contratos com objeto passível de ato administrativo (vide n.ºs 1 e 2 do artigo 285.º do CCP) e outros contratos sobre o exercício de poderes públicos (é aplicável o regime de invalidade previsto para o ato administrativo), ou, por outro lado, aos demais contratos públicos, onde se aplicará o regime de invalidade do CCP e o previsto na legislação administrativa. Significativo.

Passando ainda pelas regras para a “execução do contrato”, onde o legislador entendeu ser importante positivar numa norma que: “O contrato constitui, para o contraente público e para o cocontratante, situações subjetivas ativas e passivas que devem ser exercidas e cumpridas de boa-fé e em conformidade com os ditames do interesse público, nos termos da lei”. Se duvidas existissem, cá está o artigo 286º do CCP para esclarecer. Mas o legislador avança ainda mais para a previsão expressa de que o contrato para ser eficaz depende de um conjunto de atos previstos na lei, bem como, de “atos integrativos de eficácia exigidos por lei” (n.º 1 do artigo 287º). Esclarecido.

Existe ainda uma norma (n.º 2 do artigo 287º CCP) sobre a possibilidade da eficácia retroativa dos contratos (mediante o interesse público) com limites de cumprimento da lei (…), de proteção de interesses legalmente protegidos de 3.ºs e não impeça, restrinja ou falseie a concorrência. Sucede que, a este propósito, o Tribunal de Contas, entende que, “não podem ser consagrados efeitos retroativos em violação, designadamente do regime legal de cabimento e compromisso orçamentais e de fundos disponíveis e em violação das regras da concorrência”. Basicamente, o TdC fechou a porta aos efeitos retroativos – é possível na letra da lei, só que não… (Vide TdC Ac. 24/2020 de 16/06/2020).

Outra norma “educacional” encontra-se vertida no artigo 289º CCP, onde se estipula que “As partes estão vinculadas pelo dever de colaboração mútua, designadamente no tocante à prestação recíproca de informações necessárias à boa execução do contrato”. Dir-se-ia que o legislador, neste ponto, se terá envolvido num clima propedêutico regulatório, imaginando que os agentes da contratação pública se iriam determinar, no seu comportamento, pela bonomia legal. Qual é a sanção para o incumprimento? Qual o alcance da norma?

Uma vertente muito cara ao sistema regulatório administrativo português é a preocupação com o alcance dos poderes dos agentes públicos – sempre em sobreposição dos conhecidos Princípios da Legalidade e da Proporcionalidade com os seus corolários extensamente desenvolvidos pela doutrina, da adequação, da necessidade, de da proporcionalidade em sentido estrito -, deste modo, o CCP oferece ao aplicador um cardápio (do artigo 308º ao 310º do CCP), onde se pretende regular os poderes de dirigir, fiscalizar e modificar unilateralmente o contrato. Mas atenção! Por alguma razão insondável, mas certamente bem fundamentada, “O regime da fiscalização da execução dos projetos de investigação e desenvolvimento é objeto de regulamentação própria” (artigo 306º do CCP).

Oferecem maior impacto prático as disposições que impõem o recurso a ação administrativa para a interpretação e validade do contrato ou sobre a sua execução (artigo 307.º do CCP), porém, retiram da aferição jurisdicional as importantes matérias relacionadas com ordens, diretivas ou instruções no exercício dos poderes de direção e de fiscalização; bem como, modificação unilateral das cláusulas por razões de interesse público; aplicação de sanções; Resolução unilateral do contrato; e cessão da posição contratual. Ou ainda, a formação dos atos administrativos emitidos no exercício dos poderes do contraente público não está sujeita ao regime da marcha do procedimento estabelecido pelo Código do Procedimento Administrativo, exceto, na aplicação de sanções contratuais através de ato administrativo, que está sujeita a audiência prévia – o que se compreende dada a possível consequência para o particular (artigo 308.º do CCP). Ainda, o legislador configurou os atos administrativos do contraente público relativos à execução do contrato como título executivo, muito embora, não possam ser coercivamente impostos aos particulares – Na linha do “novo” CPA, onde desapareceu, como regra, o poder de autotutela executiva da Administração Pública, pois apenas haverá lugar à execução coerciva dos atos administrativos pela Administração em casos muito excecionais (artigo 176.º do novo CPA).

Existem ainda normas sobre as modificações objetivas do contrato (artigos 311º e seguintes), sendo que, a este propósito, a Lei n.º 30/2021, de 21 de Maio introduziu uma flexibilização importante para os entes públicos, na medida em que, o contrato pode prever que, “em caso de incumprimento, pelo cocontratante, das suas obrigações, que reúna os pressupostos para a resolução do contrato, o cocontratante ceda a sua posição contratual ao concorrente do procedimento pré-contratual na sequência do qual foi celebrado o contrato em execução, que venha a ser indicado pelo contraente público, pela ordem sequencial daquele procedimento”.

Finalmente, o normativo do CCP ainda se debruça sobre o Incumprimento do contrato (artigos 325º e seguintes), extinção do contrato em geral (artigos 330º e seguintes), contratos interadministrativos (artigo 338º), ou ainda, execução e modificação de parcerias público-privadas (artigos 339º a 342º).

E, neste ponto, se ficássemos por aqui seria já um Código com um normativo avolumado e quatro vezes superior ao normativo da Diretiva 18CE (note-se que a Diretiva 2014/24/UE que lhe sucedeu já tem mais 10 artigos num total de 94º artigos). Porém o legislador, num afã regulatório relativo à fase de execução dos contratos, entendeu ainda incluir normativos sobre os contratos administrativos em especial, onde disciplina a execução de contratos de empreitadas obras públicas (artigos 343º e seg.); Concessões de obras públicas e de serviços públicos (artigo 407º e seg.); Concessão de serviços públicos (artigo 429º e seg.); Locação de bens móveis (artigo 431.º e seg.); Aquisição de bens móveis artigo 437º e seg.); Aquisição de serviços (artigo 450º e seg.)

De todo este complexo normativo relativo aos contratos administrativos em especial, parecem resultar duas constatações. Em primeiro lugar, a substituição dos regimes individuais para empreitadas e para bens e serviços por um uniformizado para todos os tipos de contratos, em nada veio beneficiar a regulação desses contratos ou a diminuição de litigância. Em segundo lugar, foram desarticulados regimes anteriores que, segundo os agentes do mercado, funcionavam.

Particularmente no campo das empreitadas de obras publicas, tal como na altura assinalou a AECOPS e a Ordem dos Engenheiros, o CCP deitou fora um complexo normativo bem oleado e conhecido por todos os agentes da construção constante do Decreto-Lei n.º 59/99 de 2 de março (RJEOP), sem com isso estabilizar soluções legais robustas e duradoras.

A este propósito, veja-se o caso do artigo 370º dedicado originalmente a “trabalhos a mais” com um limite máximo de 40% (versão original), para 5% do preço contratual, podendo chegar a 50% se somados com erros e omissões (versão DL n.º 223 e n.º 278 de 2009), para passarem a “trabalhos complementares” com um limite de 10% para os “não previstos” e um limite de 40% para os decorrentes de “circunstâncias imprevisíveis” (versão DL n.º 111-B/2017), para finalmente (até à data) estabilizar na impossibilidade de executar “trabalhos a mais”, sendo que o valor dos trabalhos complementares não pode exceder, de forma acumulada, 50% do preço contratual inicial (versão Lei n.º 30/2021).

Confundidos? Será curial admitir que sim…

Concluindo,

Será a burocracia boa conselheira na Contratação Pública? A melhor resposta é “depende”.

De acordo com o brocardo “Ut sementem feceris, ita metes” (cícero), cada um colhe o que planta, querendo com isto significar que a burocracia tem indubitavelmente o seu papel, na forma desejavelmente estruturada e respeitadora da legalidade que deve presidir aos comportamentos da administração na sua relação com os privados.

Porém,

Se no afã regulatório decorrente da crónica desconfiança que desde tempos imemoriais tem presidido aos atos legislativos, impendendo sobre as administrações bem como sobre os particulares um complexo normativo híper-regulatório, onde ao mesmo tempo de procura reduzir a discricionariedade ao mínimo, mas por outro lado, se torna impossível alcançar metas, cumprir prazos, executar projetos em tempo útil, no fundo fazer o “progresso acontecer”. Nesse caso, a burocracia entra no campo da distopia, onde as regras em excesso, em elevado grau de complexidade, com alterações constantes e muitas vezes contraditórias, passam a ser parte do problema e não parte da solução para o País.

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