Coringa C'est moi!

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Depois de assistir o imperdível Coringa, hoje deu vontade de escrever textão:

Coringa C’est moi!

Escrevo esse texto ainda impactado com umas das melhores atuações que vi nos últimos anos, Joaquin Phoenix está simplesmente arrebatador no filme “Coringa”, de Todd Phillipis. Além da atuação magnífica, a fotografia impecável, trilha sonora ajustadíssima e, principalmente, o roteiro, fizeram com que mergulhasse na mente psicopática do Coringa. Foi um mergulho de apneia, sim, precisei tomar fôlego algumas vezes para voltar a observar de perto o doentio mundo de Arthur Fleck.

A celeuma causada pela estreia do filme é mais perturbador do que o próprio. Precisamos ser muito rasos e simplistas para acreditar que um filmão desse é um potencial incentivador de atos criminosos, como se todos fossemos gizmos, aqueles bichinhos fofos que ao serem atingidos por gotas de água se transformavam nos diabólicos gremmlins. Parece que estamos perdendo a capacidade de compreender metáforas, analogias, ironias…Olhar o filme Coringa como produtor de violência é como acusar a faca pela mão do assassino.

Uma obra de arte de qualidade, como aquelas chanceladas pelo tempo, dialoga com as nossas profundezas mais sombrias, ela não fomenta a escuridão ela tenta clareá-la. Os maiores assassinos da história nunca jogaram Mortal Kombat (sim, sou dessa geração) ou GTA, nunca viram Rambo, Kill Bill ou Apocalypse Now, do Coppolla. Muitos dos psicopatas que passaram pelo mundo aniquilando seus semelhantes se deliciavam com belas óperas, liam poesia sem uma gota de sangue nos seus versos e alguns até adoravam animais e a natureza.

Ou seja, aquele que relaciona um filme, um livro, uma pintura, uma música como nascimento do mal não entende que o mal já faz parte da natureza humana e a pergunta a ser feitá é como podemos transformar essa mal, essa sombra, em luz. E aqui está o grande paradoxo da nossa existência, é somente através de uma visão do inferno é que podemos entender o paraíso.

É evidente que o Coringa de Todd Phillipps não é um filme para crianças, sua classificação está em 16 anos. Acreditar que jovens e adultos sofreram uma incorporação do mal ao assistir ao filme é risível, no máximo alguns podem odiar, sair no meio da sessão, paciência, isso acontece também nos filmes de Godard. Ou somos indivíduos independentes, caminhando para a maturidade, ou somos crianças que precisamos ser tutelados por indivíduos e grupos autoritários que acham que sabem mais do que nós mesmos do que precisamos.

A violência existe, ela é real, cruel, mas suas causas são muito mais complexas do que um simples apontar de dedo. Se alguém foi ao cinema e depois cometeu um ato violento posso garantir a vocês que não foi o filme o causador principal, caso partíssemos dessa premissa deveríamos proibir tudo! Matou depois de almoçar feijoada, acusem a feijoada! Bateu depois de ouvir funk, acusem o funk! Somos muito mais complicados do que isso.

O coringa na carta de baralho pode assumir o valor de outras cartas, no futebol ele também pode assumir a posição de outros jogadores, isso quer dizer, o coringa representa várias facetas de um mesmo indivíduo. No filme ele representa aquela parte da nossa natureza que gostaríamos de enterrar e calar para sempre, mas que sempre renasce em situações cotidianas de stress social, emocional e que muitas vezes nos aterroriza, como podemos sentir isso dentro da gente? Filmes, peças teatrais, romances literários... são umas das ferramentas para esse tão essencial autoconhecimento e com isso a tentativa de sublimação da violência destrutiva em construções sociais e afetivas significativas.

E por que esse título desse artigo é Coringa c’est moi? Porque no século XIX o autor do clássico universal Madame Bovary, Gustave Flaubert, foi acusado juntamente com o seu editor de ofensa à religião e aos bons costumes da sociedade francesa, isso porque sua personagem Emna Bovary era uma mulher independente, inconformada com a sua vida de casada e colecionando amantes, um escândalo para a época. Todos queriam saber do Flaubert em quem ele havia se inspirado para construir a Emma Bovary, ela existia de verdade? Flaubert então respondeu, Emma Bovary c’est moi! Emma Bovary sou eu! O autor foi absolvido, o livro depois da polêmica vendeu como pão quente saído da padaria, assim como o filme Coringa, que terá sessões lotadas e será absolvido pela maioria de seus espectadores que entenderão consciente ou inconscientemente que a violência é um mal a ser combatido primeiramente dentro de cada um.



Rafael Trovão

Creative and Design Manager | Developing Creative Visions

5 a

Texto maravilhoso! Só um detalhe de nerd chato: o Gizmo que comentou não se transforma em gremlin com água, isso só acontece se ele comer depois da meia-noite. A água faz com que se multipliquem, o que continua validando sua metáfora. Me perdoe, mas precisava fazer este comentário. 😉

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