Coronavírus, a crise para a qual ninguém se preparou
Modelos de negócios que já agonizam, inevitavelmente, deixarão de existir
Apesar de repetitivo, toda reflexão neste momento, inevitavelmente, começa pelos avanços da Covid-19. É uma pandemia. A única certeza é que, pela primeira vez na história, o mundo todo está no escuro.
Não foram necessárias ogivas nucleares, mísseis de longo alcance ou qualquer exército. Não foram as queimadas, o derretimento das geleiras ou a emissão de CO2. A maior ameaça à vida humana pode ser um inimigo praticamente invisível aos olhos, mas desproporcionalmente perigoso: um vírus, que em poucos meses colocou todas as nações de joelhos, que está derretendo o mercado financeiro e transformando potências globais em epicentros de contágio.
O mundo se preparou para guerras, para a conquista do espaço, mas não para enfrentar uma pandemia.
Hoje, duas verdades são incontestáveis: haverá um grande número de vítimas fatais e um colapso econômico global, cuja gravidade está condicionada ao período de isolamento necessário para a redução da curva de contágio. Pura e simples progressão geométrica: quanto maior a razão, maior é o resultado exponencial, ou quanto maior o contato entre as pessoas, mais rápida é a transmissão do vírus. Apesar de simples, é uma evidência científica. Qualquer teoria que contradiga isso não passa de mentira.
No entanto, temos observado nos últimos dias um número crescente de ‘gurus do capitalismo’ elaborando teses econômicas pelo Instagram, dizendo que uma quarentena irá gerar uma onda de quebra em pequenas empresas e, também, desemprego em massa. É uma constatação óbvia para quem tem mais de 14 anos e se informa minimamente. É uma preocupação de extrema importância... desde que os riscos à população não sejam minimizados, ou que os grupos de pessoas com maior risco de vida sejam qualificados como categorias inferiores.
Começam, então, a surgir teorias estapafúrdias – dignas de quem fez doutorado em Economia acessando meia dúzia de canais no YouTube – e que começam a ganhar coro em grupos de WhatsApp e nas timelines das redes sociais. A primeira delas é a urgência na criação de um Plano Marshall para salvar a economia do país. A segunda é uma comparação entre os dados da Secretaria de Segurança Pública e do Ministério da Saúde.
A teoria do Plano Marshall ganha força em grupos com visão econômica liberal, que pregam um estado mínimo e maior liberdade de mercado. Particularmente, sou um liberal. Mas, acreditar que economia se baseia apenas em números é um erro grotesco. Economia é contexto. O Plano Marshall foi uma estratégia criada – logo após a II Guerra Mundial – pelo secretário de Estado norte-americano George Marshall durante o governo de Harry Truman para financiar, em primeiro momento, a reconstrução de países europeus devastados pelos ataques das tropas da Alemanha nazista. Mais do que um plano de ajuda humanitária, era uma estratégia para conter o avanço do bloco soviético na Europa Ocidental. Funcionou, obviamente, por uma questão econômica, mas também geográfica, afinal de contas, os Estados Unidos, embora tenham integrado e se tornado o principal fornecedor de equipamentos bélicos e de bens de primeira necessidade às Forças Aliadas, não teve o seu território invadido. Na contramão dos demais países, sua economia estava em crescimento, com industrialização e avanço tecnológico acelerados. Definitivamente, não é o caso do Brasil neste momento, que deverá realocar suas receitas para retardar ao máximo o colapso do sistema de saúde. A implementação de um Plano Marshall tupiniquim seria exatamente a espera de um milagre liberal vindo do Estado. No mínimo, contraditório.
Análise estatística e cruzamento de informações servem para fundamentação técnica, não para endossar idiotice.
Agora, a comparação entre as mortes causadas pela Covid-19 com os dados de homicídios da Secretaria de Segurança Pública vai além da ignorância. Relativização de dois problemas distintos como se tivessem correlações diretas é total demonstração de desprezo pela vida humana. O Brasil está submerso há décadas em um problema estrutural, que se agrava ano após ano, que é a violência, os homicídios. Não se trata apenas de uma questão de segurança pública. É um círculo vicioso, que tem origem em um cerne social, que é a falta de investimento em educação, em políticas de saneamento básico entre outros pilares. Porém, pretos, pardos e pobres que morrem nas periferias, nas favelas não afetam o mercado e o consumo. No máximo, quando não estão envolvidos com a criminalidade, abrem um novo posto de trabalho de balconista em alguma hamburgueria gourmet, numa rede varejista cafona, ou de empregada doméstica na casa de algum ‘pensador’ que vive vomitando frases prontas sobre empatia. Em termos práticos, velhos, pessoas com problemas cardiovasculares ou respiratórios passam a ser os novos excluídos da sociedade, de acordo com a linha de ‘raciocínio’ de alguns desses gurus.
Análise estatística e cruzamento de informações servem para fundamentação técnica, não para endossar idiotice. Se esse raciocínio tacanho fosse aplicado, por exemplo, a crimes cometidos contra mulheres, poderíamos dizer que, estatisticamente, feminicídio é um problema de violência praticamente irrelevante. Mas, isso faria com que alguns desses mesmos ‘pensadores’ perdessem seguidores nas redes sociais.
Há anos, estamos submetidos a um bombardeio de conteúdo irrelevante, mas que fomos absorvendo sem qualquer resistência, até acharmos que são verdades absolutas.
Apesar dos profundos transtornos e impactos que nos serão causados, podemos encarar essa situação como um período de intenso aprendizado, de reavaliação sobre convicções. Toda convicção não passa de mera teimosia. Repensar convicções é estar disposto a receber conhecimento. É levantar-se sobre os escombros e tentar encontrar uma nova alternativa. Insistir é morrer agarrado a entulho achando que ferro retorcido ainda tem algum valor.
Infelizmente, há anos, estamos submetidos a um bombardeio de conteúdo irrelevante, mas que fomos absorvendo sem qualquer resistência, até acharmos que são verdades absolutas.
Passamos a enxergar convenções sociais como ciência e vimos surgir teorias como o ‘terraplanismo’ entre tantas outras. Passamos a achar normal que o insulto seja a única forma de diálogo. Passamos a achar normal um governante deturpar o princípio da prudência, chamando protocolo técnico de histeria. Passamos a achar normal que, em um momento que exige diálogo e entendimento, um governante ataque outros poderes. Passamos a achar normal que uma família ataque a honra pessoal de profissionais da imprensa meramente por reportar fatos que lhe contradiga. Passamos a achar normal o mesmo fanatismo político que antes era chamado de doença. Passamos a achar normais os indícios de corrupção contra os quais fomos tão combativos pouquíssimo tempo atrás. Enfim, passamos a achar normal que a mentira é a nova verdade. Mais do que achar normal, passamos a endossar tudo isso.
Quando passarmos a considerar a escolha entre vidas e a economia, falharemos profundamente enquanto seres humanos.
Essa pandemia irá passar e trará transformações profundas. Não será um período fácil. Podemos estar próximos de uma nova transição de era, como foi a Revolução Francesa, que marcou o fim da Idade Média e o Início da Idade Contemporânea.
As relações humanas serão repensadas. Inclusive as relações da população com seus governos, com os serviços públicos, com o mercado de trabalho, com o sistema financeiro, com a cadeia de consumo, com marcas e com empresas. Modelos de negócios que já agonizam, inevitavelmente, deixarão de existir por mostrarem-se obsoletos e serão substituídos por outros, mais simples, baratos e, certamente, mais eficientes. Fortunas trocarão de mãos. Haverá uma mudança profunda no status quo e a humanidade, de um jeito ou de outro, mesmo com dificuldade, seguirá caminhando em uma nova realidade.
Product Designer
4 aParabéns pelo trabalho Leandro! Muito esclarecedor!!!
Especialista em Comunicação Corporativa | Data driven PR
4 aMuito boa a sua análise!