Coronavirus, Criatividade e Tecnologia: a dureza da insignificância humana
Tecnologia é o nome do jogo que a Humanidade arrumou com a Natureza, meio que para confrontá-la. Mas engana-se quem pensa que é um jogo justo. A Natureza é bastante generosa, meio como aquele pai que vai jogar bola com o filho pequeno e o deixa ganhar, não antes de fazer uma encenação vistosa de derrota. Mas não nos iludamos: não somos nós quem mandamos. E, de vez em quando, a mãe Natureza toma a bola, passa entre nossas pernas, e nos humilha com um sorriso no rosto, onde se vê escrito: "quem manda aqui sou eu" e saimos do parquinho com a dúvida atroz se tudo antes não passou de benevolência disfarçada.
Só assim consigo explicar o porquê conseguimos enviar uma nave espacial para fora do nosso sistema solar e ainda somos assolados por um vírus da gripe. Ou, como diz um amigo meu, conseguimos enxergar planetas há anos-luz de distância e somos incapazes de fazer um exame de colonoscopia que não cause tanto desconforto na preparação. Tipo, mandar uma câmera para Júpiter é moleza, mas para o meu intestino tem que ser esse sofrimento?
Pois acredito que é a Natureza dizendo que a gente pode brincar no parquinho à vontade. Mas ainda somos seu filhinho frágil. Que o digam nossos outros irmãos Homo: dos doze até hoje conhecidos, do mais velho Habilis, ao caçula Floresiensis, mamãe natureza foi eliminando um por um, quando cansou de brincar com eles. E olha que estamos longe, umas dez vezes mais longe de alcançar, em tempo de vivência, o mais longevo deles, o Erectus. E nenhum trabalhou tão fortemente contra a sua própria espécie, criando coisas como o cigarro, a bomba atômica e os produtos alimentícios cancerígenos. Sem falar nas torcidas organizadas!
Sim, portanto, buana tecnologia nos salvou, até o momento. Mas fico ainda sem entender essa discrepância nos nossos avanços na medicina. Não há como negar os progressos, partindo pela curva de longevidade média, que deu um salto no século passado, mas vem ganhando anos após anos. Doenças como o câncer são cada vez mais desvendadas, engenharia genética já é capaz de tirar um pedaço do DNA que nos causaria um mal ainda antes de sermos um embrião, equipamentos são capazes de escanear quase que a alma (exceto o intestino).
Uma parte de mim vai mesmo para as teorias da conspiração, as que culpam a indústria farmacêutica de boa parte dos males. Não nos faltam exemplos de falta de sensibilidade quando das doenças em países pobres, quando doações, ou preços bem menores, seriam capazes de salvar milhões e, decerto, não causariam prejuízos nas ações. Qual o sentido de se investir bilhões de dólares em doenças que atingem apenas uma pequena parte da população, enquanto aquelas que matam milhões, há anos, continuam serelepes por aí? Porque aqueles que morrem em milhões não pagam a margem de lucro exorbitante que ela deseja.
Mas como sou um romântico, custo a crer que os donos dessa indústria se sentam para debater como, todos juntos, podem ser ainda mais cruéis na próxima temporada. Assim, acredito que há empresas e pesquisadores que, sincera e arduamente trabalham para descobrir como não nos deixar morrer de gripe, sarampo, dengue. Mas, então, por que ainda morremos disso? Quase extinto leitor e leitura, não tenho a mínima. Mas posso desconfiar: ainda continuamos frágeis e a natureza é mais forte do que nós. Vírus, bactérias, micróbios são simplesmente seres que batalham pelo mesmo meio-ambiente, e também desenvolvem uma espécie de tecnologia, só que orgânica: criam mutações, adaptações, mudam seus comportamentos. É que nem nós, não lhe parece, quando entramos em novos empregos? Pois é, na realidade, a microbiologia, em escala minúscula, representa o que há de mais extasiante na Natureza, da qual fazemos parte: a criatividade.
Aliás, isso serve também para que a gente desça do salto quanto ao quesito alegoria. Sim, somos criativos, mas não é uma qualidade monopolizada por nós. Daí, na real, o que temos é um embate na modalidade criatividade. Numa espécie de festival da natureza, onde o prêmio é continuar pulsando, temos ganhado bastante, mas não todas. A história é um pouco triste quando lembramos que parte dessa criatividade vai contra nós mesmos, como se, ao invés de trabalharmos como equipe na Exposição Mundial de Seres Orgânicos do Terceiro Planeta, nosso stand é uma espécie encontro de grupos de WhatsApp, mostrando o quanto somos piores em comparação com a gente mesmo. Enquanto isso, a turma dos micróbios fica rindo da gente: "tadinhos, tão novos e tão ingênuos".
Veja bem: a China construiu um hospital em dez dias. Os meios de comunicação e a telemedicina são um avanço tecnológico inegável. Mas o que fizemos com isso? Um prédio com doentes do coronavirus internados na mesma China desaba e mata dezenas de pessoas, provavelmente porque alguém não fez um cálculo direito. Ao invés de discutirmos como adaptar gadgets no celular para exames, a conversa fica estagnada no corporativismo da profissão ou algo como não perder dinheiro... Ao invés de colocarmos nossa fragilidade na mesa, até nesse momento de crise mostramos nosso fetiche pela desigualdade: no momento que escrevo, já são mais de 200 casos no nosso país e, felizmente, nenhuma morte até o ponto final desse texto. Em 2019, mais de 750 pessoas morreram por dengue no Brasil que, por sinal, foi o maior número em 21 anos, mostrando que estamos tomando uma surra! Apenas até junho de 2019, mais de 300 pessoas haviam morrido de gripe no ano brasileiro. Há quem diga que foram mais de mil no ano passado, número que, mesmo contaminado pela crise atual, se dado um desconto já seria grande. E, será o Benedito, depois de 20 anos temos uma morte por sarampo!
E por que apenas agora o país ameaça parar? Talvez se tivéssemos parado antes, nas outras crises, essa estaria sendo menos traumática, talvez estivéssemos mais preparados, da infraestrutura ao psicológico. Ou apenas abusamos tanto da benevolência da nossa mãe natureza local que precisamos da mãe Natureza mundial tentar nos colocar frente à nossa insignificância. Mas, daí, não há romantismo que aguente: estou certo de que, após passada a goleada, vamos voltar ao nosso parquinho exuberante para continuarmos nossas grandes derrotas locais cotidianas.
Cofundadora da Shefa USA, Mestre em Educação e Inovações Sociais, Publicitária, Pós Psicanálise e Especialista em Empreendedorismo Consciente. Autora do Livro Empreenda em Si: o propósito de uma vida mais signficativa.
4 aAinda continuamos frágeis e a natureza é mais forte do que nós!