A criança que sabia ler
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A criança que sabia ler

Era uma vez uma criança que gostava de ler. Todos os dias algum adulto por aí se assustava ao encontrá-la, um raro exemplar de precoce amante do livro. “Você está lendo um livro?!” em tom de descrença como quem vê uma aparição - hoje em dia as pessoas crescidas andam um pouco assustadiças, é verdade. Mas não é culpa delas que achem estranho. Quase toda criança também acha fora do normal quando os adultos não querem brincar. Cada qual com sua estranheza, o motivo disso tudo é, na verdade, muito simples: por que gostar de ler, hoje, é tão anormal?

Infelizmente a criança do “era uma vez” deve ser chamada de exceção - as notícias não são animadoras. Segundo pesquisas realizadas desde 2007 (Instituto Pró-Livro), a taxa de livros lidos por crianças e adolescentes vem caindo aceleradamente: em 2007, crianças entre 5 e 10 anos liam em média 6,9 livros, já em 2015 esse número baixou para 5,4. Desde 2012 as pesquisas trazidas pelo Instituto Pró-Livro vêm levantando reportagens em diversas redes, todas voltadas para a questão “o que fazer para que as crianças leiam mais?”. O que pouco se vê são as demais informações averiguadas no Instituto, que revelam uma queda ainda mais brutal entre jovens, jovens-adultos e adultos, cujos hábitos de leitura às vezes são inexistentes. 

Em 2018, outra pesquisa divulgada trazia a alarmante taxa de 2,43 livros lidos em média por brasileiros, uma média para todas as idades e todos os gêneros. Embora ler dois livros em um ano pareça algo bom (aos nossos olhos acostumados com essa luz do analfabetismo funcional), na verdade é um índice muito baixo, se compararmos ao outro dado trazido na mesma pesquisa: 30% da população nunca comprou um livro. 

Por que ler é bom?

A mágica da leitura na infância é exatamente essa, “a história [do livro] foi escrita por gente. Embora lá dentro estejam animais, ou qualquer outros personagens, esses personagens são descritos com características humanas. A medida que a criança lê a história, ela enxerga nesses personagens uma mensagem de humanidade, dos dilemas da vida.” explica o professor doutor em educação Rovilson da Silva. Nós podemos retirar do livro um aprendizado que, mesmo sem compreender, ficará guardado em nossa mente, assim como os valores de nossos pais: valores morais e humanos. 

Como exemplo, da Silva cita o clássico Branca de Neve, popularizado desde a década de 30, quando seu primeiro filme foi lançado em formato infanto-juvenil. Desde o começo do conto, Branca de Neve enfrenta muitas dificuldades. A história seria complexa demais para a mente de uma criança, mas o simples fato da personagem lidar com suas dificuldades sem perder sua essência, pode gerar em quem assiste a empatia e o assimilar da lição: ela deve sempre ser boa e gentil. 

Muitos contos e fábulas infantis trazem essas mesmas histórias contadas e recontadas, trágicas e cheias de enredos intrincados. Por esse motivo, muitos adultos até hoje lembram-se dessas histórias com afeto e até com certo respeito, sem debochar de seu formato infantil ou de sua narrativa fácil. Por esse motivo, também, filmes de animação ganham cada vez mais espaço no gosto do público jovem-adulto, deixando de lado seu teor infantil. As pessoas conseguem enxergar, agora, a história que era contada e que antes apenas vislumbravam. 

Tecnologia antiga

A leitura está dentro do descobrimento do mundo e do indivíduo. É claro que colocar um filme na TV soa mais fácil e cômodo para quem assiste e para quem precisa colocar uma criança sentada pacientemente no sofá, mas essa não é a única questão que coloca o livro em um patamar um pouquinho mais elevado. 

É dádiva da leitura (e quase exclusivamente dela) estimular a criatividade a uma altura que outros recursos não conseguem. Para que a história ganhe vida e o leitor se sinta imerso, ele precisa primeiro imaginar os personagens, os cenários e até mesmo dar um tom de voz mais grave ou uma risada mais debochada para cada tipo de situação apresentada.

Outro ponto inquestionável na leitura é o ganho da capacidade de memorização, já que se precisa guardar tantos nomes de personagens, tantos lugares diferentes e tantas coisas que acontecem quase ao mesmo tempo…! É como guardar dentro da mente toda uma outra realidade, munida de vida própria e de muita criatividade. 

Os livros também carregam um grande arsenal de palavras novas. Mas, diferentemente de dicionários, eles não têm aquelas linhas entediantes que ligam uma palavra difícil a dezenas de outras palavras difíceis. Na verdade, as palavras parecem ter vida própria quando são apresentadas ao leitor e, mesmo que não a conheça, ele pode deduzir ou até capturar seu significado no ar, em seu devido contexto e encaixe. Nada melhor e mais empírico para o aprendizado.

Boas notícias

De acordo com o mesmo Instituto Pró-Livro, que publica a revista “Retratos da Leitura no Brasil”, embora o desejado não tenha sido alcançado, é fato que o número de leitores aumentou entre as faixas da infância e adolescência. É suposto que um aliado dessa crescente revitalizante seja - o inimigo número um dos pais - a internet. Seria de se pensar que os meios eletrônicos afastariam ainda mais as crianças dos livros, mas com a possibilidade estendida de e-books (livros eletrônicos) e da própria divulgação de editoras em redes sociais, agora o acesso aos livros está ainda mais perto dos leitores, que podem encomendar on-line e receber no portão de casa uma semana depois.

Embora o Instituto mostre que poucos brasileiros receberam incentivo na infância para criar o hábito da leitura, esses mesmos adultos, hoje, tomaram a consciência de que precisam fazer a sua parte, assim como disse o professor Rovilson da Silva. Não é apenas culpa da criança que ela nunca tenha pego um livro ou visto um livro dentro de sua casa. Também não é culpa dos pais que não exista biblioteca especializadas para esse público, e não é culpa das escolas que esses livros não cheguem às prateleiras. A responsabilidade dividida é o grande male da história. Como fazer com que todos façam sua parte e, enfim, se veja uma criança lendo e nenhum espantado por aí?

Embora os números sejam preocupantes no país, Londrina conta com diversos projetos de incentivo à leitura e pode ser considerada uma cidade ativamente leitora, com criação de novas pequenas editoras e a promoção de saraus ao longo do ano (Sarau da Editora Madrepérola, Projeto de Extensão de Escrita Criativa da Universidade Estadual de Londrina, Clube do Livro, etc). Para todos os efeitos, é de aquecer o coração passar no Terminal Urbano de Londrina e ver alguém segurando um livro, tão concentrado que mal levanta a cabeça para olhar os passantes. As práticas da leitura não morreram, mas têm sido reavivadas como brasa de forno, através das novas tecnologias e dos e-books, logo se cheira a imaginação no ar. 

O que fazer agora?

Apenas o hábito pode "quebrar" a barreira do não gosto ou do não é divertido. Forçar alguém a gostar de ler também não é saudável. No entanto, agora que a quarentena está diminuindo os espaços em que crianças e pais podem desfrutar seu tempo livre, que tal pegar aquele livro de fábulas que estava na prateleira, ou aproveitar as promoções on-line dos sites de venda? Sentar-se com uma criança, abrir o livro e mostrar a ela o prazer da leitura é, e sempre será, a melhor forma de aguçar a sua curiosidade para o ler.

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fotos: Pixabay e Creative Commons Zero

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