Cuidado com o Paciente
Erros de medicação, infecções hospitalares, quedas, falhas de comunicação, custos elevados. Só com melhores processos de qualidade e segurança será possível diminuir esses problemas.
No fim da década de 1990, falhas nos cuidados em serviços de saúde despontaram na mídia e levaram governos e instituições privadas da área a se preocuparem mais com a segurança do paciente. As publicações To err is human , lançada pelo Institute of Medicine em 1999, e Reducing error, improving safety , divulgada em 2000 pelo British Medical Journal , revelaram estatísticas assustadoras que surpreenderam e indignaram diferentes atores do setor e da sociedade. De acordo com essas fontes, um em cada dez pacientes internados em hospitais sofre eventos adversos – como queda, administração incorreta de medicamentos, infecções e mau uso dos equipamentos médicos –, muitos deles passíveis de prevenção. No Brasil, anualmente, 1.140.000 pacientes são vítimas de problemas como os citados, segundo o site Proqualis.
SEGURANÇA DO PACIENTE
O fenômeno constitui, hoje, uma das preocupações mais relevantes na área de saúde do mundo, sendo a terceira causa de morte, por exemplo, na Grã-Bretanha, depois de câncer e doenças cardiovasculares, segundo o Sunday Times. Para enfrentar essa realidade, a Organização Mundial da Saúde (OMS) desenvolveu uma taxonomia para classificar os eventos adversos, de forma a estimar sua magnitude nos diferentes países e acompanhar sua evolução, aos moldes do que é feito com as demais doenças.
A OMS também lançou seis Metas Internacionais de Segurança do Paciente. São elas:
1) Identificar os pacientes corretamente;
2) Melhorar a eficiência da comunicação entre os profissionais envolvidos na assistência;
3) Melhorar a segurança de medicações de alta vigilância;
4) Assegurar cirurgias com procedimentos corretos, em locais de intervenção adequados e nos pacientes certos;
5) Reduzir o risco de infecções;
6) Diminuir a probabilidade de lesões aos pacientes decorrentes de quedas.
Ou seja, profissionais e serviços de saúde por vezes não identificam os pacientes adequadamente; não se comunicam como o necessário; não garantem a precisão no uso de medicações; realizam cirurgias de tipos, em locais ou, ainda, em pacientes errados; aumentam o risco de infecções; e deixam os pacientes sob sua responsabilidade caírem. São altos os custos relacionados a esses incidentes. Não somente por causa de ações judiciais, mas também por conta de tratamentos e diárias extras gerados, sem contar os prejuízos de difícil mensuração. Pacientes podem ter dor, deficiências físicas, traumas psicológicos ou falhas de tratamento decorrentes de eventos adversos. Há ainda consequências para os profissionais de saúde envolvidos, considerados “as segundas vítimas”. A maior parte das falhas não é proposital, decorre de problemas sistêmicos. No entanto, tais profissionais são muitas vezes demitidos ou ficam estigmatizados. Há, até mesmo, casos de suicídio, dada a exposição na mídia.
Poucos sistemas e organizações de saúde têm sido capazes de posicionar os usuários no centro de suas atividades, levando em conta suas expectativas.
O reconhecimento da existência dessa problemática favorece ações para combatê-la. Uma das estratégias para aumentar a segurança do cuidado é notificar os incidentes e introduzir melhorias nos processos de trabalho que permitam evitar sua recorrência. Iniciativas como essa podem ter efeito, sobretudo, se o ambiente favorecer o relato dos eventos e não estimular a punição.
A notificação de eventos adversos é uma das medidas do Programa Nacional de Segurança do Paciente, lançado em 2013 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e pelo Ministério da Saúde no Brasil – o Centro de Estudos em Planejamento e Gestão de Saúde da FGV EAESP (GVsaúde) integra o Comitê de Implantação. Todos os serviços de saúde devem ter Núcleos de Segurança do Paciente e desenvolver Planos de Segurança do Paciente. De acordo com o Notivisa, sistema que registra e monitora as ocorrências, há, hoje, 2.493 Núcleos de Segurança do Paciente cadastrados (sendo 446 em Minas Gerais e 371 em São Paulo), com 127.268 incidentes notificados (53% no Sudeste). Conhecer os números nacionais, regionais e estaduais permitirá sensibilizar de forma crescente os diferentes atores da saúde no Brasil.
É o primeiro passo rumo a uma ação mais estruturada em torno do cuidado seguro, o que envolve estratégias multifacetadas. Para a European Society for Quality in Healthcare, o desenvolvimento da cultura da segurança exige um “padrão integrado do comportamento individual e organizacional, baseado no compartilhamento de valores e crenças que continuadamente procuram minimizar o dano ao paciente”. Seria, assim, parte integrante da cultura organizacional como um todo.
QUALIDADE EM SAÚDE
Para reduzir os incidentes e eventos adversos relacionados ao cuidado, é preciso melhorar a qualidade da atenção de forma global. Além da segurança do paciente, a qualidade envolve ainda efetividade, eficiência e equidade do cuidado, além de foco no paciente e atenção prestada no momento certo.
Não há como aperfeiçoar os processos que geram incidentes sem analisá-los ou redesenhá-los. Qualquer mudança na área de saúde é complexa. A relação e interação dos serviços e profissionais com os clientes são distintas das do consumidor de outros serviços ou produtos, como bem apontado pelo médico libanês Avedis Donabedian, considerado o pai da qualidade no setor. O cuidado depende, em muito, dos profissionais de saúde, do trabalho em equipe bem realizado, da valorização da perspectiva do usuário, entre outros fatores.
Para aumentar a capacidade de resolução dos problemas relacionados à falta de qualidade em serviços de saúde ao redor do mundo, Donald Berwick, um dos maiores gurus da qualidade em saúde, em trabalho realizado com sua equipe do Institute for Healthcare Improvement (IHI), propôs um modelo denominado Triple Aim. Seus pilares são: saúde populacional (ações com base nos riscos de determinado grupo), custo per capita (reduzir os gastos por pessoa) e experiência do cuidado (configurar o sistema para o destinatário dos cuidados). Posteriormente, os pesquisadores Rishi Sikka, Julianne Morath e Lucian Leape introduziram um quarto elemento: significado do trabalho para os profissionais da saúde, que consiste em manter os trabalhadores engajados e produtivos, formando, assim, o Quadruple Aim.
AVALIAÇÃO EXTERNA
Qualidade em saúde surgiu a partir da reforma do Estado, com a necessidade de mais eficiência no uso dos recursos. Tornou-se prática frequente em diferentes países a criação de formas de monitorar o bom uso dos meios disponíveis nos serviços prestados. Com isso, cresceram a valorização e a consequente internacionalização de modelos de avaliação externa, como é o caso da acreditação de serviços de saúde. Para Ellie Scrivens, que foi uma das maiores especialistas em acreditação, os sistemas de avaliação externa verificam o cumprimento de um conjunto de padrões de qualidade da assistência, atualizados periodicamente.
Essa forma de avaliação chegou ao Brasil entre o fim dos anos 1990 e a primeira década deste século. A acreditação é voluntária no Brasil e de obrigatoriedade crescente em diferentes países. Dada a baixa adesão espontânea, por conta do alto custo e do trabalho para cumprir com as frequentes avaliações, sua expansão avança lentamente, com apenas cerca de 5% dos hospitais brasileiros acreditados, entre públicos e privados.
Apesar de suas limitações, a acreditação tem tido papel importante na melhoria da garantia da qualidade dos serviços no Brasil. Um hospital acreditado segue padrões que o auxiliam a priorizar algumas ações e a focar seus processos nos pacientes.
Os manuais de acreditação incorporam padrões de qualidade relacionados, por exemplo, a segurança do paciente. Exigem modelo de gerenciamento do risco, sistemas seguros de gestão de medicamentos, processos para prevenção de quedas, políticas de promoção da cultura de segurança. Mas o que muda efetivamente a qualidade é a organização desenvolver ciclos de melhoria a partir das falhas detectadas.
EXPERIÊNCIA DO PACIENTE
A gestão da qualidade coloca a preocupação com o cliente em sua definição e como foco de suas ações. Apesar disso, poucos sistemas e organizações de saúde têm sido capazes de posicionar os usuários no centro de suas atividades, levando em conta sistematicamente suas expectativas.
Para reverter esse panorama, tem sido reforçada a ideia da “experiência do paciente”, inspirada em tendências do marketing. Um modelo centrado no paciente pressupõe a humanização do cuidado, a avaliação da satisfação do usuário e sua participação na tomada de decisão clínica. Para o Instituto Beryl, a experiência do paciente corresponde à “soma de todas as interações que influenciam as percepções do paciente ao longo do cuidado, moldadas pela cultura organizacional”.
O que importa, de fato, é o usuário assumir papel central no seu próprio cuidado e interferir efetivamente na melhoria dos sistemas de saúde. Para tanto, será preciso que os profissionais de saúde reajustem suas práticas, compatibilizando-as com a presença crescente e desejável dos usuários no cotidiano das organizações de saúde.
COMO FAZER DIFERENTE?
O ambiente da saúde é marcado pela coexistência de diferentes sistemas, processos organizacionais complexos, riscos relacionados ao cuidado e novas tecnologias, exigência crescente por mais qualidade e transparência das informações. Difícil entender por que, apesar de termos diagnosticado os problemas e de conhecermos, hoje, as boas práticas garantidoras de cuidado mais seguro, o panorama na maioria das instituições de saúde não se transforma. Se sabemos o que fazer, por que não o fazemos?
Os aperfeiçoamentos em andamento avançam tímida e heterogeneamente mundo afora. Ao que parece, precisamos identificar maneiras mais simples e eficazes para alcançar melhorias. Ao mesmo tempo, devemos compatibilizar as estratégias de mudança com a cultura dos atores da saúde. A única verdadeira inovação será envolver efetivamente usuários e familiares na busca por fazer melhor. O caminho é longo...
Fonte: Revista GVEXECUTIVO • V 16 • N 4 • JUL/AGO 2017 Por Laura Schiesari
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