Cuidado com os Placebos Culturais

Cuidado com os Placebos Culturais


O principal risco da abordagem rápida e superficial sobre as coisas é a certeza sem lastro.


À primeira vista, tudo faz muito sentido. Tem lógica, tem eco, tem indícios.

Esse sequestro do pensamento crítico e sistêmico para algo utilitário disponível tem sido um dos maiores desafios dos tempos atuais. Onde quase tudo se apresenta pasteurizado, fabricado, artificial.


Isso também tem ocorrido nas discussões sobre cultura organizacional.

A pressão por entregas rápidas em contextos complexos quase sempre favorece soluções inócuas. Não tem sido diferente no caso de abordagens espúrias sobre um fenômeno tão delicado. O lugar comum aqui é confundir causa e consequência ou favorecer o específico em detrimento do integrado.


Em particular, a reflexão sobre valores é um dos territórios mais pantanosos em conversas sobre cultura organizacional. Há uma confusão generalizada sobre o que se compreende por valores que precisa ser eliminada em prol de uma intervenção assertiva na cultura organizacional.


O tripé princípios, crenças e atributos sempre está no meio dessa opacidade teórica.

Antes de diferenciá-los, é importante ressaltar que refletir sobre valores é refletir sobre humanidade, uma vez que valores humanos são direcionadores motivacionais que incentivam a convivência grupal em torno de atividades. É algo intrínseco ao humano.


A Teoria dos Valores Humanos Básicos, por exemplo, desenvolvida por Shalom Schwartz, elenca dez valores humanos universais, conforme abaixo:

Auto-direção: pensamento e ação independentes, criação escolhas e exploração.

Estimulação: excitação, novidade e desafio na vida.

Hedonismo: prazer ou gratificação sensual para si mesmo.

Realização: sucesso pessoal através da demonstração de competência de acordo com os padrões sociais.

Poder: status social e prestígio, controle ou domínio sobre pessoas e recursos.

Segurança: segurança, harmonia e estabilidade da sociedade, dos relacionamentos e do eu.

Conformidade: restrição de ações, inclinações e impulsos que possam perturbar ou prejudicar outras pessoas e violar expectativas ou normas sociais.

Tradição: respeito, compromisso e aceitação dos costumes e ideias que a cultura ou religião de alguém proporciona.

Benevolência: preservar e melhorar o bem-estar daqueles com quem se está em contato pessoal frequente (o 'em grupo').

Universalismo: compreensão, apreciação, tolerância e proteção para o bem-estar de todas as pessoas e da natureza.


Entretanto, a identificação desses valores universais nos indivídios que compõem uma organização social não é capaz de sustentar um diagnóstico sobre a cultura vigente. É válido argumentar apenas que há alguma relação entre os dois parâmetros, mas muito distante em ser algo determinístico.


A reflexão sobre cultura organizacional relaciona-se com valores pessoais, certamente. Mas sua expressão, na verdade, está intrinsecamente relacionada com princípios, crenças e atributos.

Cultura organizacional é a combinação de mapa mental coletivo, normas grupais e vínculos sociais. E tudo isso se relaciona com princípios, crenças e atributos culturais.


Os princípios norteadores são os bastiões de qualquer cultura organizacional. Referem-se à própria carta magna da organização, expressando a essência mais genuína sobre a distinção que existe em qualquer grupo social. Tais princípios são consolidados desde os primórdios de qualquer empreendimento pelos fundadores e líderes dominantes. Referem-se às ideias basais acordadas tacitamente pelo grupo pioneiro, tornando-se o próprio DNA da organização ao longo do tempo.


Já as crenças cristalizadas são construídas organicamente pela vivência prática do grupo social ao longo do tempo. São resultantes dos aprendizados diversos relacionados aos sucessos e fracassos compartilhados pelos indivíduos. São reminiscências da memória coletiva acerca de marcos na trajetória empresarial que, quando cristalizadas, influenciam o pensamento e modelam a ação.


Finalmente, os atributos culturais referem-se aos comportamentos e processos observáveis na dinâmica organizacional - tanto os funcionais, como os disfuncionais. São derivados dos princípios norteadores e das crenças cristalizadas. São tangíveis no cotidiano das pessoas convivendo na organização.


É fato que a cultura organizacional se desenvolve por meio das relações entre valores pessoais, princípios norteadores, crenças cristalizadas e atributos culturais.

Já uma intervenção cultural concentra-se notadamente nos atributos e nas crenças, a partir da compreensão sobre a dinâmica dos principios norteadores compartilhados e sobre os principais valores pessoais das lideranças dominantes na organização.


Acreditar que é possível transformar valores pessoais e princípios norteadores parece-me algo muito frágil do ponto de vista da jornada de transformação organizacional.

Afinal, pessoas não mudam seus valores da noite para o dia.


A agenda de transformação cultural deve se concentrar no descongelamento das crenças cristalizadas, deslocando os tabus, os filtros perceptuais, os dogmas, as referências, estimulando um ambiente de aprendizagem para algo novo.

A agenda de transformação cultural deve se concentrar também na modelagem dos atributos culturais - leia-se processos e comportamentos coletivos - para otimizar a funcionalidade em detrimento da disfuncionalidade.


É viável conduzir essa jornada com pessoas já veteranas na organização. Também é interessante assumir que novas pessoas precisam ser atraídas para o contexto.

Mas sem placebos.


___________________________


Daniel Augusto Motta é Managing Partner da House of Brains e Sócio-Fundador da BMI Blue Management Institute. Doutor em Economia pela USP, Mestre em Economia pela FGV-EAESP e Bacharel em Economia pela USP. É Alumni OPM Harvard Business School. Possui Especialização em Gestão pelo MIT Sloan School of Management, Singularity University e Center for Creative Leadership. Atua também como Managing Partner da corporate venture capital WhiteFox sediada em San Francisco (EUA), e como Membro do Conselho de Administração da Bossa.etc, Afferolab e Wisnet. Atuou como Diretor de Planejamento Estratégico da UNIBES. É Membro do Conselho Deliberativo do MASP. Atua como Professor de Estratégia Corporativo no IBGC. Foi Membro-Fundador da Sociedade Brasileira de Finanças. Foi Professor nos MBAs da Fundação Dom Cabral, Insper, FGV, ESPM e PUC-SP. É autor de diversos artigos publicados por Valor Econômico, EXAME e Folha de São Paulo, e também tem três artigos publicados pela Harvard Business Review Brasil. É autor dos livros A Liderança Essencial, Anthesis, Data Insights e Coleções de Ideias.

Simone Passini Grossmann

CHRO | Head of HR | C-Level | Executive Committee Member | People & Culture | Change Management | Leadership | Diversity & Inclusion | Advisory Board Member

4 m

Muito verdadeiro Daniel Motta. Corre-se o risco de extrema superficialidade e soluções de prateleira para tema tão complexo. A correria, agendas lotadas e falta de foco que hoje executivos e equipes passam no seu dia a dia fazem com que falte profundidade e experiência necessária para processos amplos de transformação cultural.

Vinicio Chechetto

Filosofia, pela FAI. Psicologia, pela São Marcos Mestrado em Desenvolvimento Organizacional | Universidade de São Paulo

4 m

"A pressão por entregas rápidas em contextos complexos quase sempre favorece soluções inócuas. Não tem sido diferente no caso de abordagens espúrias sobre um fenômeno tão delicado. O lugar comum aqui é confundir causa e consequência ou favorecer o específico em detrimento do integrado". Daniel, temos constatado isto de modo crescente em tantas organizações. Seu artigo é uma chama e um chamado para irmos além de panaceias.

Gustavo Caldas Brito

Chief Learning Officer Afferolab

4 m

Muito pertinente e necessária a reflexão.

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