Cuidar do professor da Escola Pública

Cuidar do professor da Escola Pública



Não convém fomentar teorias da conspiração, porque inventamos coisas, inclusive conspirações. A tentação de que a escola serve a um “projeto” (como está na citação de Darcy Ribeiro, acima) é mais que natural, dado o tamanho do impropério: a escola pública funciona, em geral, tão mal, que parece algo premeditado, feito para não funcionar. Grande parte dos estudantes perde seu tempo na escola, porque nada aproveita das aulas aí ministradas, também porque só há essas “aulas” e delas o professor cuida como se fosse seu tesouro. É ouro de tolo. Os dados são abusivamente enfáticos, mesmo em sua abusiva precariedade técnica, teórica, ideológica e prática, em sugerir que o compromisso com a aprendizagem dos estudantes é o que menos se encontra. Mas aula temos todo dia. Não se trata de castigar a aula como se fosse o bode expiatório. Bode expiatório, se existir, é o aluno: é o idiota da estória. As famílias continuam acreditando na escola e por isso cuidam que seus filhos a frequentem, na expectativa, cada vez mais hipócrita, de que dela precisam para melhorar de vida. São tantos os problemas, desilusões, incongruências, insucessos que não sabemos onde começar, na certeza de que, querendo consertar tudo, não iremos a lugar nenhum. Por isso, precisamos escolher onde começar, para podermos avançar passo a passo, dentro de algum consenso, o que é outro desafio tão difícil quanto consertar a escola. Se é difícil entender a escola, não é menos difícil entender os educadores, os professores, os pesquisadores, os formuladores de política (BID. 2018). Por conta da politicidade da educação, as ambiguidades, dissensos, estranhamentos são naturais e, ao fim, necessários, para não imaginarmos que temos um projeto infalível, uma receita. 

Ainda creio que um bom lugar para começar é o professor, mesmo que hoje alguns não o reconheçam como ator central da escola. Não é ator supremacista, dono da escola, abusivamente autônomo, mas, inclusive por lei, tem papel de destaque enorme, também porque cumpre funções exclusivas. Todos na “comunidade de aprendizagem” são importantes, mas como somos “iguais e diversos” (Demo, 2022), é idílica a expectativa de que todos são exatamente iguais; são também exatamente diversos. Na natureza, a biodiversidade é sua riqueza, não defeito (Deacon, 2012). O problema do professor, entre outros, não é só de pretender, quiçá, ser valorizado em excesso, mas de não cumprir seu papel na aprendizagem do estudante, não por culpa, mas por muitas outras razões que vão desde sua formação muito precária, docência sem sentido, desvalorização profissional grotesca, até o desafio de cuidar dos mais pobres da população e de contornar ciladas neoliberais. 




I. PROFISSIONAL DA APRENDIZAGEM




Tem sido um erro constante pretender mudar a escola sem mudar o professor. Foi importante a iniciativa do Pnaic, voltada para enfrentar a alfabetização definida em até três anos, incluindo algum cuidado com o professor, mas de molde tradicional e até hoje a questão não está minimamente equacionada. Em geral, depois de três anos, sequer metade dos alunos está alfabetizada, havendo estados com 20% apenas. É sempre um desafio muito complexo definir o que é “alfabetizado”, como é definir o “aprendizado adequado” no Ideb ou Pisa: muitos definem rasamente, como escrever o nome ou algum bilhete incipiente mínimo e isto predomina até hoje. Seria possível, na expectativa freireana, esperar bem mais, como a noção de autoria do estudante, que é sinalizada em autores que localizam a aprendizagem autoral já no pré-escolar, como Piaget (1990; 2007), incluindo “educação científica”. O desafio maior da alfabetização está no alfabetizador, um profissional que ainda não temos satisfatório, a rigor. O próprio fato de pretendermos direcioná-lo, cercá-lo de programas como o Pnaic e outros, empurrar para táticas fonéticas ou outras, prescrever procedimentos, indica que não confiamos nele, ou não lhe damos a liberdade que seria “óbvia”, caso o alfabetizador tivesse a perícia ou formação adequada. Precisamos de um alfabetizador tão bem alfabetizado, que dispense capatazes federais, estaduais ou municipais que o controlem de fora, deixando à sua iniciativa devidamente fundada na teoria e na prática como fazer. Supõe-se que seja capaz de elaborar um projeto próprio de alfabetização, devidamente argumentado e atualizado, também viável, o que, em geral, não é o caso. Então, o Mec ou a Secretaria definem o que ele vai fazer, não como profissional da alfabetização, mas do ensino instrucionista. Para complicar as coisas, a BNCC parece adotar dois anos, à revelia dos municípios que mantêm 3 anos e acena com um processo “bem mais longo, que podemos chamar de ortografização” (2018:91), uma conturbação esticada sem praticidade, insinuando que não estamos em condições de resolver. Ao fim, não resolveremos nada sem resolver a questão do alfabetizador, que é quem organiza o processo e o leva a bom termo (ou mau). Se tomássemos Paulo Freire a sério, teríamos há muito avançado na direção de focar os estudantes como aprendizes lúdicos e curiosos, não como vítimas de aula. Enquanto no pré-escolar as crianças se movem à vontade, com os professores sentados ou andando juntos, se expressam com autonomia e são incentivados a isso, exercitam laboratório, experimentos, encenações, desenham, em geral coletivamente, aprendendo os inícios da educação científica, chegando à alfabetização (primeiros anos do Ensino Fundamental) (EF), cada criança é sentada numa carteira e instada a ouvir o professor falar com devida atenção, imóvel, o que em geral espanta as mães que não sabem como garantir que o filho fique 50 minutos escutando alguém falar, a menos que esteja doente. Um alfabetizador bem formado não aceitaria este ambiente tão hostil, útil para o “ensinador” oficial que não tem noção suficiente de alfabetização, e menos ainda de aprendizagem, postulando que aluno aprende escutando aula. Embora o alfabetizador “ensine” o tempo todo, pelo menos no sentido de organizar os procedimentos, sequenciar, trabalhar conteúdos, sabe que o ensino só faz sentido se resultar em aprendizagem. Quase sempre não resulta. Este é o “projeto” denunciado por Darcy Ribeiro: ensinar para não aprender. 

Outro exemplo pertinente é a introdução da escola integral que gostaria de defender enfaticamente. Dividir a frequência escolar em aulas de 50 minutos é uma extravagância obsoleta, porque aprendizagem não pode ser assim cronometrada; na verdade cronometramos o ensino, pedaços de conteúdo que queremos repassar, mas sem atentar para a aprendizagem, que em geral não ocorre. No entanto, esta ideia preciosa de manter o estudante o dia todo na escola para que tenha tempo para aprender como autor não medra sem um professor adequado. A primeira ideia que tem é dar mais aula, pois foi assim que interpretou o programa “Mais Educação” – a experiência mais comum era, de manhã, repassar o currículo; de tarde, fazer outras atividades, apelidadas de culturais, lúdicas, motivacionais etc., mas que eram passatempo. O governo Temer logo melou a ideia, também sob pressão neoliberal de reduzir custos escolares, e até hoje, quando se fala de escola integral, grande parte supõe que seja para “dar mais aula”. O desafio maior, então, é o professor, capaz de preencher o dia com “atividades de aprendizagem” (Demo, 2018): ler, estudar, elaborar, pesquisar, argumentar, trabalhar em grupo, montar pesquisas longas interdisciplinares etc. Para aprender, atividades de ensino são instrumentais, enquanto as de aprendizagem são decisivas: a aprendizagem não está na aula; está na cabeça do estudante. Aprendizagem não se fabrica da fora, por procedimentos lineares de cima para baixo, de fora para dentro, mas de dentro, tendo a aluno como autor (Dehaene, 2020). Papel docente é organizar atividades de aprendizagem participativas, envolventes, através das quais os estudantes reconstroem os conteúdos curriculares sob orientação. As escolas não fomentam atividades de aprendizagem – razão por que no Enem, de 2 milhões de estudantes, uns 20 redigem bem! – em parte porque são estranhas aos professores que não as tiveram na formação universitária. É comum que professores não tenham autoria própria, não tenham noção do que é ciência, não saibam pesquisar. Enquanto educadores infantis defendem que ser autor, cientista, pesquisador começa no pré-escolar, ainda cremos que só começa no mestrado. Muitos países já exigem mestrado, por esta razão: sabendo pesquisar, é possível aprender como autor. 

Dois foguetórios comuns na escola são “metodologias ativas” e “sala de aula invertida”. Não estando o professor devidamente formado, entende metodologias ativas como enfeite de sua aula (o mais comum é PowerPoint), ignorando ser dinâmica própria do aluno. A “sala de aula invertida” contém a descoberta (muito tardia!) de que, se o aluno estuda antes por si, o aproveitamento é bem melhor em sala de aula, sem perceber que a inversão tem outro sentido: ao invés de inverter a aula, é o caso dispensá-la ou mantê-la como supletiva eventual. Em ambos os casos, o foco docente é preservar seu amuleto instrucionista a qualquer preço. Então, não há como instaurar a pretensão da escola integral, proposta que tenho por necessária ou inevitável, sem mudar profundamente o professor, sobretudo para que não perverta a promessa: ao invés de melhorar a aprendizagem, aumenta a instrução. 

Esta análise indicaria a necessidade de mudar radicalmente a formação acadêmica do professor básico, hoje estrangulada no instrucionismo mais rasteiro: (de)forma-se um profissional do ensino que não sabe aprender e imagina que sua função na escola seja dar aula, repassar o conteúdo todo religiosamente, aplicar provas para certificar-se da memorização etc. Tem a cara da própria universidade que assim trata seus graduandos: entope-os de conteúdo, certifica-se da memorização, mas não tem ideia se houve aprendizagem. Considero que temos aqui um dos desafios mais prementes e difíceis, porque a universidade não mostra sinais de mudar este tipo de formação. Está presa a dois ritos ineptos instrucionistas: i) a graduação feita com base na reprodução curricular; ii) a oferta de pós lato sensu que requenta a precariedade da graduação, como palanque vazio de formação permanente. O mundo pende para outros ventos, como se pode induzir da Tabela 1, que mostra dados sobre a formação docente básica (para os Anos Finais) em 2018. Aparecem apenas alguns países que têm dados, o que limita muito a informação, mas pode-se ter uma ideia inicial interessante. A formação mais comum é, de um lado, de bacharelado e licenciatura, e, de outro, de mestrado ou similar. O Brasil ainda está na fase de completar bacharelado e licenciatura, com quase 90%, com apenas 5,9% com mestrado. Aparecem dois países muito atrasados: África do Sul, que ainda tem 55,6% com nível superior ou técnico (ou similar) (23,8% com formação abaixo do nível superior), e Vietnã com 18,7%. Chama a atenção que Colômbia tenha 53,3% de docentes com mestrado ou similar, grande destaque latino-americano, no mesmo nível dos Estados Unidos, seguindo-se México com 22,6%. A Eslováquia já chegou a 96,3%; na faixa dos 90% estavam Portugal, com 93,4%; Croácia, com 91%; Finlândia, com 90,6%. 

CONCLUSÃO




A escola e a universidade serão reinventadas no mundo digital, porque sempre a sociedade, inventando nova tecnologia, esta não emerge como mera instrumentação, mas como nova cultura, na qual a sociedade e economia precisam se rearranjar. De novo, vale salientar que esta mudança precisa de outro professor que seja capaz de modular as novas tecnologias em favor da sociedade, orquestrando novas autorias, emancipações, autonomias, na relação saudável entre meios e fins. Perdemos a chance de fazer da internet um bem comum, porque o mercado livre se interpôs e, na seleção natural mais crua, se apropriou de um bem de interesse coletivo para fazer dele uma competitividade destrutiva. Hoje a escola pública é empurrada para a competitividade e produtividade, açoitada pelo neoliberalismo dominante que propala a crença de que não é possível organizar o sistema produtivo de outra forma. Corremos o risco de uniformização ditatorial do sistema produtivo, que Piketty chama de hipercapitalismo neocolonial (2020), com uma cúpula cada vez menor se apropriando de tudo e imensas multidões à deriva, como se fosse natural tamanha expropriação. A natureza tem outro recado: a biodiversidade. Cada país deveria ter o direito de se organizar como quiser, dentro de regras recíprocas de jogo. A diversidade digital é coibida, porque, na prática, o capitalismo vive de monopólios, não de concorrência – esta é para os países fracos (Amsden, 2009). 

A escola e a universidade poderiam comparecer como instâncias formativas devotadas ao desenvolvimento social, cultural, tecnológico de interesse comum, como contrapeso à criação destrutiva da economia neoliberal, abrindo veredas para a convivência cosmopolita e ecológica que pede a diversidade de olhares e de modos de vida. A escola como sucursal do mercado tem papel totalmente subserviente, quase de lacaio, que cumpre ordens, aplica procedimentos, reproduz o sistema, mantém as supremacias. Qualquer mudança importante na escola pressupõe a mudança no professor, ou não será viável, porque professor pode, bem facilmente, obstaculizar tudo. Tê-lo como adversário ou como vítima nunca deu certo. Por coerência, a formação docente deveria figurar entre as profissionalizações exemplares, a mais meritória e esmerada, por ser o profissional dos profissionais. A condição de “profissional menor”, assim vista em geral pela sociedade, é uma contradição lancinante, porque apequena a escola a um rito que amesquinha a sociedade, atrapalha a autoria estudantil, esfarrapa a docência. 


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