De 5 a 300 – a aceleração do capitalismo financeiro no Brasil

De 5 a 300 – a aceleração do capitalismo financeiro no Brasil

No fim de setembro, o jornal Valor Econômico publicou um artigo de Martin Wolf, em que o escritor e articulista chefe do The Financial Times examina duas tendências da economia mundial nas últimas décadas: a estagnação da produtividade e a disparada da desigualdade. Ambas, segundo Wolf, respondem por um outro fenômeno preocupante: o crescimento do capitalismo rentista, ou seja, daqueles que vivem da renda proveniente da aplicação de capitais.

O texto é acompanhado de números que corroboram a tese. Reproduzo alguns deles. O primeiro gráfico mostra como a concentração de renda dos 10% mais ricos cresceu em vários países, ao mesmo tempo em que o dinamismo da economia foi perdendo fôlego (segundo gráfico).

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Por que isso está acontecendo?

Wolf dá algumas pistas. Uma das mais instigantes, considerando o ambiente brasileiro, é a crescente liberalização do sistema financeiro em todo o mundo. O setor vem crescendo mais do que o resto da economia, “em um processo de metástase, como um câncer”, para usar uma imagem não muito lisonjeira cunhada pelo articulista. Wolf descreve a engrenagem: o setor cria crédito e dinheiro e com ele financia as suas próprias atividades, receitas e lucros.

No Brasil, essa percepção é claríssima. Enquanto na última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) a taxa básica de juros da economia foi reduzida para 5,5%, a taxa do cartão de crédito ou do cheque especial passeava na casa dos 300%.

O peso do capitalismo rentista no Brasil é alarmante. A Economática informou que Itaú Unibanco, Bradesco, Santander e o Banco do Brasil lucraram, juntos, R$ 20,474 bilhões no segundo trimestre deste ano, um aumento de 21,3% na comparação com o mesmo período do ano passado. Trata-se de um desempenho excepcional em um País cujo crescimento do PIB deverá ficar em 0,5% neste ano – excepcional e corriqueiro, uma vez que o lucro dos bancos é monotonamente positivo, mesmo em períodos recessivos.

Todos concordam que a solidez do sistema financeiro brasileiro é digna de nota e responsável por absorver boa parte do impacto de crises que chacoalharam outros países emergentes. Mas isso não justifica os spreads turbinados que temos por aqui.

O custo do dinheiro no Brasil é um enorme fator limitador para a indústria. Impede, por exemplo, a sua recuperação, na medida em que aumenta o custo do crédito para o produto final e para o investimento.

Apesar de estarmos falando agora em taxas de juros mais “civilizadas”, temos de lembrar que as taxas só passaram pelo processo civilizatório no Banco Central. Na ponta, e durante décadas, o Brasil convive com uma taxa de juros alta e (consequentemente) câmbio valorizado. Essa combinação foi letal para a indústria nativa.

Talvez a inovação promovida por aplicativos e Fintechs represente uma saída para civilizarmos o setor financeiro. Pessoalmente, sou um pouco cético. Acho que o segmento bancário irá, por meio de aquisições e desenvolvimentos, neutralizar essa tendência. Veremos.

De qualquer forma, o abismo entre as taxas precisa diminuir sob pena de inviabilizar o crescimento. Se a aceleração ficar apenas no sistema financeiro, concentrando e esterilizando a renda, teremos dificuldades em seguir adiante.

*Este artigo, de minha autoria, foi originalmente publicado em meu blog.


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