De Oeiras ao “front”
Em 1914, a 28 de julho, o Império austro-húngaro invade a Sérvia dando inicio a um conflito devastador à escala mundial, a Primeira Guerra Mundial. O eclodir deste conflito apanha de surpresa a recente República Portuguesa ainda envolta numa turbulência politica e social, provocando um impacto brutal e profundo na sociedade portuguesa e no seu quotidiano, deixando um efeito duradouro no tecido social, económico e político do país. Em Oeiras, meses antes, a 2 de janeiro desse ano, toma posse a 2ª Comissão Executiva da República, liderada pelo Partido Democrático, após a vitória nas eleições municipais de 30 de novembro de 1913. Tal como o governo da República, também o poder local oeirense encontrava dificuldades para conseguir uma estabilidade política, tendo até 1918, existido 5 Comissões Executivas na administração dos destinos do concelho.
No plano internacional, Portugal, mantém uma posição de neutralidade face aos acontecimentos, mas em termos políticos e económicos surge de imediato a preocupação face aos territórios ultramarinos e a sua potencial perda. Ao contrário da intervenção portuguesa no teatro de guerra europeu que irá gerar acesa polémica interna, a defesa das colónias reúne consenso. O Partido Democrático de Afonso Costa decide logo em Setembro de 1914, o imediato envio de uma expedição militar para as colónias portuguesas em África posicionadas na fronteira do sul de Angola com o Sudoeste Africano alemão e na fronteira norte de Moçambique com a África Oriental alemã. Apesar dos combates que existiram, a posição oficial do Estado português continuava ser a neutralidade.
Assim, a guerra era ainda um acontecimento distante, que aparentemente não perturbava o expediente corrente das Comissões Executivas do concelho, apesar da mobilização de soldados oeirenses para a frente africana, como o 2º Sargento Manuel Pereira dos Santos Lacotte, natural de Caxias, o Tenente Viriato Correia de Lacerda, natural de São Julião (Oeiras) ou ainda o 1º Cabo José Guerreiro dos Santos Júnior, natural de Carnaxide, que faleceram em Moçambique.
Intensificava-se a escalada do conflito, enquanto Portugal mantinha ainda uma disposição não-beligerante. No entanto, na sequência do apresamento dos navios alemães e austríacos em portos portugueses a pedido do governo inglês, a 9 de Março de 1916 a Alemanha declara guerra a Portugal, o que leva o ministro da Guerra, Norton de Matos, a publicar um diploma a 24 de Maio de 1916, ordenando o recenseamento militar obrigatório de todos os cidadãos com idades compreendidas entre os 20 e os 45 anos. A administração da vila mobiliza-se, e toma medidas no sentido de responder ao apelo governamental, contribuindo assim para o esforço de guerra.
Fig.1 - Recorte de A Capital de 10 de março de 1916
Num ofício enviado à Câmara Municipal de Cascais, datado de 30 de março de 1916, o secretário da Comissão de Recenseamento da Câmara de Oeiras, solicita cópias dos recenseamentos militares de 1896 e 1897, arquivados em Cascais, quando Oeiras fazia parte daquele Concelho, informação “indispensável para o bom cumprimento do Decreto nº 2407 de 24 do corrente”. Os efeitos da guerra depressa se fazem sentir na vida da população, e assumem-se como uma das “preocupações da edilidade confrontada com os efeitos das crescentes dificuldades em garantir o abastecimento da vila em bens essenciais e combater o seu encarecimento e perturbações ao nível da disponibilização à população“, que afetava de forma perene o dia-a-dia dos oeirenses. As subsistências assumem um papel preponderante nas medidas administrativas que tentam mitigar os efeitos dessa situação, e na Sessão Ordinária de 9 de maio de 1917, a Comissão delibera não satisfazer o pedido da Câmara Municipal de Lisboa, sobre a criação transitória “para o período da crise de subsistências”, de mercados apelando aos produtores do concelho a concorrerem com os seus produtos para os abastecer, esclarecendo que o concelho “não produz géneros de alimentação em quantidade que exceda o consumo, antes necessita importar muitos desses géneros “, pelo que a satisfação daquele pedido iria prejudicar os munícipes de Oeiras, tornando-lhes ainda “mais cara, a já tão cara subsistência”.
O ano de 1917 é dramático. Marca o início da intervenção portuguesa no “front”, que se concretiza a 26 de Janeiro de 1917, com o envio do primeiro contingente do CEP (Corpo Expedicionário Português) para França. A escassez de bens, nomeadamente farinha para o pão, a pobreza, a doença e a fome dominam o quotidiano da vila. Entre outras posturas, são tomadas medidas sobre a venda e o fabrico de pão, bem essencial para a população, o combate à crescente epidemia da tifóide, que era um problema sério devido às deficientes condições do abastecimento de água, combate à especulação e ao açambarcamento, a preocupação com a ordem pública, situações que dificultavam a vida, já de si difícil, dos oeirenses.
Por esta altura, a guerra já não era algo distante e chega abruptamente a Oeiras, atingindo o âmago da população oeirense. A despedida dos filhos da terra mobilizados para a guerra na Europa provoca sentimentos contraditórios entre comoções e apoios patrióticos aos soldados. O impacto do conflito reflete-se também em medidas de apoio às famílias dos soldados mortos na guerra. A criação de uma Escola Profissional de Agricultura “para os filhos dos cidadãos mortos na guerra”, que foi aprovada por deliberação na Sessão Ordinária de a 9 de maio de 1917, é disso um exemplo. As precárias condições de vida levam inevitavelmente ao aumento de transgressões de vária ordem, conduzindo o executivo de Oeiras a subscrever e apoiar uma proposta que lhe foi endereçada pela Comissão Executiva da Câmara Municipal de Alenquer, no sentido de pedir a publicação de uma lei que obrigasse “os criminosos reincidentes, e especialmente os vadios com mais de 3 prisões a incorporarem-se no Corpo Expedicionário Português em França”.
Com efeito, entre 1914 e 1918 partiram para os vários teatros de Guerra da Europa e África cerca de 105.542 soldados portugueses, 55.165 dos quais integrados no CEP (Corpo Expedicionário Português) e no CAPI (Corpo de Artilharia Pesada Independente) mobilizados para a frente ocidental, em França. A presença lusa na linha da frente ficaria marcada pelos acontecimentos da Batalha de La Lys, travada a 9 de Abril de 1918 nas trincheiras do sector de Ypres, defendido pelas tropas portuguesas. O ataque ao sector luso acontece no dia em que o efetivo militar português se preparava para ser rendido por militares ingleses, gerando tremenda confusão e descoordenação na linha de comando.
Fig. 2. Prisioneiros do CEP na Alemanha, 1918
Na sequência da batalha, o Corpo Expedicionário Português foi destroçado pelo exército alemão. Os números são elucidativos da desproporção de forças em confronto e da moral da soldadesca, que se sentia cada vez mais abandonada e sem uma liderança forte. Os portugueses perderam praticamente metade das suas forças, e ficaram reduzidas a pouco mais de uma divisão tendo-se registado cerca de 2200 mortos, 4600 feridos, 2000 desaparecidos e mais de 7 mil prisioneiros, nas primeiras horas do combate. No total, em África, no Atlântico e na Europa entre feridos, desaparecidos, incapazes e prisioneiros, Portugal perdeu 7.760 homens, a que se somam mais de 16.000 feridos e mais de 13.000 prisioneiros e desaparecidos.
Este resultado desastroso para o exército português, não esmoreceu o entusiasmo com que a notícia do Armistício de Compiègne, assinado no dia 11 de novembro de 1918, assinalando a capitulação da Alemanha, foi recebida em Oeiras. Talvez porque à data as reais perdas e implicações foram ofuscadas (ou ocultadas) pela propaganda em prol da exaltação nacional e dos briosos soldados portugueses.
A Sessão Ordinária de 13 de novembro de 1918 dá conta do júbilo sentido por essa notícia “de altíssima importância” pelo que “não pode esta Comissão Administrativa, como representante dos povos deste concelho de se sentir como todo o bom português, orgulhosa”, propondo-se lançar em ata um «voto de congratulação pela vitória dos exércitos aliados e expedir um telegrama a sua excelência, o Presidente da República, como chefe supremo da nação, felicitando-o”.
No que concerne aos números globais das perdas humanas do CEP, acima referidos, importa perceber qual o impacto na população oeirense destas baixas. Através da análise dos Boletins Individuais de militares do Corpo Expedicionário Português 1914- 1918 do Arquivo Histórico Militar (AHM), bem como do Arquivo Histórico de Prisioneiros da I Guerra da Cruz Vermelha Internacional, e também da Relação Nominal dos Indivíduos Falecidos por Motivo de Guerra, do Ministério das Finanças, foi já possível apurar informações sobre pelo menos 100 combatentes naturais de Oeiras, muitos deles mortos, desaparecidos ou feitos prisioneiros na sequência da Batalha de La Lys.
Apesar da centena de combatentes já identificados numa primeira fase, na toponímia do concelho, elemento fundamental de perpetuação da memória coletiva, existem ainda poucas referências que homenageiem e preservem para memória futura a participação dos combatentes oeirenses na Grande Guerra. As atuais referências tem um valor meramente indicativo, pois nem sempre a identificação das localidades foi rigorosa nos boletins e outras fontes já consultadas. Com efeito, em muitos casos, a indicação da naturalidade é demasiado Fig.3-Matias Filipe, Friedrichsfeld, Alemanha (AHCVI)
ambígua para que possa ser corretamente identificada a origem do combatente, pelo que a investigação deverá continuar, pois falta ainda consultar muita informação fundamental relativa a esta matéria, contribuindo para que os dados recolhidos sobre os combatentes de Oeiras sejam os mais exaustivos possíveis.
No entanto, encontramos os topónimos referentes ao General Sinel de Cordes, Chefe do Estado-Maior do Corpo Expedicionário Português, natural de Barcarena e de Matias Filipe, soldado do Regimento de Infantaria nº 1, natural de Porto Salvo, feito prisioneiro a 9 de abril, e internado no campo de prisioneiros de Friedrichsfeld, Alemanha. Desta lista, constam ainda sete expedicionários mortos, dois sepultados em Moçambique, dois em França, Cemitério Militar Português, em Richebourg l’Avoué e ainda três com local de sepultura desconhecido.
Na toponímia oeirense, estão também representados alguns republicanos que desempenharam cargos nas várias comissões executivas durante este período, como é o caso de Manuel Pinhanços, em Paço de Arcos, José Marques da Silva, em Paço de Arcos ou ainda José Moreira Rato, também em Paço de Arcos, entre outros. Encontramos também a Avenida dos Combatentes da Grande Guerra, em Algés e a Avenida dos Aliados, em Oeiras, alusivas ao conflito.
Quanto aos combatentes do CEP, naturais de Oeiras, admite-se, no entanto, que estejam consagrados na toponímia mais combatentes, que não os mencionados, pois como referido, a consulta e investigação de fontes ainda se encontra numa fase inicial.
O impacto dramático da batalha de La Lys, a 9 de Abril, marcaria para sempre a participação das tropas portuguesas, sendo, por isso, uma data de consagração aos mortos, e para isso muito contribuiu a Junta Patriótica do Norte (JPN) organizada no Porto, em 15 de Março de 1916 e também a Comissão dos Padrões da Grande Guerra que, na década de 20, promovem intensamente a edificação dos lugares de memória.
Esta junta destinava-se a promover propaganda de natureza patriótica e a prestar assistência às vítimas da I Guerra Mundial, e apesar de a JPN ter indicado Oeiras como um dos primeiros concelhos a organizar uma comissão local.
Fig.4- Antigos combatentes oeirenses na inauguração de 7/04/1940.
Na sequência dessa iniciativa, foi Inaugurado um memorial da autoria do escultor Álvaro João Vella De Brée, a 7 de Abril de 1940, conforme testemunho de diversos jornais da época, este monumento fez parte de um programa de homenagem aos oeirenses que lutaram na Grande Guerra, promovido pela Liga dos Combatentes – Núcleo de Oeiras. Tem inscrito: Concelho de Oeiras / Moçambique-Angola-França / 1914 – 1918 / Aos Mortos da Grande Guerra 1914 – 1918, perpetuando na memória colectiva dos oeirenses, aqueles que participaram na “guerra para acabar com todas as guerras" (H. G. Wells, 1914).
(texto em actualização)
Bibliografia e fontes consultadas:
Arquivo Toponímico do Município de Oeiras
Arquivo Histórico Digital, Câmara Municipal de Cascais
Arquivo Histórico Militar. Ministério da Defesa Nacional
Arquivo do Ministério da Finanças
Livro de Actas das sessões camarárias N.º 032 (1916-1918), Arquivo Municipal de Oeiras
Livro de Actas das sessões camarárias N.º 033 (1918-1920), Arquivo Municipal de Oeiras
“A Capital” do dia 10 de março de 1916, in Hemeroteca Digital de Lisboa.
“A Capital” do dia 11 de novembro de 1918, in Hemeroteca Digital de Lisboa.
Ilutração Portugueza, II Série, N.º 603, de 10 de Setembro de 1917
lllustração Portugueza, 2ª Série, nº 456, de 14 de novembro de 1914, in Hemeroteca Digital de Lisboa
Ilustração Nacional, in Hemeroteca de Lisboa
Relatório Geral da Comissão dos Padrões da Grande Guerra (1921-1936), Lisboa, 1936;
Políticas de Memória da I Guerra Mundial em Portugal 1918-1933 – entre a experiência e o mito, Sílvia Correia, tese doutoramento, FCSH/UNL, Lisboa, Julho 2010;
Dicionário de pintores e escultores portugueses, Fernando Pamplona, vol. I, 4ª edição, Livraria Civilização Editora, Barcelos, 2000 – Álvaro de Brée;
Torres, Ana Paula Teixeira, Eleições, Eleitores e Elites Políticas de Oeiras (1908-1926), Tese de Mestrado em História Social Contemporânea, ISCTE, Janeiro 2000, pp. 105 e 106
Memorial aos mortos da Grande Guerra, consultado em linha em 31/10/2018
ICRC historical archives, consultado em linha em 29/10/2018